Páginas

domingo, outubro 12, 2008

ALUCINAÇÃO: COR, METAMORFOSE E MEDO


Estás com um tubo na boca, isso já entendeste. Tens seis agulhas espetadas no pescoço. Urinas sem perceber, um ardor que desaparece por baixo da cama. Se calhar começaste a ter medo. Mas medo a propósito de quê? Lembras-te daquela voz feminina que informou alguém de que estavam no «piso do bloco»? Havia mármores, tubos ao longo das paredes, perto do tecto, mas a luz era escassa, vias mal, tinhas a cabeça entalada entre almofadas industriais e só podias espreitar, pelo canto do olho, um canal fino, transparente, pelo quel escorria, leitosamente, o que poderia tratar-se de soro. Soro fisiológico, com produtos adicionados, invisíveis. Sim, claro que o espaço em volta havia escurecido, tornara-se azulado, e havia enfermeiras lendo fichas, cabeças coroadas de claridade, pendidas sobre o branco da mesa. Tudo parecia tranquilo mas o ruídos das vozes, apesar de trocadas em murmúrio, era insuportável, ensurdecedor. E a parede já sem tubos transformara-se naqueles tabiques interiores, antigos, revestidos por uma pintura ornamenteal dita escaiola. Havia pedreiros e pintores especializados nesse efeito aristocratizante, a fingir superfícies marmóreas, assaz raras. Depois apareceu aquela mulher. Tinha um pequeno véu na aba do chapéu estilizado e leve, vestia como nos anos 30, fato diáfano, rosa velho, uma cinta da mesma natureza, azul cinza, delineando a anca emergente. Orosto ficara em sombra, uns lábios pintados com suavidade, numa cor também rosada, a pele pálida, as feições inertes, tudo inerte na sua pose ao fundo. E, no entanto, a sua nitidez era maior do que o recorte das pessoas próprias daquele contexto. Pensei num fantasma. Numa visão do Além.
As alucinações em estado pós operatório são aparentemente mais reais do que a realidade.
Um bom tema para estudar as questões da nossa percepção do mundo.
A pintura aqui exposta, surgiu das mãos de um amigo que não reconheci. Ele disse que entregava a pasta à minha família. Antes de se despedir disse devagar: «olha, usei vermelhos, pretos e alguns cinzas. Sei que são as cores tuas preferidas e aliás ajudam a perceber os tons em volta.» O homem sorriu, parecia irónico, e eu não podia falar nem perguntar-lhe de onde nos conhecíamos.
Quando me foi possível libertar a boca, dois dias após aquela tarde, falei com a enfermeira e perguntei se estivera ali um colega meu, com uma pasta de cartão. «Não esteve cá ninguém, excepto a sua família. Mas tem aí, junto da mesa de cabeceira, uma pasta de cartão. Não sei quem a deixou assim, nem do que se trata. Quer que abra?» Atordoado, ainda consegui dizer: Não, deixe estar assim. Vejo quando estiver melhor».

Um comentário:

Miguel Baganha disse...

Alucinação?!...
Ou terá sido a cor do medo que se transformou numa outra realidade?...

Quando se desce ao in-consciente cedendo lugar à completa abstracção, a realidade como a conhecemos logo se torna subjectiva. Porque, ao despertar, voltando a ela, a dúvida persistirá: «estarei agora acordado ou terei voltado a adormecer?...»

Bom, tio-mestre, não sei se esta análise fez algum sentido, porém uma coisa é certa: tenho uma atenuante! Fiquei alucinado pela beleza deste texto.

P.S.Voltamos a falar sobre isto no sítio do costume, e com uma "sopinha" pela frente...



Um abraço,

Miguel