Alice, vendedeira de patas e asas de galinha. Miúdos ou noelas, não sei. Alguma alface, alguma cenoura. Ossos pelo caminho, as chinelas tracejando a lama, feridas de pedras húmidas, ocasionais mas muitas, e ela assim, carregada, sem nunca falar nesta banca de madeira, porventura disfarçada com plástico. Toalha de plástico, lisa, com flores, não sei, não estou a ver. Se calhar, esta Alice nem se lembra de mim. Cresci em Lisboa, a estudar coisas leves, de outros tempos. Vinha pelo Natal. Vinha pela Páscoa e gostava de ver a «procissão das flores», não sei bem porquê. Talvez a pele e a pele das flores. Pétalas. Alice chegou a vender flores. O caminho da Fragura nunca perdera a sua identidade medieval, lama e pó e pedras, conforme as estações do clima. E ela vinha também por ali, ali encalhou um dia no Francisco, fugiu, voltou, desencontrou-se, deixou cair duas galinhas mortas, penas soltas as mãos já nodosas e sujas logo-logo a esconder o desastre. Francisco era um rapaz franzino, ela também mas ainda lavada e branca. Casaram, eu soube, na altura da Páscoa. A ela, só a conheci de facto, de bem perto, e a sentir-lhe o bafo cortado com alho, num dia de festa, não sei qual. Dobrava-me, a escolher as alfaces. Alice ajudou, parecia grávida, um cabelo oleoso começava a roubar-lhe a candura, o que dantes o próprio estrabismo, em paradoxo, ajudava a manter. Não sou capaz de avaliar o tempo que passou entre esse dia e o dia em que voltei a reparar na vendedeira de patas de galinha, vestida de preto, o marido morrera havia dois meses, deixando mulher viúva e filha orfã de pai, que fique a redundância. Depois vieram as galinhas vivas, desusadas, amarrotadas, para serem mortas, inspeccionadas e retalhadas num matadouro de aves, quase igual ao outro, uma espécie de fortaleza moura onde castravam e matavam bois, o sangue a borbulhar em queda, daí a minutos já coalhado em grandes áreas das lajes calcárias. Alice, vi nesse tempo, entregava as galinhas ao tratador, as mãos estendidas e os bichos de pernas atadas com corda de sisal. Pronto, a morte era simples, um corte de cutelo nos pescoços, cabeças saltando e as pernas vivas, num estretor desconfortavelmente longo. O cutelo descia de novo, algumas penas soltavam-se, por vezes muitas, enquanto as mais pequenas voavam, brandas, na brisa que vinha da rua. Alice à espera. Alice tapando os olhos, os ombros em bico, um lenço na cabeça Via-lhe as pernas brancas, nervosas, esguias, metidas nuns sapatos de guardadora de rebanhos. Mas só tratava das galinhas, frescos, patas e asas. A filha adoeceu, deixou de vir à praça, contou-me o senhor Domingos. Hoje ali está, feia, estrábica, irreconhecível pela calcinação do trabalho e pela indelével perda da filha. Talvez as patas das galinhas sejam uma espécie de amuleto, um símbolo bruxo, um pedaço de nada para dar gosto à sopa dos pobres ou dos velhos que desciam outrora a esta zona da cidade, vindos da zona antiga, a fim de escolherem pequenas coisas impensáveis. Alguns desciam do asilo, sem nome nem memória, Auschwitz talvez. Outras mortes, talvez. Caldo de sebo desfeito, cartilagens, ossos. Cada homem um cão. A faca pousada na madeira. Ou no plástico salpicado de flores, salsa, ponto cruz, coentros. Também já vi a Alice, numa idade perto desta, em deriva pelo cemitério, onde tem morada certa, junto do marido e da filha. Molha as flores. Limpa tudo, como se estivesse a tratar de uma casa. Olha para o jazigos. Faz muitas vezes o sinal da cruz. A mim, este cemitério dá-me uma grande paz. Há dias, contudo, depois de cjover, em que os retratos parecem mortos outra vez, sinto uma coisa na garganta, sem Deus, nem Anjos, nem meninos correndo num espaço coberto de folhas amareladas. As patas de galinha, penso, e imagino-as como sustento para um dia, amanhã também, depois outra vez, vezes sem conta pelos dias fora, até à morte. Um adeus. Alice não sabe quem é. Ontem fiquei ali, no torpor das vozes, e ela esteve a olhar para mim, numa desfocagem avassaladora, de miopia, claramente sem reconhecer ninguém. Mas eu insisto em pertencer a esta cidade outrora martirizada, vítima de um medo sem fim, durante noites inteiras ou dias sombrios nas cabeças e no céu, a lamparina sempre acesa junto dos santos domésticos sem asas. Da ponte velha, em grés, vejo o caminho que nos liga à Fragura, igual ao do século passado, mas não vejo ninguém a caminhar naquela terra molhada. O rio fica ali parado, entre marés, a apodrecer na base do aluvião.
terça-feira, julho 07, 2009
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4 comentários:
A foto é muito boa. Digna de um lugar no pódio do foto-jornalismo.
Volto mais tarde pra ler o texto.
Um abraço,
Miguel
Foto e texto excelentes. Rendo-me à evidência. Beijos.
O seu olhar sempre para além da imagem, uma vida inteira, quantas vidas num olhar perdido.
Também os seus lugares de paz no desfiar da(s) história(s). Gostei de o saber na ponte sobre o rio.
Estes relatos verídicos, são autênticas viagens no tempo dum tempo e duma vida que não vivi. Ainda assim, vi as galinhas sem pescoço, cheirei as flores da procissão e senti a nostalgia desses tempos remotos.
Ainda bem que voltei...
Um abraço,
Miguel
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