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quarta-feira, agosto 26, 2009

HORA DE SOMBRAS OU MADRUGADA DE MORTE


fotografias de Rocha de Sousa

Foi no tempo do Melícias, estás ou não estás lembrado? Tu andavas aluado por causa da maluca da moça do Entradas, a Vergina, mas os homens vieram correndo, a apitar, pendurados das carrinhas, dos carros, das mulas, e gritavam para a gente se chegar de lado que vinha aí mais pessoal. Então já se ouvira dizer que os cães haviam ladrado, outros uivado, ficando em silêncio durante mais de uma hora. Não se ouvira nada de nada nessa hora comprida. Tu tens que estar lembrado, homem, eu bem sei o que digo. Antes de tudo acontecer os cães ladravam de hora em hora, mas no intervalo não havia grilos, nem ruídos de outros bichos, nem deslizes no restolho de pássaros atrevidos com o medo, nenhum deles saía das tocas. E havia aquela luz coada, uma coisa entre a noite e a madrugada, um peso no respirar. Foi por aí que se ouviu um terrível sopro, grandioso, vindo além do cerro, e a terra começou logo a bater pedras, mais pedras, rolou muita grés da parte seca, perto do mato, e daí a nada abriram-se fendas fundas, negras como a noite. Os telhados da Mariazinha cairam num instante, então sim, as galinhas quase voavam a cacarejar, e a moça também, a correr, a correr, os cabelos pretos como gavinhas abanando estouvadamente, cadelas e cães, até ratos. Toda a gente veio para a rua, ali na praça, e houve quem mijasse ao ver o alcatrão a quebrar, de longe as sirenes, de longe o roncar das camionetas, os bombeiros, a malta da cortiça, não havia ordem, a terra parecia ferver salpicando bolas das entranhas, umas pedrinhas meio quentes, e depois chegou a guarda para evitar a malandragem de se aproveitar de tudo, das portas abertas, dos vidos partidos, das galinhasa correr, Vergina a chamar por ti, perdera a vergonha, dizia palavrões, malvada, malandros, quem é que reza agora, senhora?, agora é só fugir, fugir para os descampados, porra, lá desgraçam os barros do meu pai, barros, sim, muitos barros já feitos e pintados e cozidos, prontos para a merda da feira. Era um circo do mal, um circo do inferno, cinco minutos de cagaço e horas e horas aí por esse mato fora, pelos casebres, a salvar gente, a levantar vigas, a escorar tectos e paredes, e tudo acabava por cair, esmigalhando as mesas, candeeiros, cadeiras, sacrários, gatos e cães. Vai lá enganar outros, com essa do não foi bem assim. Dessa maneira, nada de nada de como a gente vê e diz. Vai perguntar à Vergina.





Olha, olha, então eu não vi?

Nada de nada, nunca. Vai perguntar à Vergina. Até se mijavam, agarrados
uns aos
outros, mesmo junto ao café do Almerindo.

Quando amanheceu, devagar, ninguém arredava pé.
Espreitavam os que podiam e cortavam a garganta de tanto gritar.

Deus? Deus estava a dormir, nunca dá por nada. Nada de nada

2 comentários:

jawaa disse...

Uma bela descrição de qualquer coisa inopinada e incontrolável que aterroriza todas as classes sociais, dos humanos aos não humanos.
Acaso sentiu o último sismo de há semanas, que foi além dos 4ºRichter?

Miguel Baganha disse...

Memórias são quadros, que podem ser coloridos ou não. E quadros assim não se apagam. Permanecem suspensos, negros e fragmentados, deixando destroços espalhados por toda a alma.
Bela narrativa de uma hora poéticamente sombria, João.

Seja bem-vindo a casa, «Autor de autores sem heterónimos».

Um abraço,
Miguel