composição foto e colagem de Rocha de Sousa
Lusofonia, quer queiram quer não:
ela vem de longe e revê-se nos corpos de hoje
Li hoje, deslumbrado, um dos mais belos documentos sobre Portugal e o Brasil, sobre os desvios da História e as mitologias ou sarcasmos inúteis que tantos teceram acerca de viagens e gentes, face a face na distância dos continentes e dos sonhos ganhos ou perdidos. É um texto de Miguel Sousa Tavares, no Expresso, uma lição testemunhal perante os erros, equívocos, vários ritos antigos e modernos, a par de muitos esmagamentos da verdade intrínseca da história lusófona.
«...as relações Portugal-Brasil, nos últimos 150 anos, são um interminável jogo de ioiô, em que, quando um está em cima, e vice-versa, com ciclos de emigração, económica ou política, cruzados ao sabor da situação interna de cada um de nós. Dir-se-ia então que o desdém e a fútil superioridade com que aqui recebemos esses brasileiros que vieram ocupar os trabalhos que os portugueses já não queriam foi uma espécie de ajuste de contas tardio na forma como os brasileiros receberam os portugueses que para lá foram em massa desde o último quartel do século XIX até às primeiras décadas do século XX. Injustiça paga com injustiça: nós ficamos agora a dever aos brasileiros grande parte da construção das auto-estradas, hospitais, Expos, com que, imbecilmente, imaginamos ter conquistado para sempre a modernidade e o progresso; e, antes, eles ficaram a dever os ciclos do café e da borracha da Amazónia, o que não teria sido possível, por ausência de mão de obra, sem a impressionante emigração portuguesa — que teve, como contrapartida, a ruína do interior de Portugal.» Miguel Sousa Tavares trata bem a história do padeiro, personagem que invadiu por completo o imaginário do brasileiro: emigrantes que desenvolveram a indústria da panificação e geriam as respectivas lojas e sobre os quais os brasileiros idealizavam seres de pé descalço, trepando pela riqueza acima e explorando o povo em épocas de crise. A ideia da perfeição do Brasil e de tanta mistura devem colidir com a realidade histórica e ontológica do mundo e dos seres: em boa verdade, a perfeição é impensável e o que importa é sabermos qual a nossa relação com os lugares a que pertencemos. Miguel considera-se inteiramente do Brasil e de Portugal, o que é uma boa medida para a sensatez que nos vai faltando. Ele diz-se muito irritado com «as críticas mútuas e redutoras com que tantos portugueses e brasileiros se entretêm, como se com tanta mistura de sangue e de sémen, tanta aventura e tanta desgraça em que andámos envolvidos, uns com os outros, os vícios e fraquezas de cada um nunca tivessem passado ao outro.» Não terão os brasileiros sido também portugueses e os portugueses também brasileiros, pelo menos até 1882?
Diz Miguel Sousa Tavares:«1808», de Laurentino Gomes, sobre a chegada da corte de D. João VI ao Brasil: um panfleto doentiamente antiportuguês, sem preocupação de enquadrar a história no seu contexto e onde só interessa o lado negro da aventura joanina. Parece, segundo o autor, que, com a estada da corte portuguesa, os "brasileiros" descobriram, estupefactos, a porcaria urbana, a corrupção, o compadrio e o desgoverno (tudo coisas que, como se sabe, foram extintas em todo o Brasil há muito). Ora todos sabemos que D. João VI era um atrasado mental e que D. Carlota Joaquina era uma ninfomaníaca sevilhana permanentemente ocupada em conspirar contra o próprio rei ou marido.» Havia disso em todas as cortes europeias, fruto, também de problemas de consanguinidade e pelas regras arbitrárias dos próprios sistemas monárquicos da época.
«D João VI foi bem melhor soberano no brasil do que foi em Portugal. Reformou a cidade do Rio de alto a baixo, abriu os portos brasileiros ao comércio internacional e instalou um verdadeiro Estado — que levou daqui por inteiro — onde antes apenas havia capitanias e mandantes locais. O seu grande erro foi não ter tido a visão de perceber que a capital do Império devia estar no Brasil e não em Portugal.
