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domingo, fevereiro 19, 2012

QUEM É ESTA GENTE QUE MORRE ASSIM,TÃO SÓ?


composição fotográfica de Rocha de Sousa

Dantes ninguém morria assim. Mortos de morte solitária, sequestrados em casas onde já sorriram meninos netos e filhas acabadas de casar, ele na fábrica, ela na senhora Rosa, para onde, em seu devido tempo, os filhos recentes tinham lugar acompanhado. Agora, num tempo de abandonos, os velhos mais velhos ficam em casa, os homens enterram as mulheres, ou as mulheres enterram os homens, e ficam umas flores que murcham num instante e partem os parentes de longe e de perto e nunca mais ninguém diz nada, a reforma chega tarde e é cada vez mais pequena. Esta gente que morre tão só e assim, dias e meses sem sopa nem pão, o pó gemendo pelas fendas das janelas. E quanto tempo resistem, sem abrir portas ou janelas, porque têm vergonha do mundo? Vem o sono e descansam do silêncio, já acabou a luz, já acabou a rádio, ninguem arranjou a velha televisão. Deixam roupas pelo chão, sombras de fantasmas no escuro e ficam à espera. Ou caiem para o chão e já não acordam do desmaio. Metem-se na cama, em vigília, a lembrar coisas do tempo das imagens e dos sons e das primaveras. Depois são sombras e a dor no estômago de uma fome. Mas até a água cortaram e para que é que precisam de água para morrer em silêncio, e assim? Os vizinhos, que nunca existem, têm contudo uma espécie de faro; e quando lhe cheira a carne podre, dali ou daqui, lembram-se da velha ou do velho, ela nunca mais abrira a janela, ele deixara de ir ao café da esquina beber o mata-bicho. Então chamam a guarda, apontam as fechadas poeirentas «nunca mais ouvimos rumor». Lá estão os corpos, um deles muito decomposto, moro havia mais de dois anos. É tudo nas vielas de cidades envolventes, em casas parasitadas e velhas cedo demais, como os apartamentos de luxo que as construtoras semeiam, ao acaso, nos lugares dos grandes centros, mal feitas e com lareira, apodrecendo depressa e agora nem sequer compradas, casas a mais, serviço social a menos. Quantos velhos podiam ser acompanhados pelas verbas enormes e absurdas de tais casarões com escadas de marmorite e três casas de banho.
Os velhos não morrem de pé, como as árvores. Os filhos estão longe, emigrados. E já não há força para mudar para a aldeia, para morrer num tempo de pássaros a cantar e de vizinhos entrando e saindo, cozinhando uma sopa, oferecendo uma manta, alumiando a mesa de cabeceira. E tratando do enterro, com a ajuda da Junta de Freguesia.
Afinal, que civilização é esta? Para que serve viver nela, mendigando um lugar ao sol, perdendo o trabalho aos quarenta anos, muita gente tratada por pig, sofrida na distância, abandonada pelos senhores da chamada arquitectura social. Em vez de sopa rala e de centros com almoços de massa, seria melhor que assistissem a morte, tornando-a menos dura e menos longa.
No ano passado, sobretudo nos grandes centros humanos, foram encontrados mais de doze mortos solitários, uns estendidos no chão, outros enrodilhados na cama, como se fossem nascer.

