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segunda-feira, outubro 11, 2010

ODE À SAGRAÇÃO DAS PALAVRAS PERDIDAS


Deus escreve-se agora de outra forma, dEUS. Ninguém sabe quais as letras que são dignas, uma, duas, ou quatro ou três. Escritas que remontam ao século XX, a cidade entre datas, rasgões uns após os outros e muitos mais a montante, god, meus, quatrocentos e setenta e oito há dias, armas aperradas, barreiras e ruas e descolagens sábias, outras vorazes, curtas, incompletas. Nada disso releva da verdadeira vida quotidiana, manhã com nuvens assim, arrendadas, arroba, margem de um rio desconhecido entre barragens, d de deus, zeus, Odan num sítio lembrado por Camus, junto ao mar, gaivotas, não pombos, gente morta, jornal. Cada tira de papel descola-se ao vento, enrolada nos dedos, devagar, como aquela nuvem suja de Outono, tempo cuja caligrafia passa por dentro da chuva em Novembro, letras enlameando o chão, bocados de papel e cola endurecida, risos, rio, rombo, o barco feito de palavras em garamond, velho do velho Armindo, 16, cliente amputado do t e do e, agora arrastadamente senil, a vender castanhas, pobre barco sem b, B grande, Caixa Alta, mais algarismos soterrados num rasgão, fundo negro e pasta para colar rolos de papel. Por baixo das linhas horizontais, corte sobre corte, há serviços propostos, três, um 4, uma haste de H, dobras penduradas, enoveladas, entre mais descolagens rasgadas, grandes letras em baixo, incompletas, indecifráveis, por cima talvez ARRECADAÇÃO, um buraco até ao fundo da parede metálica, esquina que deus dobrou como qualquer homem invisível, os carros devagar, pardos, passando a diesel, Godot ou a palavra GOS, pode ser gostei, gostava, gostaria, rasa a parede cinzenta, entre buracos, vinte ou trinta camadas de cartazes, imensos, molhados, tardios, morrendo sobre letras salvadoras e nem sequer uma garatuja de meninos nascendo moços, zonzos de jogar o múmero ou a letra imprevisíveis para milhões de pessoas encobertas, passos, pernas inventadas malogradamente magras, pontas de um R meio escondido que impede perceber onde acaba a palavra ali começada, substituída, coberta com mais conceitos publicáveis, pública forma, Agosto ardendo, mais cola. Outono e as folhas empurradas, secas, sobre as pedras de calcário cúbicas, não escritas, pensadas, olvidadas, aqui se escreve e aqui se descreve, se desgasta e resgata, hoje sobre ontem, manhã, amanhã, deus rimando com zeus ao lado dos meus intransmissíveis sonhos. A cidade está morta. Deus ficou à espera. Ninguém sabe como descolar de nós esta dor vagarosa no limite da cegueira.
_____________________________________________________________ imagem: fotografia e técnica mista, de Rocha de Sousa

Um comentário:

Miguel Baganha disse...

De facto, as emoções vão-se fazendo e sobrepondo em nós. Por camadas. E aqui, tal como na realidade de cada pessoa, elas são descoladas uma a uma na medida da memória fugaz.
Uma "Ode à Sagração das Palavras Perdidas" ou meras "Coincidências Voluntárias" descritas por um artista singular. Grande.

Obrigado por este momento, amigo.
Um abraço.