«...as relações Portugal-Brasil, nos últimos 150 anos, são um interminável jogo de ioiô, em que, quando um está em cima, e vice-versa, com ciclos de emigração, económica ou política, cruzados ao sabor da situação interna de cada um de nós. Dir-se-ia então que o desdém e a fútil superioridade com que aqui recebemos esses brasileiros que vieram ocupar os trabalhos que os portugueses já não queriam foi uma espécie de ajuste de contas tardio na forma como os brasileiros receberam os portugueses que para lá foram em massa desde o último quartel do século XIX até às primeiras décadas do século XX. Injustiça paga com injustiça: nós ficamos agora a dever aos brasileiros grande parte da construção das auto-estradas, hospitais, Expos, com que, imbecilmente, imaginamos ter conquistado para sempre a modernidade e o progresso; e, antes, eles ficaram a dever os ciclos do café e da borracha da Amazónia, o que não teria sido possível, por ausência de mão de obra, sem a impressionante emigração portuguesa — que teve, como contrapartida, a ruína do interior de Portugal.» Miguel Sousa Tavares trata bem a história do padeiro, personagem que invadiu por completo o imaginário do brasileiro: emigrantes que desenvolveram a indústria da panificação e geriam as respectivas lojas e sobre os quais os brasileiros idealizavam seres de pé descalço, trepando pela riqueza acima e explorando o povo em épocas de crise. A ideia da perfeição do Brasil e de tanta mistura devem colidir com a realidade histórica e ontológica do mundo e dos seres: em boa verdade, a perfeição é impensável e o que importa é sabermos qual a nossa relação com os lugares a que pertencemos. Miguel considera-se inteiramente do Brasil e de Portugal, o que é uma boa medida para a sensatez que nos vai faltando. Ele diz-se muito irritado com «as críticas mútuas e redutoras com que tantos portugueses e brasileiros se entretêm, como se com tanta mistura de sangue e de sémen, tanta aventura e tanta desgraça em que andámos envolvidos, uns com os outros, os vícios e fraquezas de cada um nunca tivessem passado ao outro.» Não terão os brasileiros sido também portugueses e os portugueses também brasileiros, pelo menos até 1882?
Diz Miguel Sousa Tavares:«1808», de Laurentino Gomes, sobre a chegada da corte de D. João VI ao Brasil: um panfleto doentiamente antiportuguês, sem preocupação de enquadrar a história no seu contexto e onde só interessa o lado negro da aventura joanina. Parece, segundo o autor, que, com a estada da corte portuguesa, os "brasileiros" descobriram, estupefactos, a porcaria urbana, a corrupção, o compadrio e o desgoverno (tudo coisas que, como se sabe, foram extintas em todo o Brasil há muito). Ora todos sabemos que D. João VI era um atrasado mental e que D. Carlota Joaquina era uma ninfomaníaca sevilhana permanentemente ocupada em conspirar contra o próprio rei ou marido.» Havia disso em todas as cortes europeias, fruto, também de problemas de consanguinidade e pelas regras arbitrárias dos próprios sistemas monárquicos da época.
«D João VI foi bem melhor soberano no brasil do que foi em Portugal. Reformou a cidade do Rio de alto a baixo, abriu os portos brasileiros ao comércio internacional e instalou um verdadeiro Estado — que levou daqui por inteiro — onde antes apenas havia capitanias e mandantes locais. O seu grande erro foi não ter tido a visão de perceber que a capital do Império devia estar no Brasil e não em Portugal.
Um comentário:
Esta última afirmação faz-me lembrar Norton de Matos que também fundou no planalto central angolano, há precisamente 99 anos, a cidade que ele pensara poder vir a ser a capital do então Império.
Esses sonhos situam-se em território de utopia. Cada um no seu país e com a sua capital.
Mas que poderíamos dar-nos as mãos e construir um novo «Império» social e económico, ligado por uma Língua e História comuns, baseado no respeito, todos ficaríamos a ganhar.
E já é tempo de deixarmos de falar mal da nossa «família». Temos qualidades e defeitos demasiado comuns, é o roto a falar do nu.
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