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quarta-feira, julho 08, 2009

DESCONSTRUÇÃO ANALÍTICA DE UM QUADRO

Quadro em técnica mista Rocha de Sousa

Lasso, perplexo, passei uma tarde quase inteira procurando catálogos das minhas exposições, fotografias, textos, restos de mim, consciente de que esses materiais estão sempre num certo lugar da estante à direita, hoje impossível de arrumar com a respectiva reordenação das muitas publicações. Há coisas, sonbretudo livros, que parecem simplesmente desaparecer. Raramente os reencontro: é como se o meu habitat e eu mesmo nos estivéssemos a afastar no espaço e no tempo, lixo da galáxia mais tarde ou mais cedo absorvido pelo mais próximo buraco negro.
Lá me socorri deste quadro, de uma série de técnica mista que apresentei na galeria 111, por volta de 80. Trata-se de uma peça pluridimensional, com base em fotografias, reproduções através de scaner, entre colagens, coisas redesenhadas, tudo numa viagem pelo tempo e pelas nossas vidas sempre salpicadas de momentos genealógicos, as tias santas e tuberculosas da época própria, prontas a subir ao céu levadas por figuras diáfanas e deixando entre nós, enviesados, registos precisos dos artista do tempo. Aqui se pode viajar de cima para baixo ou ao contrário, e também da esquerda para a direita, nos diversos patamares onde a história começa a atingir os prolongamentos próximos de uma família dividida por diversos lugares e até continentes. O quadro não explica nada disto, não é sequer a sua função principal, mas se a arte emudecer de vez, incapaz de enriquecer a sua autonomia com reflexões expressivas acerca das nossas vidas, memórias, afectos, sinais de sonhos que só a morte pode vir a esconder, então a civilização a que pertencemos terá sucumbido. Uma arte que só se contempla a si própria e ignora as realidades da condição humana, não é quase nada, fará parte das estradas poeirentas dos museus fechados do futuro.

Destaco uma parte, contendo, sobreposta, a última tia, presumo que seja ela, professora primária na serra do Espinhaço de Cão e a ganhar dezanove escudos por mês, tendo casa, haveres quotidianos, mas privada, ali tão longe, de abastecer a sua subsistência alimentar. Talvez as figuras angelicais sobre quem ela se recorta, um pouco torta para se perceber que a moldura era verdadeira, ajudem também a minimizar o desentendimento fácil com a estrutura das medianas do campo. Cena ao alto, na metade superior da composição, isso implica a provável dignificação da prática, da entrega, da ascese, entre fotografias em pose e uma cabeça cheia de rostos jovens serranos, escuros, ouvindo a história dos reis de Portugal.


As viagens horizontais encontram-se com muitas coisas que parecem emergir da realidade menos controversa, ou compostos de afirmação, numa deriva pelos destroços que ficaram agarrados às paredes e que espalham a sua doença às tintas fragilizadas, bocados de continentes, a beleza misteriosa, ao luar, que se assemelha por vezes com a fonte fria dessa mítica inspiração poética. Temos a impressão que a fortuna e o charme de outros tempos se nivelam nos recantos encobertos, os pobres dormindo na rua, ou mortos apenas, vítimas dos actuais dilúvios.


O outro lado dessa pesquisa nómada é reforçado, embora menos ilustrativo, com estes negativos onde a luz parece alargar, por sua conta, o nosso imaginário. O sentido mais profundo perdura, mas há transparências e abstrações que parecem citar, apenas citar, alguns truque da modernidade.



Aqui nos encontramos do lado da percepção visual, soletrando aquele preciso ensinamento de Paul Klee: «a arte não reproduz a realidade, torna-a visível». É muito e é ainda pouco: porque a transferência de um meio de expressão para outro encontra sempre muitos escolhos intransponíveis. Como seria esta imagem, já de si complexa pelos indícios que comporta, tratada ao nível da escrita, em português? Não há jazigos apropriados para tais trasladações, discursos em papel, equivalências reelaboradas pelo sonho, mas a arte é feita de partilhas, de entregas, de desdobramentos quase perenes.


Depois chegam os mais novos, a rapariga que não está bem feliz nem infeliz: acabou porventura de visitar algum espaço de memórias, confrontando-se com os amores mortos e as fotografias felizes espalhadas pelo cemitério. Ela repete-se porque se explica pelo tempo, pela viagem, e pela emergência de acontecimentos trágicos, a morte de alguém. Mas não é necessariamente assim que tem de ser e o rosto dela anuncia, na sua leve inclinação, o sentido das velas, o destino da navegação.


Esta imagem, parte do quadro que temos vindo a visitar, confirma a anterior e, entre as diversas colagens significantes, reelabora outro espectro meio submerso, não em referência aos mortos dormindo de há pouco, mas ao enlace de dois corpos, talvez um acto de amor, talvez, ao contrário, a luta de várias falências quotidianas.


Há sempre alguma coisa que apodrece em todos os lugares do mundo, um excesso, uma acomodação de imagens degradadas, antes das guerras, depois das guerras. Ou as malhas rendadas que amortalham a mesma vida de todos os dias, escurecendo em teia a mesma personagem de há pouco, um fim de tarde, a iconografia melancólica da juventude quando divaga e sonha e pensa pessoas de todos os tempos, entre jardins escondidos e murmúrios de espera.

2 comentários:

Paula Raposo disse...

Gostei da leitura do autor sobre o quadro. Beijos.

jawaa disse...

Em primeiro lugar este quadro é muitíssimo bonito.
Depois, é uma viagem por ele, aprendendo o que nos pode mostrar, dizer, fazer pensar um quadro, e nem precisamente este, mas outros que nos atraem o olhar, algures, aparentemente sem nexo.
Vou aprendendo que podemos ver tudo o que queremos encontrar.
Obrigada sempre.