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sexta-feira, setembro 24, 2010

OBRA DE DEUS ECOGRAFADA NASCEU MORTA

fotomontagem pouco antes do infausto acontecimento
Alísia foi mulher na altura própria, tinha um corpo agilizado e fresco na forma já sensual, coxas flamejando a precocidade da sua avisada saúde, e usava então os cabelos compridos, sempre soltos. A sua vida na Universidade veio a desenrolar-se com clara naturalidade. Pertencia a uma geração do tempo do Erasmos, das viagens que atravessavam a Europa, dos casamentos emplumados e brancos e míticos, ancorados nos portos nupciais ou depressa em casa, já feita a partilha dos corpos, por vezes com filhos vindos das primeiras entregas.

As famílias, na classe média, esboroavam-se pelas lisboas da concentração defeituosa, mas Alísia, mesmo depois de casada, ainda podia abraçar os pais, alguma avó, primos e primas do engenho genealógico. O marido jogava bem o jogo dela, depressa saltaram barreiras, o primero filho, por exemplo, que era oferta do sangue e representação da família na lembrança do mesmo enlace.
Eduardo e Alísia retomaram trabalhos e estudos, como se nada de preocupante tivesse acontecido. A família ajudava-se em certas horas de ausência, as irmãs, os filhos, essa comunidade cujas raízes subiram do fundo do tempo, regulares.

E um dia, em pleno jantar da irmã mais velha, Alísia levantou o corpo mal borrifado de vinho, fez um ar sério na direcção da rapariga, e disse:
Sabes, Maria, este jantar não é só para saudar o teu aniversário: serve também para te dizer que vais ter mais um sobrinho. Está aqui, dentro de mim, já a crescer, e peço que façamos votos para que tudo aconteça por bem.
Um ano depois dessa alegria materializada em festa, depois também da precoce cerimónia do baptismo, o ritmo da vida do casal estabilizou numa espécie de velocidade de cruzeiro, entre o trabalho, a família, os projectos cuja dinâmica já lhes concedera coisas e favores. Mas isso envolvia a ideia de um segundo filho, gravidez tentada, preparada, assumida quando os sinais acusaram esse princípio dentro do seu habitat de metamorfose.

A barriga de Alísia foi crescendo e ela dava por si, reclinada na sala, a sentir uma gostosa turbulência dentro do seu corpo, pontapés de que toda a gente falava, a pele do ventre dia a dia cada vez mais esticada, começando a formar balão, e um rosto placido de mãe, seguro, aberto às amenidades dos encontros. Houve momentos, apesar disso, sob os imperativos da espera, em que Alísia sentiu alguma impaciência, afagando a barriga para se aquietar com as respostas daquele ser entretanto diagnosticado no senso da ecografia. Por agora não é menino nem menina, dizia a médica a sorrir. Porquê? Porque não está em posição para se ver sem qualquer dúvida; e este feto parece caprichoso no comportamento dentro da sua bolsa. Alísia ficou um pouco ansiosa mas não exprimiu essa impressão a ninguém. Decidiu passear mais pelo bairro, quase todas as tardes. Ficava, com frequência, a olhar os meninos do parque que ali fora instalado, e deixava a mão deslizar distraidamente pelo volume redondo do seu ventre. Vigiava (quase sem o saber) a presença lúdica daquela vida a que se sentia ligada por estranhos laços, algo cujo sentido não era capaz de relacionar com o emergir da maternidade, com esse transporte para uma outra dimensão, a ideia do privilégio ou de bemaventurança. Se calhar tinha um sentimento mais social e comunitário, embora terno, da sua relação com o filho e o próprio papel que ele viesse a desempenhar.
Neste percurso natural e contudo bem complexo, Alísia, ao sentar-se no jardim, pensava cada vez mais na sua responsabilidade enquanto mãe e ser cívico. E, dia a dia com maior acutilância, a sua mão apalpava a barriga. Num dos dias da primeira semana do sexto mês, depois de observar com bonomia os gestos das mães estimulando e zelando pelos filhos no parque das brincadeiras, Alísia julgou perceber, de repente, que algo se passara no seu ventre. Procurou respostas mas o filho parecia adormecido. Um dia, dois dias, e o alarme biológico fê-la pensar na existência de qualquer mutação naquela enorme bolha de vida secreta que tinha sido, até então, o palpitar da sua gravidez. O marido ainda tentou sossegá-la, podia ser apenas a característica de uma fase. Pois sim, dizia ela, mas isso não nos deve impedir de sondar o estado do nosso filho.
Marcaram uma ecografia para a manhã do outro dia e apresentaram-se à médica com a maior naturalidade possível. Sentiu algum incómodo?, perguntou ela a Alísia. A moça encolheu os ombros: Não, não senti nada, talvez tenha sentido de menos.

O exame foi demorado, a médica concentrava-se o mais que podia, criando alternativas de visionamento e usando, por fim, apenas o estetoscópio, sempre a mudar as áreas de escuta. Depois de uma ligação ao amplificador, e olhando o registo horizontal no monitor, a médica acabou por desligar tudo, limpando, com algum desencanto, o ventre de Alísia. Afinal era uma menina, disse a médica num murmúrio, sem perceber que adiantara a notícia. Era? Sim, minha querida, lamento ter de lhe comunicar que a sua filha, por razões incertas, faleceu há algum tempo.
Alísia foi então, no hospital, submetida a uma provocação expulsiva do feto, com a química habitual usada em casos semelhantes. Teve de esperar mais desta vez para um parto absurdo, uma espécie de paradoxo. Quando a resposta do corpo começou a chegar, e apesar dos preceitos de circunstância, Alísia viu-se compelida a ajudar o mais possível a que Deus acabasse a sua obra incompleta. Um parto assim, doloroso em dois sentidos, pela vida e pela morte, é um acontecimento humilhante, que reforça tantas das perguntas expressas por homens e mulheres em torno dos seus casos, das suas frustrações ou desistências. Alísia sentiu que tudo terminara, embora soubesse que terminara vários dias antes. A Natureza não tem consciência moral. E os erros da sua pulsação estão quase todos fora do nosso conhecimento racional.

Alísia, pálida mas segura da sua inocência, teve de ficar retida no hospital para que nenhuma sequela a afectasse, com melhor explicação e igualmente nenhuma justeza.

2 comentários:

Miguel Baganha disse...

Fatalismos ou meros infortúnios do acaso?, não sei. As definições, crenças ou desígnios não importam tanto para quem perde uma parte de si mesmo.

jawaa disse...

Uma dor como essa que adivinha deve marcar a fogo qualquer mulher, também pela inutilidade dela.
Dor difícil, nem sempre bem compreendida.
A Natureza é fria e dura perante os padrões de afectividade própria dos bichos e não só da consciência dos humanos.