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sexta-feira, abril 18, 2014

NASCER NÃO É COMEÇAR, NEM AQUI, MÃE



A memória remota é um conjunto de reaparecimentos, por vezes muito bem encadeados, um pouco como se tudo tivesse acontecido há poucos dias. Nunca te conheci nesse tempo distante, nem aqui, mãe. Sabes? Esse menino que tu seguras com naturalidade e ternura não é quem vejo nesta descoberta, e suspeito assim que que seja eu. A tua bela imagem, nesse jeito, também nunca a conheci, porque os anos passaram depressa, a fotografia aqui reproduzida veio do fundo de caixas meio esquecidas, tu ressuscitaste nessa idade, e o menino acompanhou-te. Quando entrei na idade da razão comecei a arrumar na cabeça imagens tuas, talvez do meu irmão e do pai e da avó. Mas foram enchendo o fundo das gavetinhas do meu cérebro como aconteceu com as velhas gavetas do móvel principal, cor de nogueira. Eram volumes amarelados, uns maiores do que os outros, e em certos casos com provas enroladas umas nas outras, donde saíam tios e tias, primos magricelas, vindos até duma vaga praia não sei donde.
Se este menino não for eu, está escrito atrás o teu nome: Maria com o filho. Qual deles se esta mulher, ou rapariga, ou senhora, não apareceu durante mais de sessenta anos nos arquivos familiares sem ordem nem verdadeira memória? Quando te encontrei e soube que eras tu, lembrei-me como as famílias se perdem antes de se perderem, assim guardadas, quase como aquele jeito com que te guardaram para viajares, morta, para junto do pai.
Já não sei o significado destas coisas. Mas há dias ouvi e vi o testemunho de uma rapariga que se salvou de um brutal tsunami, tinha treze anos, fugiu da enorme onda com todas as forças que tinha, a água desabou sobre ela, a menina nadou, ergueu os braços ao alto, suportou a dor no peito -- e pensou com persistência, «não posso morrer agora, tenho só treze anos, darei a mim mesma todas as forças da resistência.
A menina salvou-se, perdeu os pais como eu te perdi a ti. Mas o que ela nos disse é que esse tempo (e a própria tragédia) não devem ser esquecidos, devem ser conservados no lugar próprio da memória e revisitados ao longo dos anos. Essa é a melhor forma de conservarmos a vida no equilíbrio entre fases, alegrias e saudades. Ela lembra-se dos próprios pais correndo um pouco atrás mas não os chora. E tem razão. Depois de conseguir fazer-te renascer visualmente de um tempo perdido, a minha própria morte terá mais sentido. Quem se habita com o passado, além da vida normal que desaparece dia a dia, mais profundamente se conhece e alcança o que pode haver, no futuro, além do seu próprio esquecimento.

Um comentário:

Miguel Baganha disse...

Com toda a certeza, este post é mais espírito do que carne.

Meu bom amigo, sei bem quais são as suas ideologias, sociais, políticas ou religiosas. Mas não posso deixar de sentir uma relação entre este belo texto e a época litúrgica em que nos encontramos: a ideia do «reaparecimento» está lá e dela emerge o simbolismo do "renascimento", evocando um passado de que a memória por momentos parece duvidar. Mas as imagens, especialmente as fotografias, ajudam a tornar verossímeis certas lembranças, dissipando a dúvida que o tempo gera. É bom lembrar. Lembrar é voltar a sentir. É voltar a nascer. As lembranças são isso mesmo -- celebrações da vida. Especialmente as boas.

O que li aqui não foi um milagre mas foi certamente uma "ressurreição" do melhor que existe no ser humano.

Um grande bem haja a si, estimado amigo.