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quinta-feira, agosto 06, 2009

CEMITÉRIO E MORGUE DOS NAVIOS MORTOS


fotos de Rocha de Sousa

Seixal, tempo anterior. Lugar de abandonos e novas presenças, grandes restos de máquinas em ferro, silhuetas enganadoras de carros de combate, feridos por fora e rasgados por dentro, vazios num torpor de sonoridades chegadas da estrada marginal. Há um bater de ferros e latas por ali, para lá do pântano, coisas soltas em parte mergulhadas nas matérias esverdeadas e lodosas. De longe, na estrada em curva, os carros passam e há pessoas ensaiando a vida nos seus passos de domingo. Mas aqui, mais passos em frente ou em volta, ainda se descortinam pedaços de casas desconstruídas, cadeiras velhas, lavatórios, ferrugem até nas pedras. E os carros de combate? E aquele buraco em ferro onde os rumores do trânsito pareciam convocar arrastadas memórias da guerra? Ali não, afinal, nem mais além, onde as empenas de metal corroído não passam de restos de grandes navios, serrados de cima a baixo várias vezes, desmontados, despintados, examinados assim na morgue que lhes preparam um lugar transitório no cemitério dos mares. E é verdade, caso a caso, montes de ferros, hastes dobradas, janelas de comando, metal amolgado e ainda com parafusos presos, ao lado de buracos redondos, pequenos, de outros parafusos que os batimentos manuais suprimiram. Nem tanques nem barcos, nem mesmo navios. São monstros marinhos depositados como monumentos escultóricos, de vontade e de acaco, formando memórias da arquitectura das navegações, agora peças meio soltas, por vezes mito altas e gemendo ao vento, máquinas navegantes e mutiladas, entretanto meio imersas na superfície lododosa, entre cheiros a maresia e gritos de gaivotas girando por todo aquele espaço a picar algum bicho de consistência apropriada para voar até ao ninho e filhos dela.
Vieram os homens, os que trabalham na apanha de bivalves entre fedores inconsequentes e os que pertencem à desmontagem dos ferros, como quem derruba árvores para exportar madeira. Máquinas vivas avançam por meio de lagartas de aço, elevam guindastes com garras suspensas da ponta. E há vozes de comando. Vozes longe e perto. Martelos batendo carcaças já rasgadas e semi-desfeitas, corcovas de ferro oxidado, e a grua roda, deixa pender um grande disco com garras abertas, roda, roda, pára, espera, e de súbito deixa cair as mandíbulos sobre um monte de sucata de belo efeito. O ruído dos dentes a fechar-se e dos ferros semelhantas a latas de brincar, mais e mais, vai firmar-se num uivo de sucção, o disco subindo e levando consigo várias toneladas e metais meio configurados que já desempenharam funções leves e pesadas numa grande unidade de carga ou eventual petroleiro. Espalhados pelo cemitário, já ninguém lhes recohece nome, matrícula, origem, décadas de história. As serras operam entretanto de alto a baixo, cortando fatias e fatias de muros espessos, agora rangentes e porventura, de longe, semelhantes a latas que qualquer tesoura rasgaria quase em silêncio. Senhores, vejam isto uma vez na vida, vale bem qualquer doca de Nova Iorque. É um cemitério lindo, uma instalação interestelar, os restos de grandes naves que tombaram sobre a terra, talvez anunciando vida semelhante à nossa em pontos invisíveis a cerca de dois milhões de anos luz.

2 comentários:

Miguel Baganha disse...

A beleza encontra-se na forma como exprimimos o seu conceito. Mas poucos são os que conseguem fazê-lo assim, João. Visceral. Parabéns.

Saúdo-o com um poema de meu pai:

" Todos nós
Podemos ter a forma
Semelhante a qualquer coisa...
Mas nunca a semelhança
Daquilo que nós somos. "

( Ruy de Portocarrero )
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Um abraço,
Miguel

naturalissima disse...

De olhos fechados escutei em voz-off estas imagens a cores, registadas em prolongados travellings, paraliticos a corte em curtos insertes a preto e branco. Silêncios que gritam sequências mais bruscas, quebradas por imagens em fundido encadeado numa melodia mais suave, voltando ao grito e terminando num fade out para negro.

Belo. Muito belo.