questões de conceito| 1
Então ele
disse: «as artes não servem para ornamentar o mundo, mesmo quando alguém as
orienta nesse sentido. Não parecem ter esse fim, sem nada que desvende o seu
eventual enigma, entre suportes técnicos e culturais. Mas já ninguém duvida de
que elas sejam o rosto sensível da própria civilização.»
Os alunos, compactos e impacientes, julgaram que estas
palavras seriam, provavelmente, o termo da lição: porque eles conheciam
razoavelmente as tonalidades retóricas do professor e a maneira como
teatralizava, em síntese, o fim das suas lições. Mas o docente mudou de agulha
e prosseguiu:
— Se hoje nos encontramos aqui, na circunstância de trabalho
que dispensa a pompa e os paramentos, é porque o pensamento plástico apontou de vez para a autonomia das nossas escolhas neste
âmbito. Podemos agora falar delas sem qualquer obrigação ritual que nos torne
reféns de todas as antigas cerimónias do aprender inicial, entre cabeças
gregas, de gesso, e humildes
placas de cartão
sobre
as quais tudo tinha de ser resolvido com preto, branco e
ocre, porventura superando o disfarçado
valor da pele. Com efeito, o nosso labor já consistiu em obedecer a um longo
processo de manipular pequenas misturas de tintas, esbatendo-as no cinza do
suporte, testando assim uma habilidade artesanal, milagrosa, como a desses
actos monásticos dos iluministas cuja meticulosa vocação se tornaria afinal
insustentável, entretanto desaconselhada pelas ciências da arte.
Os frades,
castrados e frios desde meninos, aprendiam a fazer fazendo, pouco mais, ignorando a verdadeira noção de projecto e a
própria ideologia que informava e formava todas as nossas urgências. Contudo, e
ao contrário do que muitos ainda pensam, não foram os artesãos os culpados da
posterior teoria, nem são os elefantes brancos da vanguarda a empurrarem os artistas para a exclusão,
quebrando preciosidades em volta, indiscutíveis, como as antigas porcelanas da
longínqua dinastia Ming, na velha China,
ou as peças de Limoges, na França, bem mais recentes. O saber
teórico, aliado ao campo instrumental da praxis, tem o mérito de fundamentar
descobertas, sem negar instintos e intuições, em sucessivos espaços da criação
consistente. Espera-se desse encontro o achamento de uma forma de facto inovadora, capaz de ajudar, tanto
virtual como presencialmente, o avanço da grande arquitectura do ser. Poderemos
então falar, com mais justeza, da rede que multiplica o sentido universal de
todas as disciplinas cujo elenco de conteúdos abrirá novas conexões à própria
razão. Poderemos também referir o papel da razão e da emoção nos decisivos
alinhamentos da consciência. Todo o saber ontológico passa por aí.
As Escolas de
Arte, desde as últimas décadas do século anterior, foram sobretudo aliciadas
pela invenção e desenvolvimento das chamadas tecnologias de ponta, máquinas que
pareciam anunciar um distante mundo do futuro, aparelhos e próteses
cujas funções permitiam, com efeito, abrir múltiplos espaços
à criatividade. As teses que desbravaram tais domínios, estudando as virtudes
tradicionais da pintura, por exemplo, em jeito de simbiose com os modernos
instrumentos, transferiram para as velhas oficinas dos velhos mestres vários
patamares apropriados aos novos modos de formar. Em bom dizer, no entanto, esses
entrosamentos de tecnologias híbridas, e outras, não passaram, durante muito
tempo, de meras somas de crescimento. O desenvolvimento das
aptidões humanas, ou da sociedade na sua amplitude maior, realiza-se noutro
comprimento de onda (digamos) e apesar das interferências. Terá de ser sempre enquadrado numa perspectiva filosófica,
no âmbito de um espírito produtivo e vocacionado para a descoberta de
sucessivas verdades. No século XX, por
exemplo, o advento da fotografia alterou a problemática da relação entre
diferentes tipos de imagens e novas funcionalidades. Mas a máquina fotográfica,
sofisticando-se a breve prazo, estava sujeita, a despeito dos usos, ao mundo
das somas e das «regras» de mercado. Perante as apontadas tecnologias
tradicionais da representação, a fotografia conquistou rapidamente território
— por dispor, com menos esforço e outra agilidade de processos inconfundíveis ao registar, num
apreciável rigor, pessoas ou objectos. Para lá dos seus aspectos lúdicos (ou
seduções de consumo), a câmara fotográfica, entre muitos outros meios de maior
complexidade, veio contribuir, com efeito, para clarificar a mobilidade das
percepções, o próprio alargamento da
consciência numa certa concepção
do saber superior do homem. É esta, porventura, a perspectiva que
importa à criação artística. Seja como for, o encontro dos nossos talentos com
a diversidade dos meios instrumentais, embora já anuncie uma frutuosa viagem em
direcção ao futuro, dificilmente pode suportar
a demora das
esperas por cada
especialização.
