A mobilidade visual, no espaço da aparência e da representação, não é propriamente uma teoria; no fundo, é mais uma praxis, mostra-nos a inevitabilidade, e mesmo a urgência, em nos deslocarmos no plano real, a par de apropriadas convocações da memória. Os pontos de vista têm de se multiplicar cada vez mais, consoante o intuito da nossa aproximação.
As grandes estátuas da Ilha da Páscoa, que sempre olharam de frente, a defender ou a vigiar não se sabe o quê, sairam das mãos de uma gente que imaginou porventuta tais deuses, sem olhos e portanto sem o dom da visão. É que a visão de si que esse povo teria quanto ao destino fixava-se na produção daquele bem, algo que o sinalizava e o protegia. Era um longo conjunto de actos que não parecia decorrer de uma experiência perceptiva aproximada de tais formas, inexistentes no contexto da ilha, antes deveria nascer de um outro modo de ver e da própria natureza do meio, do procedimento instrumental, de uma prioridade assim, lúdica e assaz permanente. Dir-se-ia que este povo misterioso concebera a infinitude no finito, retirava daí o seu conforto, como que superiormente destinado áquele lugar, cego para a expansão, preso para o crescimento, alheio à ideia de partir.O homem sempre se dedicou, tanto para se guardar como para se condenar, à idealização dos seus deuses e heróis. A mitologia, num sentido lato, pairou longamente sobre as civilizações de eras distantes. Conhecemos todos esses casos e as suas ressonâncias simbólicas, uma teologia obscura. Herói mítico, deus à sua medida, Sísifo, que Camus interpretou de forma soberba, tornou-se conhecido por aquele trabalho a que fora condenado, rotineiro e dilacerante. Tratava-se de um castigo para lhe mostrar que os mortais não têm a liberdade dos deuses. Os mortais têm a liberdade da escolha. Essa é uma das suas superiores afirmações, integrando ideologias e a esperança. Mas o mundo que gerou o castigo de Sísifo concebia que a escolha obrigava à concentração nos afazeres da vida quotidiana, vida só assim vivida em plenitude, tornando-se criativa na repetição e na própria monotonia.
Esta questão é essencial. Curiosamente, Sísifo morreu de velhice e foi considerado um grande rebelde, juntamente com Prometeu. O trajecto dos homens, sendo estruturalmente idêntico ao de Sísifo, desviou-se muito cedo daquela relação entre liberdade e escolha. A escolha implica uma responsabilidade decisiva, ligada aos efeitos sobre os outros e o mundo. Inclui o devastador direito de renúncia. O homem quer sempre ulgtrapassar os seus limites, abrir-se a mais território, por exemplo, num fio indeterminado de novas apropriações. Constrói e destrói, como na parábola da pedra. Mas procura contornar tal condenação e descobrir maiores benefícios para além da rotina, crescendo, amontoando informação, virando as quantidades de tudo e dos próprios benefícios contra si. A abastança em desequilíbrio contraria a simetria doUniverso e pode provocar a implosão ou o caos absoluto.
Já não vemos nem representamos o que vemos. Com razão à partida, porque ver não é contemplar: é sair ao encontro das coisas, é recriar a dinâmica do transpoite da pedra, esboçando atalhos. Mas de nada serve erguer e multiplicar aleatoriamente mais montanhas, juntas, sobrepostas, cada vez maiores. A arte não nos pede o excesso incomportável nem o deserto de todo e qualquer sentido. A grande dependência das construções em vias de implosão pode ultrapassar a crise da Natureza, em parte gerada pelo homem, mas redes sistémicas de uma civilização baseada no dinheiro e no crescimento sem retorno, também podem pulverizar-se com a renúncia de Sísifo. Nem todos pensam em falência na repetição sisifiana: mas a verdade é que ele não tem o poder dos deuses e um dia o mundo acabará encurralado como os conformados habitantes da Ilha da Páscoa, outrora.
Não foi por acaso, a seu tempo, que Albert Camus começou o livro «O Mito de Sísifo» com esta frase: «Só há um único problema filosófico: é o suicídio».
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Extracto do livro de Rocha de Sousa «Obra de Ninguém»
2 comentários:
Este excerto do seu próximo livro é uma das mais pungentes, subtis e profundas análises que exemplificam a Condição Humana, João. Aquilo a que tão sábiamente, Camões chamou de " estranha condição ".
Exactamente, assim: a estranheza tão natural e tão grave de que todos somos feitos.
Através dos tempos, o Homem, construiu e destruiu, erigindo monumentos e edificações. Sempre num incessante movimento tão rotineiro quanto infrutífero. Súplica aos Deuses, na esperança destes assegurarem a sua mesquinha presença na eternidade.
Até hoje, essa mudança nunca ocorreu mas duma forma ou doutra, todós nós continuamos a entregar-nos à metamorfose dos Deuses.
( agora, está na hora fácil. Vou rolar o calhau outra vez colina abaixo. )
Um abraço,
Miguel
Problema filosófico que Camus recusa na sua teoria do absurdo. Resolve-o da mesma maneira que o fazem as pessoas inteligentes: gozando o tempo da descida da melhor maneira possível até chegar à pedra que o espera lá em baixo...
A amostra do seu novo livro promete dar que pensar: liberdade, escolha, responsabilidade... o devastador direito de renúncia.
De momento, discordo de uma afirmação de AC: «le temps est notre pire ennemi».
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