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sexta-feira, dezembro 06, 2013

SÍSIFO LUSO SOB A PEDRA COM ARTE ABERTA

               Este pobre Sísifo,  que  tanto subiu e  desceu  a
               montanha,  carrega o  que até  há  pouco  ainda 
               não  se  descobrira:  o que  resta de um  menhir 
               visigodo estranhamente encravado numa  parte
               de certa rapsódia de obras de arte portuguesas, 
               abertas, pesadas como o  destino da nossa futu-
               ra indústria cultural nesse domínio.

Recomeçar como? Vendo no espelho, em vez do rosto, a nuca da personagem que tenho sido? Ana dir-me-á que essa questão é menor, mas ela própria dificilmente se reconhece em Cristina nas fotografias mais recentes, espelhos breves que passa entre os dedos e depressa rejeita. Pode não ser decisivo reivindicar a identificação da escrita, no verso de cada espelho que se quebra no caminho. Suponho que já não sustentarei essa atitude, pela minha parte, porque as palavras dos tios, das tias, de Cristina ou de Ana, dos avós suspensos em retratos graves, acabaram por se confundir com a identidade de quem sou, sem heterónimos, hoje pronto a reivindicar esse registo por inteiro, único, o meu nome embaciado pelos senhores da cultura e por muitos colegas da faculdade, entre outros. Claro que a grande cidade onde envelhecemos nos é cada vez mais estranha. Claro que somos nela, de ano para ano, mais cinzentos ou estrangeiros, o mundo a perder-se neste modo de ficar em casa, abarcando imagens rápidas, sem leitura, os destroços do Columbia ou as caravelas de chumbo que os Estados Unidas da América colocam no mar dos golfos, na curva marítima entre continentes. Que fiquem as marcas dos passos pela areia fresca das marés baixas, memórias de um destino sem distância, idas sem regresso, tragicamente as marés altas engolindo a maior parte dos vestígios.
Devaneios.
A ideia é recomeçar em todas as frentes possíveis,  sem alcunhas. No âmbito da pintura, será preciso procurar de outro modo o modo absoluto que não há e ter consciência dessa brevidade na sucessão das obras, com ou sem assinatura. Muitos oficiantes fazem-no pelas diagonais solitárias, na terrível preguiça das medianas, enleados nos mercados de circunstância, na fama de cada nome que, entre consumos, faz toda a diferença. Outros desfazem ideias, mudando de casaca, grandes passos de súbito espalhados pelo vazio, desfasados de toda a procura, entre descontinuidades por vezes ilusórias ou esplendorosas, luxos incongruentes nas tintas mal secas de modelos revivalistas. Ainda conheço razoavelmente muitos daqueles que passaram do extremo cuidado nas articulações geométricas ao domínio profano ou à penumbra do sagrado, alegorias com o anjo Gabriel sob luzes teatrais, céus bíblicos e a perfeição imitativa de um único quadro de cada vez, divino silêncio que procurava acompanhar o lado erudito da representação onde também florescia, enfática, errática, a candidatura ao mito museológico. Além do mais, vejo recomeços na continuidade dos mesmos riscos  de há trinta anos, talvez meio século, não sei bem, artistas que herdaram de Sísifo (mas com proveito) a repetição dos actos, as veredas na montanha do atelier, o estafeta da galeria à porta a fim de recolher as pedras de um rolar ocasional, vendáveis mediaticamente e às dúzias. 
Devaneios, Matilda, não deixes que a tua filha se perca.
Há um outro deus das artes que sobe arduamente a montanha, como Sísifo, parando, a espaços, num sopro duro e pintando dolorosamente os desastres principais, trajectórias de trajectórias, por vasta soma de intencionalidades  parecidas, na visão sempre retomada com mais fervor no caminho percorrido, perto da certeza de não haver o pico da montanha, a tela meio pintada e já a explicar-se simultaneamente, como presença e juizo, num destino que não é grego, nem romano, nem de qualquer outra nova renascença -- destino que não se sabe quando começou e  não se percebe como terminará. Em cada paragem, a evocar a alegoria do calvário, apura-se assim um testemunho, algo que foi repensado todos os dias, trabalho absurdo, inconclusivo, sobre-humano. Os caminhos na encosta são apenas semelhantes enquanto destino em desenho; nenhum deles repete, até ao milímetro, o anterior. Essa resistência, levada apesar de tudo à vontade de comunicação, com todos os sinais do seu arrastamento e das suas diferenças invisíveis, torna-se uma espécie de símbolo da própria natureza da arte (ou da vida, tanto faz) abrindo espaço, para muitos, à perplexidade e à revolta, apontando cada recomeço, sem mística, sem salvação, sem Deus, como a possível novidade de uma faixa de terreno nunca pisada de certa forma, na identidade (afinal) de qualquer coisa que não tem fim mas que vive dentro da própria morte e apesar do desencanto, com força, entre máscaras.
Já pensaste, Matilda? Não te lembras do teu nascimento nem sabes nada sobre  a tua morte. Imagino muitas vezes essa vida como um quadro de Picasso. Os quadros dele nunca começam de um modo previsível, à maneira de muitos outros começos conhecidos. Além disso e sobretudo, nunca acabam.
Filosoficamente, Sísifo é um artista: ele sabe relativas as diferenças entre viagens e faz dessa pequena fronteira, contra a estranheza para sempre, o fio  das suas sucessivas escolhas e num espaço do incontornável absurdo.

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