Mas isso eu sei ver e até gosto. A velhota diz que não há morcegos brancos, só pombas dos castelos. E também já não é tempo de guerreiros, as terras estão conquistadas e afeitas, nem a família do Artur atravessa uma serra para espavorir o sono entaremelado de moços como eu. Mas posso estar a fazer o mundo outra fez, em sonhos. Não me dizem que o mar é assim como uma parede azulada, ao longe, sem fim? Daí pode aparecer um sonho, barcos desses que andavam pelo rio, carregando coisas. Agora, escangalhado, não há cabras, nem ovelhas, só duas galinhas e um galo emprestado. Mas como é que posso mudar o sonho só com a lembrança destas poucas coisas? O sonho somos nós. Tudo o que vejo nos sonhos é mais meu do que as histórias de lobos, medos, passos nas casas, essas coisas todas que o senhor Artur conta, escarninho e sempre a beber, babado.
terça-feira, julho 28, 2009
ENTRE GUERREIROS E POMBAS, APENAS SONHOS
Mas isso eu sei ver e até gosto. A velhota diz que não há morcegos brancos, só pombas dos castelos. E também já não é tempo de guerreiros, as terras estão conquistadas e afeitas, nem a família do Artur atravessa uma serra para espavorir o sono entaremelado de moços como eu. Mas posso estar a fazer o mundo outra fez, em sonhos. Não me dizem que o mar é assim como uma parede azulada, ao longe, sem fim? Daí pode aparecer um sonho, barcos desses que andavam pelo rio, carregando coisas. Agora, escangalhado, não há cabras, nem ovelhas, só duas galinhas e um galo emprestado. Mas como é que posso mudar o sonho só com a lembrança destas poucas coisas? O sonho somos nós. Tudo o que vejo nos sonhos é mais meu do que as histórias de lobos, medos, passos nas casas, essas coisas todas que o senhor Artur conta, escarninho e sempre a beber, babado.
terça-feira, julho 21, 2009
MENINA CIGANA E O VÉRTICE DO SEU OLHAR
segunda-feira, julho 13, 2009
A PASSAGEM DAS HORAS SOB A TEMPESTADE
Estás só e curvas a cabeça, como sempre, a esta tempestade tropical que se aproxima. Cada vez é mais assídua mas ainda é vulgar, quase branda. Virá um dia a sacudir a mítica temperança do clima peninsular, varrendo estas terras que já perderam a relação regular das estações do ano. Isso sim, será inquietante. Tem cuidado, não mintas a ti mesmo: desde menino, desde o ciclone, que ficaste refém desse trauma devido à Natureza em violência. Não, não estou a exagerar, e tu sabes perfeitamente que só levantaste os olhos às verdadeiras tempestades tropicais quando estiveste em Angola, ao acaso de todos os casos. Esperavas por elas, com outros companheiros, no limite do morro, um abismo de floresta à tua frente, a cortina de água apagando horizontes, uns após os outros, branco cinza compacto cujo interior se iluminava sem desenho e muitos segundos depois chegava a ti o ruído de enormes pedras rolando sobre estradas de zinco. Podias fazer as contas, trabalhando com a velocidade da luz e a velocidade do som: a verdade dessa operação matemática estava aberta diante de ti e dos outros. Deus brincava com os sinais da sua Omnipresença e já sabia a data em que sairias dali, daquele soturno universo de florestas e covas sem fim. Então começavas, num olhar de minúcia, a observar o avanço (metro a metro) da torrente de chuva: ao longe, o verde-verde sombrio das copas das árvores, coladas entre si, desaparecia sob essa água tumultuante, entre salpicos em bruma, num lamento rouco, que mal se ouvia. Tudo começara a acontecer cerca de uma hora atrás. De súbito, sem aviso, um risco torto, divino, acendeu-se num traçado tortuoso, brutal, imenso, tal e qual como Deus escreve nas linhas direitas, acompanhado (numa fracção de segundos) pelo rasgamento simultâmeo de mil árvores colossais, imagem sonora dos troncos tombando, rolando, bramando