A velha senhora estava a rezar o terço no filme que secretamente fiz desse gesto. O segredo da arte, no vídeo ou no espaço do medo, é semelhante ao que se passa com o mistério da fé. A senhora dizia palavras para dentro de si, nomes e verbos cujo vago sentido se projectava no interior da cabeça. Aqueles dedos, envelhecidos mas estranhamente decididos, permaneciam imóveis, só se moviam, invisíveis, quando a oração levava à escolha de outra rigidez redonda. Nesses instantes, a memória já guardada abria-se em imagens curtas, superfícies lisas, convexas, brandas, entre outros registos, talvez contrários, a dois milímetros do lado côncavo, milenário, de um fragmento de crâneo. Ou isto ou algo de semelhante, vagamente a cores. As memórias assim, feitas de presenças ininteligíveis, ou quase, serão restos da memória toda, lixo também, cortes neuronais sem princípio nem fim? Essa realidade virtual, certamente absurda, pode servir para fins que desconhecemos, como os pingos de tinta, sobrepostos, a que conferimos autenticidade estética, porventura plástica, sem os limpar do universo da pintura em redor. Essa escolha parece por vezes maquinal, um acaso sublimatório. A arte acolhe e coisifica cada instante assim, procurando dar ao visível meios de decifração do inominável. É a curta entrada de ar nos pulmões quando sofremos uma paragem cardíaca logo superada pelo fio da electricidade restante. Então podemos voltar ao lado sólido e redondo do real, dedos a contar mais uma Avé Maria, por exemplo, no encobrimento das emoções, a razão como que suspensa, motor parado, o sangue a correr sem se sentir, impulso aparentemente arbitrário que enche toda a rede vascular dos corpos. Nas veias que serpenteiam só o manto cutâneo daquela pele enrugada, tocada pelas pétalas sépia das margaridas. Na Avé Maria que não passa de um pretexto para ordenar a simulação sisifiana do destino humano, paragens e andamentos fortuitos, cansaços e imagens sem nome, duas avé marias no corredor da garganta, imagens atrás dos olhos, olhos fechados ou abertos, tanto faz, eles voltam-se ao contrário para receber as mensagens do cérebro. Mãos postas. Um rosário faiscando. O filme. E entretanto, num espaço milimétrico, outra imagem, diferente, sem referências, caída para o lado da retina numa cintilação deslavada e abstracta. Um frame do ser? Um pingo da alma?
Aqui fica, para quem me ler ou ouvir, a importância transcendente das pequenas e inúteis deixas do ser, partículas do invisível, o lado inconcebível da vida como segredo que se desvenda na retoma da aspiração do ar, suicídio interrompido, talvez princípio da fé contada em avé marias e da arte em restos de tinta volátil. Ou o mais remoto instante que parece legitimar a infinitude de cada percepção atrás do limite.
Um comentário:
Gosto dessa imagem milimética, deslavada. O pingo da alma chega para encher uma viagem sisifiana.
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