quarta-feira, fevereiro 08, 2012

OLHAR, PERCEPCIONAR E REINVENTAR O VISÍVEL

reinventado por Rocha de Sousa

Habitualmente maquinal, indagando em acaso e decisão, o nosso olhar serve por vezes de forma capciosa o processo da percepção visual. Passos em volta, coisas rodando, paredes e janelas graves de muita vida, tudo isso pertence à «dança» da nossa mobilidade visual, algo que nos é inerente e que deveria ser atentamente considerado desde os primeiros anos de escola. Porque, em boa verdade, os governos têm dado pouca atenção a esta disciplina (Educação Visual) e até já a misturaram com a tecnologia (Educação Visual e Tecnológica) ao sabor dos ilusionismos de dois professores. Perante a miopia ou cegueira cultural dos governos, realidade que sempre atrasou decisões de fundo sobre as artes e o ensino para elas, só agora há, em Portugal, Ensino Artístico Universitário. Ora começa a ser evidente que há mais ver para além da Alemanha e da crise financeira da Europa. A vida não é feita de dinheiro: o dinheiro é uma invenção prática e acabou deificado e usado em termos altamente complexos e falaciosos. Quando não havia dinheiro já havia vida. E até vida inteligente, sabedoria do olhar e do ver, mesmo que instrumentalmente tudo fosse elementar. O que os homens primitivos pintaram em tectos de cavernas onde se recolhiam é um milagre da visão e da inteligência expressiva. Por isso nunca deixei de me sentir desconfortável quando gente dos governos afirmava que essa coisa das belas artes não servia para nada. E diziam eles, logo após 74, que o país estava em revolução, em mudança, havia outras prioridades que nada deviam à cultura, muito menos à educação visual e artística. Eram provisórios, os governos, ficaram sempre provisórios na História, mas a sabedoria que a Arte introduz no ser e no processo civilizacional continuou a acontecer e Portugal não é hoje muito deficitário nesse campo. Fazem mal os lobies, o tráfico de influências, os transgénicos da arte internacional, súbitos, enormes, imperdíveis. Os artistas não devem deixar-se institucionalizar, mas têm pleno direito a emprestar a sua visão mutável das coisas aos engenheiros civis, aos matemáticos, aos feitores de arrecadações e até aos homens, todos, daquela justiça parda que nos injustifica no seu próprio pântano. Não basta dar ao pobre a cana para pescar. E se ele não sabe trabalhar com a cana, fio, carreto, isco, essas coisas lindas na paisagem? É preciso dar os meios e ensinar a usá-los com eficácia e sem ganância. Por isso é que a Educação Visual (que já teve a sua moda, como os pedagogos e os psicólogos da morte) tem de ser retomada em si e num adequado caldo de cultura. Não se trata apenas de ensinar a ver para se copiar o que se vê. Isso é quase nada. A Educação visual é transversal a todas as outras disciplinas: porque a matemática tem que ter, antes de tudo, uma aprendizagem específica do ver, números, símbolos, linhas, concordâncias com o real, relação com os objectos comuns, lápis e canetas, tintas e cores, electrónica e formas em redor, cadeiras, mesas, património secular e de hoje, ruínas, paisagens, a vida de tudo isso e dos bichos igualmente. Saber processar as máquinas automáticas. Saber ver os códigos e manejá-los através dos iscos que os reorganizam. Nunca ensinaram uma velhinha a levantar dinheiro no multibanco? Sabem porque é que ela, que sabe ler, não sabe usar o multibanco? Porque, embora saiba fazer crochet e fritar peixe, coisas que se baseiam em olhares específicos e percepções que passam pela visão, pelo gosto e pelo cheiro, ela não acompanhou os usos da visão no quotidiano actual. Há um mar de coisas a dizer sobre estas coisas.
Estas considerações talvez fossem dispensáveis. Vá directo ao assunto. Mas a verdade é que não há caminhos directos para os assuntos. A nossa vida corre numa rede complexa de sustentações físicas e psicológicas, pensantes e inventivas.
Emblemática do que fui dizendo é a imagem aqui publicada. Eu próprio, à distância, julguei que fosse uma obra menos conhecida do Rauschenberg. Olha-se e não se percebe logo. Olha-se e julga-se primeiro o espectáculo, o valor plástico das formas ruidosas, imitação vertebrada de uma qualquer ruína, paisagem sem horizonte, abstracção do mundo em decadência.
Mas basta olhar, percepcionar e reinventar o visível: dar à imagem o nome de um interior de certa casa que um dia foi desfeita, sobrando o reverso de uma parede. É o que lá está. Mas é o que lá está se nós quisermos. Todos nós somos os reinventores do mundo e do visível.