em cavernas de montanha, ronco cavo, pedaços de som esfarelando-se num lugar qualquer, inacessível. As vossas pernas nuas recuavam um pouco, avançavam depois, e toda a gente começava a ver uma parede como a do Niagara rompendo caminho, engolindo metros e metros de fdolhagem, agora produzindo um ruído tão intenso como o som intermédio das descargas eléctricas, mas sem quebras de altura, primeiro ainda tolerável, quase brando, e pouco depois, a cem metros do vosso abismo, imperioso, contínuo, abafando as próprias vozes que te ladeavam. A dez metros ainda podias ver a tromba de água, ciclorama apocalíptico. Ninguém se ouvia mais, os primeiros pingos de água alagavam tudo, e tu correste como um coelho acossado, entrando em queda na casa de zinco, enorme, em que habitavas com os sargentos e oficiais. Toda a gente se encolheu nas camas, tapando os ouvidos num desespero, porque aquela carga a desabar sem intervalo sobre o zinco parecia mesmo a cólera do Deus impossível do Primeiro Testamento. Nunca viras nem ouviras uma coisa tamanha. Nada de nada parecida com o sopro ciclónico da jua meninice, aquele que levantou telhados e arrastou árvores inteitras pelo espaço adiante. Pouca coisa, mas o medo é próprio dos homens. A tempestade tropical, assim, vista de longe e bem de perto, é outra coisa, em particular sob o zinco amplificador, o mundo em poedaços. Afastava-se depois, neia hora depois, majestática e cada vez mais «mansa», apesar da artilharia que arrastava consigo e tornava todos os bichos invisíveis, mesmo que não tivessem ouvidos. Lembras-te quando tiraste os dedos dos ouvidos? Chovia longe, ouvia-se o pingar das goteiras, pequenas goteiras das folhas de zinco, uma impressão estranha de fogo na distância devida a uma luz já alaranjada que entrava pelas frinchas, aliás juntando-se a outra, talvez insinuada pelo som dos pingos de água ouvidos a desfazer-se na terra molhada. A medo, mas fascinado, foste até à porta. Havia gritos de grandes aves que se preparavam para levantar voo. E a chuva longe. E os relâmpagos vermelhos, amarelos, brancos, empurrando o som em largos círculos que já precisavam de cinco segundos para chegar ao vosso território. Em volta das casas e casinhas, zinco, madeira e lona, troncos e ramos de árvores, viaturas militares em verde azeitona, brilhando como nunca, espalhavam-se impensáveis brilhos de lagos abertos na terra, coroas de lama pegando-se umas às outras, o céu já vermelho e roxo, projectado nos espelhos horizontais, nos reflexos mamutianos da lama. E uma simples bota que lá entrasse, porque nada parecia tão grande como realmente era, afundava-se naquela carne mole. Era terrível retirá-la de lá e sobretudo transportá-la no pé com cinco quilos de barro, pelo menos, agarrado a ela. A paz era então anunciada pelos últimos arcos-íris que enfeitavam o resto violeta suave do vosso céu, para leste, cruzando-se entre si ou arrancando de pontos que podias tocar, erguendo logo os olhos a fim de perceberes qual era a extensão desse arco multicolor, uma curva da mais sublime geometria, desfazendo-se, ao contrário de outras, além ao funco, entre nuvens baixas que pareciam pássaros silenciosos deslizando no fio horizontal da brisa. Queres dizer alguma coisa? Claro que sim. Sabias perfeitamente que eu tenho esse espectáculo, inteiro, na memória. Não, não sabia inteiramente. Calculava. Mas tu estavas dobrado, riscando por nada. Por nada, dizes bem: não era medo de tempestade nenhuma, era apenas medo de não conseguir apagar (ou esconder) a fotografia terrível que imprimira neste papel. Sobrou em cima, à direita, o rosto de uma rapariga pacífica, mas não sei o que fazer com ela. Deve ser o anjo que tu nunca soubeste ser para mim. Desculpa.
