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sexta-feira, agosto 27, 2010

DO DILÚVIO ÀS LAMAS ASSASSINAS E ETERNAS

cheias diluvianas no Paquistão

Já não sobra tempo
para limpar toda esta lama.
Donde vem tanta água, tanta lama,
agora que as ondas do mar
foram devolvidas ao oceano?
Talvez do céu mudado em metano.
A demorada persistência dos fumos
parecia clamar pela chuva como salvação
e alguém respondeu a isso com mais lumes.
Chuva de lama, enfim, a cair sobre a terra,
Sobre cada serra,
e milhões de pessoas vivas
assim sepultadas, sofridas,
ou submersas,
imersas
no pântano imenso
em que o mundo se tornara.
Oratória do medo mais intenso,
além das guerras e de outras mortes,
outros corpos apodrecendo então
por todos os declives de encostas fortes
até ao apagamento de todo o chão.
Silêncios rasgados.
Rumores pressentidos.
E ainda corpos descarnados em velhos jardins,
talvez nos sítios encobertos onde floriam giestas
ou mesmo nos poços plausíveis das florestas
entre o zumbido dos insectos carnívoros
que sempre ali haviam permanecido,
além de todos os males do homem afinal vencido.
Gárgulas sangrando, desertos e gargantas,
caules mastigáveis, suco escasso de plantas,
tantas,
todas, quebradas, quase secas.
O destino destes povos, de quase todos os povos em volta,
decide que sejam soterrados, sem revolta,
o mar por cima,
a terra também,
como as cidades estilhaçadas
e os caminhos e os animais,
esgotados,
apagados,
vivos nunca mais.

fotografia de rocha de sousa

domingo, agosto 15, 2010

OS INTESTINOS DO IMPERADOR E O FUTURO

3
Deslavado, obtuso, os olhos fixos no vazio, este «trinca espinhas» era o rei mais novo dos povos ditos cristãos, ainda mal integrados na orla sul da nação, gente de roubos amnistiados, filhos de um recrutamento selvagem e com belas promessas relativas a essa terra, uma terra luminosa e branca, com praias onde o oceano vinha derramar-se, devagar, em pequenas ondas que rolavam murmúrios sobre a areia longamente salpicada de pedras redondas, afeiçoadas, grande variedade de conchas, detritos de cascas rudes, outras brilhantes, prata ou lilás, espólio de milhares de vidas ali acabadas.
O rei sempre ouvira falar na dilatação da fé e do império. Reuniu os nobres e disse-lhes que queria atravessar os males do sul e continuar o reino além-mar. Os nobres, assombrados, discutiram durante três dias e três noites se deviam ajudar o rei. Acabaram por aceitar a aventura, se este tivesse maior número de recursos humanos. O rei tinha estado sempre calado, e havia dormido as noites da duração da conferência. Ao cabo de três meses, o rei assim se fez acompanhar, metido na sua carruagem almofadada, cavaleiros à frente e atrás, ladrões agenddados como mercenários, a fingir de peões da irregular infantaria, dias e dias a pé, enquanto as provisões vinham na rectaguarda, animais de porte, gente em massa, amassada, embebida no pó e nas ordens dianteiras dos capitães, lacaios de fidalgos, uma frente luxuosa, areada de véspera, hirta, carregada de adereços ou bonitos arreios. As outras coisas, talvez as mais secretas, seguiam numa viagem paralela por mar, a costa à vista, barcos vários, também de gente vária, vinda dos pactos como outrora, senhores de guerras santas, de muitos genocídios e pesados saques, fortaleza a fortaleza.
Em terra, já acantonados para além das praias, os exércitos do rei esperavam por sinais: e toda a gente viu, um dia, uma longa faixa de gente vestia de branco, cobrindo por completo a orografia acidentada do horizonte. Os cavaleiros tentaram dissuadir o rei do que poderia ser um verdadeiro suicídio. O rei, de pequenos olhos meio fechados disse apenas:
«Há fé. Há o império». E, por estranho que pareça, partiu à desfilada, na cega decisão de enfrentar aquela gente ao longe, infiel, desamada de Cristo. As hostes do rei não tiveram outro remédio senão partir, enquanto viam o inimigo abrir-se em grandes tenazes por onde detriam que entrar. O impacto foi clamoroso, seguido pelos mercenários que metiam coisas ao bolso e abriam crâneos às cenetnas. Os frecheiros procuraram cobrir a cavalaria, acossando os adversários, com tiros em arco, na sua rectaguarda. O rei cavalgava ao longe, cada vez mais absorvido de muçulmanos, e era ferido de raspão, aqui e ali, gritando que o Império seu seria seu, em nome de Cristo. Numa colina lateral um homem trajando ao mesmo tempo de civil e de sacerdote, erguia-se em nome de Alá, pregador e Komeney, talvez imperador, sim, teocrático e como que vindo do futuro. Mas ele mesmo não resistiu a uma lançada cometida por um pigmeu ensandecido, golpe que o fez cair de joelhos e derramar para o chão a massa borbulhante dos seus intestinos.
É inenarrável o resultado desta trágica batalha, o rei desaparecido, a cavalaria destroçada, muitos nobres prisioneiros, um mar de corpos e de sangue, bandos de mercenários fugindo em direcção às praias. O espólio caberia aos vencedores. Entre os mortos com cruzes ao peito, jóias, arreios faustosos, números em madeira, quase sempre o algarismo 3, porventura código de algum dos batalhões. Os intestinos do falso Imperador, aliás o próprio corpo, foram acomodados na sinagoga de pano. E muito pano rosa por dentro, bordado a rosa, estandartes das duas partes, vermelhos e pretos, decorados a ouro. Fatos de guerra, armaduras, luvas, armas estilhaçadas, cabeças ainda ricas de pedras raras, e sempre o número 3, talvez escrito por Deus quando fazia as contas sobre as consequências desta batalha, do sentido da derrota (num relâmpago) daí a mil anos ou mais: porque os seus anjos haviam descoberto, entre lanças e espadas, pistolas metralhadoras, canhões sem recuo, rádios e muitas fotografias do que parecia ter sido uma batalha longa, talvez acontecida já no terceiro milénio, do Irão até ao Egipto. Seria este o famoso efeito de borboleta? As coisas estavam ali e não podiam estar ali: a Sua omnisciência dava-lhe conta, nos cortes do tempo, de mortes e ressurreições inesperadas. Deus procurou enviar emissários para certas zonas problemáticas, a fim de compreender se os exércitos haviam sido expurgados de armamento ligeiro, do fim do século XX. Sentia-se fragilizado e acabou por perder os seus correios, mortos como espiões ao serviço de potências estrangeiras. Alarmado, o próprio Deus terá telefonado para a ONU, donde ninguém respondeu.

