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terça-feira, novembro 23, 2010

OLHOS NOS OLHOS, OLHARES INTRANSITIVOS


Ninguém pode escrever o não limite de todas as teias. Desde os teus dedos finos, do teu olhar límpido, à barba encrespada do meu rosto. Olhas inteira para mim, tanto tempo depois, e já não encontras os sinais que animava a tua própria vida. Não sei se esta forma de estar anuncia a brevidade do tempo que me resta: tu olhas e também não sabes, sobretudo porque a tua vida só agora começou: passos destinados, saltos, os ombros em cruzeta, sem medo, vogando por cima da água turva, a retina e o sexo, vais com elas, as tuas amigas, quando eu ainda tinha essa idade e te pedia um bocado do capote por causa da chuva. Tu entras sempre nos meus livros que não chegam a ninguém, ficas apenas próximo do meu coração de trapos, deixo-te a vida completa de personagem amada, close-up do meu beijo escondido, quem eras? Eu sou quem descortinas, na sombra do último acto da vida, olhos baços, ardendo, tu atrás da retina e a palpitar num cinema primeiramente mudo, a cidade, o véu dentro da cidade, a coroa de rosas brancas a desprender-se mal dos teus cabelos finos, lá fora o fantasma da noiva e a música de uma só nota, fingindo motores, cais, a dor das partidas marítimas. Se morreste, não sei, mas se morreste foi injusto, terrivelmente cedo. Estou aqui para te substituir, só, a pensar em letras e palavras, mil palavras para a imagem de Ana Orwell morta, história dos crimes em todas as ditaduras, histórias que me contaram em surdina num recanto de bebidas em Buenos Aires. Não dançavas o tango, eu também não, mas agora ainda penso que talvez não tenhas sido tu a vítima daquelas noites, osso na vala dos outros, resgte em lágrimas agora, ao ver-te na fotografia que revela o sentido do teu olhar e encobre o resto. Nunca mais terei sobre mim um olhar como esse. Fico à espera não sei de quê, dedilhando palavras ao acaso, olhos no teu olhar suspenso. Fico à espera, ossos, memória, quase submerso no pântano da náusea.


olhares intransitivos

4 comentários:

Miguel Baganha disse...

Um sublime olhar intransitivo sobre a morte reflectindo a própria imagem da vida.

«Penso agora em flores, sorrisos, desejo de mulher, e compreendo que todo o meu horror de morrer está contido em meu ciúme de vida.»

Albert Camus

«Ninguém pode escrever o não limite de todas as teias».

Rocha de Sousa

Fico à espera, romance, best-seller, quase submerso na ansiedade.

Um abraço,
Miguel

jawaa disse...

Pois eu sou supeita, dirá.
Mas esta soberana forma de escrita não está nas mãos de qualquer.

Um abraço

jawaa disse...

Melhor assim: a imagem ilustra a palava.

Cinda Miranda disse...

Excelente!