quarta-feira, julho 08, 2009
DESCONSTRUÇÃO ANALÍTICA DE UM QUADRO
As viagens horizontais encontram-se com muitas coisas que parecem emergir da realidade menos controversa, ou compostos de afirmação, numa deriva pelos destroços que ficaram agarrados às paredes e que espalham a sua doença às tintas fragilizadas, bocados de continentes, a beleza misteriosa, ao luar, que se assemelha por vezes com a fonte fria dessa mítica inspiração poética. Temos a impressão que a fortuna e o charme de outros tempos se nivelam nos recantos encobertos, os pobres dormindo na rua, ou mortos apenas, vítimas dos actuais dilúvios.
O outro lado dessa pesquisa nómada é reforçado, embora menos ilustrativo, com estes negativos onde a luz parece alargar, por sua conta, o nosso imaginário. O sentido mais profundo perdura, mas há transparências e abstrações que parecem citar, apenas citar, alguns truque da modernidade.
Aqui nos encontramos do lado da percepção visual, soletrando aquele preciso ensinamento de Paul Klee: «a arte não reproduz a realidade, torna-a visível». É muito e é ainda pouco: porque a transferência de um meio de expressão para outro encontra sempre muitos escolhos intransponíveis. Como seria esta imagem, já de si complexa pelos indícios que comporta, tratada ao nível da escrita, em português? Não há jazigos apropriados para tais trasladações, discursos em papel, equivalências reelaboradas pelo sonho, mas a arte é feita de partilhas, de entregas, de desdobramentos quase perenes.
Depois chegam os mais novos, a rapariga que não está bem feliz nem infeliz: acabou porventura de visitar algum espaço de memórias, confrontando-se com os amores mortos e as fotografias felizes espalhadas pelo cemitério. Ela repete-se porque se explica pelo tempo, pela viagem, e pela emergência de acontecimentos trágicos, a morte de alguém. Mas não é necessariamente assim que tem de ser e o rosto dela anuncia, na sua leve inclinação, o sentido das velas, o destino da navegação.
Esta imagem, parte do quadro que temos vindo a visitar, confirma a anterior e, entre as diversas colagens significantes, reelabora outro espectro meio submerso, não em referência aos mortos dormindo de há pouco, mas ao enlace de dois corpos, talvez um acto de amor, talvez, ao contrário, a luta de várias falências quotidianas.
Há sempre alguma coisa que apodrece em todos os lugares do mundo, um excesso, uma acomodação de imagens degradadas, antes das guerras, depois das guerras. Ou as malhas rendadas que amortalham a mesma vida de todos os dias, escurecendo em teia a mesma personagem de há pouco, um fim de tarde, a iconografia melancólica da juventude quando divaga e sonha e pensa pessoas de todos os tempos, entre jardins escondidos e murmúrios de espera.
