O quebra-nozes ficou estendido, imaculado, sobre a mesa. Que faz aqui o quebra nozes? Não sei, há anos que não vejo esse instrumento, devia estar guardado numa das gavetas da cozinha, presumo. Nesse caso, e dada a natureza do objecto, seria natural que tivesse sido abandonado lá, por desatenção, onde de resto falta qualquer indício de cascas, ou de miolos, ou nozes inteiras em algum sítio adequado, não é? Pois sim, aqui é a sala de jantar, a mesa costuma ter uns pratos ao centro, flores, ornamentos. E só temos, meio aberto e limpo, o quebra-nozes? De facto, parece uma nova decoração, algum devaneio, uma ideia atípica. Tem a noção do que está a dizer? Porquê? Porque encontramos duas nozes, aliás velhas, num racanto da arrecadação. Mas qual arrecadação, qual coisa, eu tenho aí um armário do próprio andar, cheio de coisas sem préstimo, latas, um azeite creio que rançoso, caixas da aparelhagem, nada mais, há anos que perdi o hábito de vasculhar nesses sítios, as gavetas empenadas, o vão bolorento onde assenta a placa do lava-louiças e do fogão, ou mesmo aquele espaço além, no recanto entre portas, as malas de sempre, cheias de pó, tenho lá paciência para subir ao pico do guarda-loiças, loiças velhas, rachadas, uma salva de prata que foi a única coisa que sobrou para mim, a única lembrança da avó, coitada, santa, irrepreensível, cheia de sardas nas faces descaídas. Sei lá dessas coisas? Mas o senhor é inquilino desta casa. Inquilino já nem sou. Fiquei por aqui, ao deus dará, lendo outra vez alguns livros e jornais antigos, jornais do tempo da revolução, deixo tudo em monte, até copos e pratas usados há cerca de um mês, sofro de reumático, tenho artroses, a reforma mal me chega para o pão, te-nho a água e a luz cortadas, sabem como é, sabem como estes sacanas tratam os velhos, e ainda querem subir as rendas, abater a varanda donde já não se pode ver a rua, nem a rua nem os vizinhos, sem o pássaro na gaiola, os pardais a apanhar restos, sei lá das nozes, nunca comi nozes na minha vida, pareciam miolos de rato, esse quebra-nozes, se é daqui, vem do tempo da minha mulher, que deus a tenha em descanso, gostava de comprar coisas novas, muitas coisas, ainda podem ver aquele móvel castanho, rachado, bem cheio de roupas e caixas de cartão, algumas com chapéus dos casamentos e assim. Vamos lá calar, o senhor quer é dar voltas ao destino. Destino? Mas os senhores não vêem o meu destino? Esteja calado. Conhece aquela mulher? Não sei bem, não vejo bem daqui. Ó António abre a luz e traz a mulher para aqui. Conhece ou não conhece? Ah, minha boa Teodolinda, que é feito de ti? O senhor sabe bem melhor do que ela: não vê aquele dedo entrapado? Aquele dedo foi o senhor que enrolou num lenço e partiu com o quebra-nozes.
sábado, novembro 08, 2008
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Um comentário:
Primeiro o texto: muito seu na forma de escrever, quando corre leve. Até na conclusão que surpreende e arrepia. Muito bom.
Agora o seu espaço: renovado, parece que nunca lá tinha visto links preferidos (mto.obrigada pelo que me toca). A representação do labor é um quadro esplêndido, a «pureza» é fabulosa dando lugar a interpretações, e a imagem última parece a representação do construpintar...
Parabéns!
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