Habitualmente maquinal, indagando em acaso e decisão, o nosso olhar serve por vezes de forma capciosa o processo da percepção visual. Passos em volta, coisas rodando, paredes e janelas graves de muita vida, tudo isso pertence à «dança» da nossa mobilidade visual, algo que nos é inerente e que deveria ser atentamente considerado desde os primeiros anos de escola. Porque, em boa verdade, os governos têm dado pouca atenção a esta disciplina (Educação Visual) e até já a misturaram com a tecnologia (Educação Visual e Tecnológica) ao sabor dos ilusionismos de dois professores. Perante a miopia ou cegueira cultural dos governos, realidade que sempre atrasou decisões de fundo sobre as artes e o ensino para elas, só agora há, em Portugal, Ensino Artístico Universitário. Ora começa a ser evidente que há mais ver para além da Alemanha e da crise financeira da Europa. A vida não é feita de dinheiro: o dinheiro é uma invenção prática e acabou deificado e usado em termos altamente complexos e falaciosos. Quando não havia dinheiro já havia vida. E até vida inteligente, sabedoria do olhar e do ver, mesmo que instrumentalmente tudo fosse elementar. O que os homens primitivos pintaram em tectos de cavernas onde se recolhiam é um milagre da visão e da inteligência expressiva. Por isso nunca deixei de me sentir desconfortável quando gente dos governos afirmava que essa coisa das belas artes não servia para nada. E diziam eles, logo após 74, que o país estava em revolução, em mudança, havia outras prioridades que nada deviam à cultura, muito menos à educação visual e artística. Eram provisórios, os governos, ficaram sempre provisórios na História, mas a sabedoria que a Arte introduz no ser e no processo civilizacional continuou a acontecer e Portugal não é hoje muito deficitário nesse campo. Fazem mal os lobies, o tráfico de influências, os transgénicos da arte internacional, súbitos, enormes, imperdíveis. Os artistas não devem deixar-se institucionalizar, mas têm pleno direito a emprestar a sua visão mutável das coisas aos engenheiros civis, aos matemáticos, aos feitores de arrecadações e até aos homens, todos, daquela justiça parda que nos injustifica no seu próprio pântano. Não basta dar ao pobre a cana para pescar. E se ele não sabe trabalhar com a cana, fio, carreto, isco, essas coisas lindas na paisagem? É preciso dar os meios e ensinar a usá-los com eficácia e sem ganância. Por isso é que a Educação Visual (que já teve a sua moda, como os pedagogos e os psicólogos da morte) tem de ser retomada em si e num adequado caldo de cultura. Não se trata apenas de ensinar a ver para se copiar o que se vê. Isso é quase nada. A Educação visual é transversal a todas as outras disciplinas: porque a matemática tem que ter, antes de tudo, uma aprendizagem específica do ver, números, símbolos, linhas, concordâncias com o real, relação com os objectos comuns, lápis e canetas, tintas e cores, electrónica e formas em redor, cadeiras, mesas, património secular e de hoje, ruínas, paisagens, a vida de tudo isso e dos bichos igualmente. Saber processar as máquinas automáticas. Saber ver os códigos e manejá-los através dos iscos que os reorganizam. Nunca ensinaram uma velhinha a levantar dinheiro no multibanco? Sabem porque é que ela, que sabe ler, não sabe usar o multibanco? Porque, embora saiba fazer crochet e fritar peixe, coisas que se baseiam em olhares específicos e percepções que passam pela visão, pelo gosto e pelo cheiro, ela não acompanhou os usos da visão no quotidiano actual. Há um mar de coisas a dizer sobre estas coisas.
Estas considerações talvez fossem dispensáveis. Vá directo ao assunto. Mas a verdade é que não há caminhos directos para os assuntos. A nossa vida corre numa rede complexa de sustentações físicas e psicológicas, pensantes e inventivas.
Emblemática do que fui dizendo é a imagem aqui publicada. Eu próprio, à distância, julguei que fosse uma obra menos conhecida do Rauschenberg. Olha-se e não se percebe logo. Olha-se e julga-se primeiro o espectáculo, o valor plástico das formas ruidosas, imitação vertebrada de uma qualquer ruína, paisagem sem horizonte, abstracção do mundo em decadência.
Mas basta olhar, percepcionar e reinventar o visível: dar à imagem o nome de um interior de certa casa que um dia foi desfeita, sobrando o reverso de uma parede. É o que lá está. Mas é o que lá está se nós quisermos. Todos nós somos os reinventores do mundo e do visível.
Estas considerações talvez fossem dispensáveis. Vá directo ao assunto. Mas a verdade é que não há caminhos directos para os assuntos. A nossa vida corre numa rede complexa de sustentações físicas e psicológicas, pensantes e inventivas.
Emblemática do que fui dizendo é a imagem aqui publicada. Eu próprio, à distância, julguei que fosse uma obra menos conhecida do Rauschenberg. Olha-se e não se percebe logo. Olha-se e julga-se primeiro o espectáculo, o valor plástico das formas ruidosas, imitação vertebrada de uma qualquer ruína, paisagem sem horizonte, abstracção do mundo em decadência.
Mas basta olhar, percepcionar e reinventar o visível: dar à imagem o nome de um interior de certa casa que um dia foi desfeita, sobrando o reverso de uma parede. É o que lá está. Mas é o que lá está se nós quisermos. Todos nós somos os reinventores do mundo e do visível.
Um comentário:
Olhei, percepcionei e reenventei, não o visível mas o invisível. O lado mais oculto das coisas é, em certos casos, povoado com mais significado e com maior riqueza. Não é por acaso que alguns povos da antiguidade privilegiavam aquilo que não se vê, mostrando-se especialmente atentos aos símbolos que pudessem desvendar verdades escondidas.
Excelente didáctica, na forma peculiar como explica a percepção visual e a mobilidade do olhar perante a capacidade reinventiva do cérebro humano, amigo. Gostaria de ter sido seu aluno noutros tempos, grande mestre.
Obrigado por mais esta jóia. Penso que o Rauschenberg também agradece.
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