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terça-feira, julho 28, 2009

ENTRE GUERREIROS E POMBAS, APENAS SONHOS

desenho digital do autor do blog

Coitado de mim, aqui à porta, sem jeito para nada, coisas esquecidas de alguns moinhos de papel numa Primavera agreste. Já se acabaram as ovelhas, os amigos do fundo do vale, afinal a aldeia é só de mim e da minha velha mãe. Aqui estamos, vamos a ver, há duas galinhas, um piriquito por companhia, e por vezes o vizinho de cima vem pedir para cuidar ou guardar algum animal até à noitinha, em certos casos mais tempo, é gente pouca de Vinhais de Cima. Vale tudo uns tostões mas por vezes pagam-nos em alimentos, enchidos, pão, bocados de carne assada, uma garrafa de água. Eu faço uma parte da lida da casa e a mãe lamenta-se de eu estar aqui por causa dela, sem emprego nem estudos. «Já tens quase dezoito anos, moço. Tens de sair daqui». Fiquei a pensar que não sabia sair dali, nem do cerro, nem do vale, se já não guardava ovelhas, guardava galinhas. O senhor Artur tem um galo e já o deixou aqui umas poucas de vezes. Mas ainda não vi os ovos. Se a coisa pegar vou ter trabalho com os pintainhos. O filho do senhor Artur, que está muito longe, em Aveiro, vai ser doutor mas já disse ao pai que virá ao lugar ajudar na pecuária. Talvez nessa altura eu já tenha uma catrefa de pintos, dos pintos guardam-se os machos e de galinha em galinha as coisas podem dar bem. Eu sou daqui, coitado de mim, rezo aos montes, foi a mãe que me ensinou, pedindo dias melhores. Digo aos montes que é preciso haver muitos pintos. Agora nem dormir posso, estão sempre a passar no escuro guerreiros a pé, com cajados e barretes e máscaras, vem um morcego branco por cima deles, estremece a terra com tantos passos, todos os dias assim. Mas estas doidices só podem ter sido contadas quando eu era menino, porque os sonhos que gostava de sonhar são aqueles com as ovelhas a parirem, um ou outro cão esganado, as árvores inclinadas pelo vento, sempre aquele uivar pelas serras e o choro das folhas embrulhadas no raio do tempo.
Mas isso eu sei ver e até gosto. A velhota diz que não há morcegos brancos, só pombas dos castelos. E também já não é tempo de guerreiros, as terras estão conquistadas e afeitas, nem a família do Artur atravessa uma serra para espavorir o sono entaremelado de moços como eu. Mas posso estar a fazer o mundo outra fez, em sonhos. Não me dizem que o mar é assim como uma parede azulada, ao longe, sem fim? Daí pode aparecer um sonho, barcos desses que andavam pelo rio, carregando coisas. Agora, escangalhado, não há cabras, nem ovelhas, só duas galinhas e um galo emprestado. Mas como é que posso mudar o sonho só com a lembrança destas poucas coisas? O sonho somos nós. Tudo o que vejo nos sonhos é mais meu do que as histórias de lobos, medos, passos nas casas, essas coisas todas que o senhor Artur conta, escarninho e sempre a beber, babado.

3 comentários:

jawaa disse...

Os meus sonhos também não são iguais aos de ninguém. E por vezes tenho a certeza de que ninguém gostaria de tê-los. Nem eu.

José Brito disse...

Prezado Mestre,

Parabéns pela pintura bem como pelo texto.
Sonha quem acredita num futuro melhor e, o meu prezado Mestre e Amigo, tem a dimensão do seu próprio sonho.
É ele que nos alimenta a alma, nos faz acreditar e ter esperança num futuro melhor.
Bem-haja pela coerência e lucidez
Um for abraço

José Brito

Miguel Baganha disse...

Ocasionalmente, todos nós nos vemos sonhando realidades. Uns mais utópicos que outros, é um facto. Mas independentemente deles serem exequíveis na realidade dita real, importa saber que os sonhos -conforme diz: somos nós.

Assim mesmo: "Génios-para-si-mesmo-sonhando "

Um abraço da gaivota.

Miguel