terça-feira, julho 07, 2009
ALICE, VENDEDEIRA DE PATAS DE GALINHA
Alice, vendedeira de patas e asas de galinha. Miúdos ou noelas, não sei. Alguma alface, alguma cenoura. Ossos pelo caminho, as chinelas tracejando a lama, feridas de pedras húmidas, ocasionais mas muitas, e ela assim, carregada, sem nunca falar nesta banca de madeira, porventura disfarçada com plástico. Toalha de plástico, lisa, com flores, não sei, não estou a ver. Se calhar, esta Alice nem se lembra de mim. Cresci em Lisboa, a estudar coisas leves, de outros tempos. Vinha pelo Natal. Vinha pela Páscoa e gostava de ver a «procissão das flores», não sei bem porquê. Talvez a pele e a pele das flores. Pétalas. Alice chegou a vender flores. O caminho da Fragura nunca perdera a sua identidade medieval, lama e pó e pedras, conforme as estações do clima. E ela vinha também por ali, ali encalhou um dia no Francisco, fugiu, voltou, desencontrou-se, deixou cair duas galinhas mortas, penas soltas as mãos já nodosas e sujas logo-logo a esconder o desastre. Francisco era um rapaz franzino, ela também mas ainda lavada e branca. Casaram, eu soube, na altura da Páscoa. A ela, só a conheci de facto, de bem perto, e a sentir-lhe o bafo cortado com alho, num dia de festa, não sei qual. Dobrava-me, a escolher as alfaces. Alice ajudou, parecia grávida, um cabelo oleoso começava a roubar-lhe a candura, o que dantes o próprio estrabismo, em paradoxo, ajudava a manter. Não sou capaz de avaliar o tempo que passou entre esse dia e o dia em que voltei a reparar na vendedeira de patas de galinha, vestida de preto, o marido morrera havia dois meses, deixando mulher viúva e filha orfã de pai, que fique a redundância. Depois vieram as galinhas vivas, desusadas, amarrotadas, para serem mortas, inspeccionadas e retalhadas num matadouro de aves, quase igual ao outro, uma espécie de fortaleza moura onde castravam e matavam bois, o sangue a borbulhar em queda, daí a minutos já coalhado em grandes áreas das lajes calcárias. Alice, vi nesse tempo, entregava as galinhas ao tratador, as mãos estendidas e os bichos de pernas atadas com corda de sisal. Pronto, a morte era simples, um corte de cutelo nos pescoços, cabeças saltando e as pernas vivas, num estretor desconfortavelmente longo. O cutelo descia de novo, algumas penas soltavam-se, por vezes muitas, enquanto as mais pequenas voavam, brandas, na brisa que vinha da rua. Alice à espera. Alice tapando os olhos, os ombros em bico, um lenço na cabeça Via-lhe as pernas brancas, nervosas, esguias, metidas nuns sapatos de guardadora de rebanhos. Mas só tratava das galinhas, frescos, patas e asas. A filha adoeceu, deixou de vir à praça, contou-me o senhor Domingos. Hoje ali está, feia, estrábica, irreconhecível pela calcinação do trabalho e pela indelével perda da filha. Talvez as patas das galinhas sejam uma espécie de amuleto, um símbolo bruxo, um pedaço de nada para dar gosto à sopa dos pobres ou dos velhos que desciam outrora a esta zona da cidade, vindos da zona antiga, a fim de escolherem pequenas coisas impensáveis. Alguns desciam do asilo, sem nome nem memória, Auschwitz talvez. Outras mortes, talvez. Caldo de sebo desfeito, cartilagens, ossos. Cada homem um cão. A faca pousada na madeira. Ou no plástico salpicado de flores, salsa, ponto cruz, coentros. Também já vi a Alice, numa idade perto desta, em deriva pelo cemitério, onde tem morada certa, junto do marido e da filha. Molha as flores. Limpa tudo, como se estivesse a tratar de uma casa. Olha para o jazigos. Faz muitas vezes o sinal da cruz. A mim, este cemitério dá-me uma grande paz. Há dias, contudo, depois de cjover, em que os retratos parecem mortos outra vez, sinto uma coisa na garganta, sem Deus, nem Anjos, nem meninos correndo num espaço coberto de folhas amareladas. As patas de galinha, penso, e imagino-as como sustento para um dia, amanhã também, depois outra vez, vezes sem conta pelos dias fora, até à morte. Um adeus. Alice não sabe quem é. Ontem fiquei ali, no torpor das vozes, e ela esteve a olhar para mim, numa desfocagem avassaladora, de miopia, claramente sem reconhecer ninguém. Mas eu insisto em pertencer a esta cidade outrora martirizada, vítima de um medo sem fim, durante noites inteiras ou dias sombrios nas cabeças e no céu, a lamparina sempre acesa junto dos santos domésticos sem asas. Da ponte velha, em grés, vejo o caminho que nos liga à Fragura, igual ao do século passado, mas não vejo ninguém a caminhar naquela terra molhada. O rio fica ali parado, entre marés, a apodrecer na base do aluvião.