pictogramas digitais de Rocha de Sousa

sábado, agosto 14, 2010

BICHOS, GENTE E A VOZ DO POETA PASTOR

foto de rocha de sousa
Sinto a boca seca de tanto gritar
no imenso vazio das palavras todas.
Por cada silêncio devagar
presumo que escuto o murmúrio das larvas
ou talvez o rilhar incerto das cabras,
essa maquinal mastigação do pasto já duro e pobre.

Sou pastor, penso então, desde o amanhecer.
Ou talvez a partir de ontem, na terra, sem nada de mim,
durante a hora pesada e lenta e nobre do entardecer.

Agora, descortinando o lado donde vim,
sobressaltado com a paz estafada a meus pés,
olho para o lado inverso, de pedra, para ver onde calha o fim.
O sul, outrora brando, era devorado por chamas altíssimas.
Balindo, pateando, tão gente como a gente que foge,
as cabras correm na sinuosa tontura do medo aquém
e eu grito de novo, quase rouco, aos bichos e a essa gente além.
Desdigo o caminho para o lugar da morte
e aponto um outro lugar, provável salvação da vida,
muralha ou ladeira de todas as veredas,
a norte,
saída mítica para gente como eu, folhas de vento na ida,
palavras soltas, velhos e crianças, a travessia de um deserto
na fuga ao inferno empurrado do sul,
chamas no horizonte aberto
onde se calou a sorte
e nos aponta a norte, contrário à lenda, largos céus de azul
impensavelmente penetráveis pelas chamas e pelo fumo
ainda longe atrás dos nossos passos,
nuvens aqui e além, descompassadas.
Julgava ser escritor, campos e serras para sustentar alguém,
afinal eu mudado em pastor de cabras e desta gente desacontecida,
pastor de acaso, pensante, partindo da coisa lida
porventura em nome do desatino feito destino.
Destinado serei eu quando julgo ser de uma regra só?
Não assim: porque o destino não acontece, inventa-se.