O rei foi ferido no início da batalha por Portugal. Foi ferido, o sangue escorreu entre os encaixes da couraça mas o verde da sua marca de esperança trancou a hemorragia. Quando, séculos e séculos depois, o rei já havia sido substituído por um amanuense duro e rigoroso, seminarista incompleto, muito tempo depois da gesta das navegações e dos Descobrimentos, que fora ponderada com razão e demora, com apoios múltiplos, acabada, enfim, no intervalo das indecisões, até um dia (no futuro) ter começado perto do risco o famoso Império que parecia ter acontecido eterno após todas essas aventuras. Um dia, no limite de uma longa espera, pela última metade do século XX e durante uma pesada guerra além-mar, o amanuense, morto, chegou a ser substituído por um professor universitário, mas os capitães travaram Lisboa, o Carmo, e o próprio presidente do Conselho. No Carmo, entre povo e balas contra as paredes, gritos de vitória no barulho do sonho. O presidente do Conselho foi então levado no interior de uma Chaimite, e os capitães (de Abril) meteram cravos por todos os lados, até no cano das espingardas, ali ao Chiado. Tal imagem andou por todo o mundo e Sartre veio visitar o país. Parecia uma glória europeia.
Mas não era. Formou-se a União Europeia e os nossos moderníssimos políticos, cheirando a vanguarda e um planeta central, lavaram as mãos da mais rápida descolonização de sempre, o que provocou dores imensas, roubos inauditos, sobretudo entre os «retornados», velhos e novos. Foi tudo depressa outra vez. Os homens do poder trataram de aderir à União, papando o euro e tudo, moeda de fascínio que caíu na nossa terra, sob condições draconianas: era preciso largar metade das pescas, reduzir a agricultura em mais de 60%, afundar a marinha mercante, formar quadros. O país nadava em euros e compras faustosas, dos iates às autoestradas, e a dívida foi aumentando. Nas terras do sul, os coitados produtores de laranjas tinham de calibrar tudo como mandava a Europa, perderam-se de todo, e a Espanha invadiu de novo Portugal com as sua laranjinhas medidas ao milímetro, entre outras coisas, enquanto os nossos patos-bravos desataram a encher tudo de casas, em conluio com os bancos e massas de crédito que levaram as populações, ensandecidas, de olhos arregalados, a comprar casa própria por centenas de milhares de euros. Estava o caldo entornado. E logo se entornou nos Estados Unidos da América, infectando o mundo: depois da queda do muro de Berlim, o capitalismo mostrava o seu lado aterrador, venal e contaminante. Os credores, que viviam soberanamente do pagamento dos juros (isso bastava), acharam que tal festa acabara: os mercados crisparam-se, pararam os créditos e exigiram, em pouco tempo, o pagamento de todas as dívidas -- biliões e biliões de euros. Ainda Portugal, já engasgado de auto-estradas, andava a negociar o início das obras do TGV para Madrid, calcule-se.
De súbito, os ricos da Europa e os senhores aristocratas do Norte, disseram o que tinham a dizer: a bancarrota é o fim, façam favor de chamar O FMI e pedirem planos de resgate. Toda a gente sabe o que aconteceu de seguida, o Sócrates andava a querer um PEC 4, o PSD babava-se pelo poder. A TROIKA foi chamada: passámos todos a viver de cortes nas despesas e nos salários, o governo da coligação PSD-CDS cumpria o duro memorando da TROIKA com sagacidade e cegueira, cada meta era atingida através de contracções brutais, o consumo baixou, as Empresas faliram aos milhares e milhares. Tapando buracos financeiros no meio da marcha forçada e falhando os objectivos de cada patamar, o Governo discursava sem capacidade mobilizadora nem boa comunicação.
E agora, que se atingira a segunda fase nas reformas e pensões, fase de um sacrifício imenso, todos a pagarem as fraudes e os deslumbramentos dos maiores, um novo programa para 2013 começou a fumegar: o monstro comia um pouco por toda a parte: nos salários, no IRS, através do IVA, e apesar de tudo a derrocada era precária para tão longas dívidas e tão estranha gestão europeia, sobretudo centrada na Alemanha, por uma senhora vinda da RDA, cujo treino da norma e da austeridade parecia imbatível.