quarta-feira, fevereiro 01, 2012

A TRAGÉDIA DE MANUEL DE SOUSA SEPÚLVEDA


O São João era comandado por D. Manuel de Sousa Sepúlveda, nobre fidalgo, bom cavaleiro, bom amigo a amparar os necessitados. O galeão vinha da Índia e nele viajavam também D. Leonor, esposa de Manuel de Sousa, dois filhos ainda pequenos e mais um, bastardo. A bordo seguiam também os fidalgos Pantaleão de Sá (cunhado do comandante), Tristão de Sousa, Diogo Mendes Dourado de Setúbal e Amador de Sousa. Entre os embarcados contavam-se ainda soldados de torna-viagem, o mestre, o contramestre e o piloto da nave, carpinteiros, calafates e guardiães, mulheres, aias e crianças, para além de muitos marinheiros e dos escravos em maior número. A partida verificou.se a 3 de Fevereiro de 1552, data já tardia para melhor navegação.
Por causa dos ventos ponteiros e das ruins velas que traziam, só tarde avistaram o Cabo da Boa Esperança. Manuel de Sousa pediu ao piloto, André Vaz, que se aproximasse mais de terra. A manobra foi cumprida e a perdição parecia anunciada. Foram apanhados por ventos instáveis, muito rudes, e o capitão, conferenciando com o mestre e o piloto, decide, pelos pareceres dados, seguir o conselho de arribar. Tudo se complicou, sem tempo de agir contra, a tempestade soprou furiosa, rasgando e levando velas enquanto uma vaga quebrou o leme apodrecido. Foram tomadas todas as disposições e tarefas, com as madeiras existentes a bordo procuraram fazer um novo leme. E de alguma roupa que traziam nas mercadorias tentaram remendar velas, no maior dos empenhos em chegar a Moçambique. Mas o mastro da proa estava abrindo a nau.
No dia 8 de Junho a ventania, implacável, e também a correnteza, começaram a empurrar para terra a nau já meio desgovernada, aberta e metendo água. Através de uma manchua, remadores exploram a costa e voltam para avisar da existência de uma única praia. Na deriva, quando o galeão passou em frente da praia indicada, foi lançada a âncora e baixado um batel.
Quando o vento amainou, Manuel de Sousa pediu ao mestre e ao piloto que colocassem em terra, juntamente com a sua mulher e filhos e mais vinte homens, o que foi realizado, varando as ondas e alcançando por fim a praia. Esta operação e outras mais acabaram, na réplica, por ser desmanteladas em consequência de um recrudescimento brutal dos ventos e tempestade, perdendo-se outras manchuas e com elas os marinheiros. A nau corre perigo de ser arrastada para o pego e André Vaz embarca gente num batel, salvando quarenta pessoas. Mas a confusão e os destroços lavravam tudo, arrastando náufragos e coisas e meios logísticos. Nesse meio tempo, andava Manuel de Sousa a correr pela praia, a acudir aos náufragos e a encaminhá-los para junto de uma grande fogueira que acendera, tendo em conta o muito frio próprio das terras do Natal.
Quatro horas depois, e a despeito de muitos salvados, o galeão estava desfeito e dele o mar devolvia apenas os destroços.
Tudo é feito então para manter a sobrevivência e planear os meios de arrancar em direcção a Moçambique. Era preciso ficar ali, no entanto, alguns dias. Há cafres vigiando de longe e mais tarde alguns deles aparecem por perto no intuito de trocar uma vaca por pregos. Entre eles, à distância, a recusa instala-se e acaba por gorar a troca.
Manuel de Sousa exorta os homens, pede que não o desamparem, e propõe a marcha pela costa até alcançarem o rio da aguada da Boa Paz, em direcção a Lourenço Marques.
A caminhada, durante cerca de 180 milhas, foi um grande gesto e uma terrível tragédia. Escaramuças com grupos de cafres tornam tudo mais difícil, bem como o achamento e troca de mantimentos. Portugueses e escravos, muitos eram os que morriam, por exaustão, grupos arrastados e perdendo-se, vitimados pelas feras. O filho bastardo de Manuel de Sousa também se perde, vinha às costas de um escravo, mas ninguém ousou meter-se pelo matagal e o comandante começa a desgastar-se, do corpo, da alma e do juízo. Durante dois meses e meio, ora aquela gente se metia pelo sertão em busca de comer, ora varavam rios e se fizeram ao longo do mar, subindo e descendo serras, homens e mulheres e crianças perdidos de fome e de sede. Pausas ensandecidas e compra, com dinheiro do comandante, de vasilhas com água a homens que se arriscavam as perigosas buscas. Há muitos que não voltam, talvez mortos pelos cafres e feras em deriva.
Apesar dos favores de um pequeno rei ali encontrado com o seu povo, Manuel de Sousa não acede aos conselhos de marcha, às incertezas apontadas, ameaçando os camaradas com a espada, o que nada tinha a ver com o seu habitual comportamento, compreensivo e bom.
Atacados e perdidos, os homens de Sepúlveda têm de entregar as armas aos cafres, portugueses e cafres apartados por aldeias, até ao mais grave assalto, cafres querendo as roupas. D. Leonor não se deixa despir, não quer sobreviver assim. Mas quando se vê nua, desamparada, atira-se ao
chão, coberta pelos cabelos, e cava uma cova na areia onde se mete até à cintura. Manuel de Sousa, com a mantilha que arranca a uma velha aia cobre D. Leonor. Daí ela nunca mais sairá. Contudo, instado por ela, André Vaz aceita, com alguns homens, rumar na direcção de Moçambique e promete, se tanto conseguir, narrar esta história e alcançar recursos de socorro.

Embora meio destroçado do juízo, Manuel de Sousa ainda cuida de ir ao mato colher frutos para alimentar a esposa e os filhos. Um dia regressa e um dos meninos está morto. Enterra-o. No dia seguinte, ao regressar, encontra morta a sua esposa e o outro filho. Afasta as três escravas que choram sobre o corpo de D.Leonor e senta-se a seu lado. Com o rosto apoiado numa das mãos, sem dizer nada nem chorar, queda-se durante meia hora com os olhos postos na esposa. Depois, com a ajuda das escravas, abre uma cova na areia onde enterra D. Leonor e o filho. Levanta-se, não diz uma palavra, abala, mete-se pelos matagais adentro. Nunca mais ninguém o vê.

Esta narrativa foi colhida, abreviada e adaptada da História Trágico-Marítima, segundo a versão de Fernando Correia da Silva, em memória de uma realidade portuguesa que a bruma dos esquecimentos tem esbatido da nossa cultura. As ilustrações foram feitas digitalmente pelo autor deste blogue.