Começou 2013. E, sem que ninguém percebesse como, foi derramado sobre o país, julga-se que a pedido do próprio governo, um Relatório Proposta do FMI. Há quem diga que está muito bem feito e oferece pistas apropriadas. Há quem diga que se trata de um simples golpe final de uma conspiração do tamanho do Sol. Muitos portugueses emigraram no ano passado, embora haja sempre quem arranje uma horta na varanda e se ponha a comer relva, vendo futebol. Eu não emigro, aliás sou muito velho e tenho artroses. Já me cansei de pensar: o que eles querem, afinal, é simples, trata-se de aliviar o Estado de 60 a 100 mil funcionários, incluindo 50.000 professores, mantendo cortes substanciais nas reformas e nos rendimentos, além do aumento das taxas na Saúde, uma taxa de solidariedade (não sei para quem) e a queda do subsídio de desemprego, considerando ainda que a polícia é excessiva e custa mais do que as europeias, devendo o Hospital Militar integrar-se no SNS. De resto, o cuidado com a Educação parece um pouco pecaminoso, devendo por isso poupar-se 710 milhões de euros nesse sector. Isto é o que me lembro. Vou deixar-me abater, poucos anos me separam do fim. Mas gostaria de ajudar os meus compatriotas a troikar o troikado pensamento dos troikistas. Louçã, amigo meio reformado, achei o teu artigo tão manso, tão pouco imaginativo. Será que vais emigrar? Nós, outrora navegadores, já nem dominamos meio mar e abandonámos 6% de pessoas na agricultura. Talvez eu saiba como se pode recomeçar, mas fiquei de súbito muito cansado. Já ouvi três intervenções na TV, vozes de sábios, todos tratavam em oposições e bondades mútuas o fenómeno kafkiano que o FMI nos ofereceu. Ó Louçã, sabes que há um gajo que já visitou o Banco Central Europeu com um carro armadilhado, obrigando o presidente, num prazo curto, a emitir secretamente 50 triliões de euros, tendo fornecido uma lista de instâncias onde o dinheiro devia ser, no escuro, entregue e negociado para certas operações? Um espião da Alemanha soube do caso e disse no Banco que parassem tudo, pois a inflação não era coisa para germânicos. Tem graça, foi morto por um Palestiniano disfarçado que, por sua vez, sequestrou um político israelita. Suprema Ausência!
Um comentário:
Sartre é pertinentemente evocado aqui, neste magnífico retrato de um Portugal periférico dentro duma europa cada vez mais globalizada pelo mundo. A filosofia de Sartre, assaz discutida até hoje, pode encarar-se como uma filosofia da liberdade e da responsabilidade, talvez os únicos factores lógicos da inevitável condição humana, e actualmente tão negligenciados. Não temos outra solução (para lá da "outra" que não resolve nada) senão inventar a própria vida, o nosso próprio destino, e escolher, assim, a própria liberdade para construir o seu valor. Mas uma solução destas é um privilégio que deve ser usado com a máxima ponderação, com o maior sentido de responsabilidade: pois só assim se poderá ser livre, ainda que nos pareça um paradoxo (talvez mais importante por isso mesmo). Sartre, em 1964, recusou o Prémio Nobel da Literatura, por ser livre decidiu assim. Mesmo assim não evitou sujar as suas mãos, tal como os outros -- mas não importa sujar as mãos (até porque é inevitável); o que é preciso é saber fazê-lo sem sujar a liberdade dos outros.
As Mãos Sujas, a peça mais célebre de Sartre, nasce da oposição política de um realista e de um idealista, expondo a importãncia dos códigos de lealdade numa lógica partidária.
O livro reflecte principalmente as ideias de Sartre sobre o problema da liberdade. E o seu post, João, reflecte igualmente esse problema, algo tão comum a todos os que por cá vão sujando as suas mãozinhas.
«Não se devem procurar Super-Homens.» Até porque não adianta: eles estão ausentes.
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