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E a massificação das ofertas, desbaratando o gosto, o apelo das ideias sobre o mundo, a própria ficção do amanhã. Esta crise cada vez mais descontrolada tornou redutor o projecto, misturou fugas em frente ocorridas pelo medo encoberto dos limites e da morte. Um sonho de utopia, na linha da cibernética em que o tempo dos replicantes já se encontra programado, como acontece na trágica beleza do filme «Blade Runner». Essa obra alerta-nos para um antigo temor: cada replicante do modelo mais avançado, quase clone do homem, seu inventor, carregando capacidades em certo sentido bem mais concertantes do que as humanas, está destinado, talvez como segurança contra o florescer de afectos ou dotes individuais, a uma vida de apenas quatro anos, lembrando as borboletas que sobrevivem quatro horas. Metáfora aterradora, sem dúvida, pela qual nem se vislumbram significativas melhorias bio-tecnológicas capazes de dilatar o destino do homem contra a absurda proximidade da morte.
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E a massificação das ofertas, desbaratando o gosto, o apelo das ideias sobre o mundo, a própria ficção do amanhã. Esta crise cada vez mais descontrolada tornou redutor o projecto, misturou fugas em frente ocorridas pelo medo encoberto dos limites e da morte. Um sonho de utopia, na linha da cibernética em que o tempo dos replicantes já se encontra programado, como acontece na trágica beleza do filme «Blade Runner». Essa obra alerta-nos para um antigo temor: cada replicante do modelo mais avançado, quase clone do homem, seu inventor, carregando capacidades em certo sentido bem mais concertantes do que as humanas, está destinado, talvez como segurança contra o florescer de afectos ou dotes individuais, a uma vida de apenas quatro anos, lembrando as borboletas que sobrevivem quatro horas. Metáfora aterradora, sem dúvida, pela qual nem se vislumbram significativas melhorias bio-tecnológicas capazes de dilatar o destino do homem contra a absurda proximidade da morte.
O Professor olhou em volta, com as mãos metidas nos bolsos
do casaco. Folheou depois uns papéis que estavam sobre a secretária e retomou a
redundância do seu discurso – conceitos ou propostas meio desfocados pelo denso
véu das palavras.
—Quando
estivemos rendidos à gestualidade liberta — ponderou o docente — e nos
sentimos cercados por um deserto minimalista, portanto sem
título, houve quem começasse a sentir medo pela
dissolução do verdadeiro processo do ver. E enquanto o mundo se tornava
globalmente pantanoso para muita gente, cidades inteiras submersas no fumo,
outros protagonistas pareciam presos à nostalgia de certas imagens, murmurando
coisas breves acerca das que haviam conservado desde a infância. Pensavam num
mundo poético de figuras até há pouco impensáveis, talvez na deriva cinzenta do
sonho, singular estado de alma através do qual julgavam pressentir uma estranha
necessidade
do realismo, talvez próximo daquele realismo
novo aprendido com o caos e os desertos sem marcas.
Ouviram-se tosses. O Professor esperou. Voltou aos papéis,
pousados sobre a secretária, parecendo não saber o que fazer com eles:
—No fundo, apesar das incandescências que nos irritam
ou apaixonam, a verdade é que não
sabemos como trabalhar essa necessidade, a do realismo, ou do realismo reinventado
numa dimensão nova, talvez o próprio hiperrealismo, eventualmente a
experimentação recuperadora do anacronismo. Dorfles queria
que a arte tivesse acabado na mais decisiva das abstracções, para ele não havia
qualquer retorno a partir desse ponto de chegada. Enganou-se redondamente na
espuma das marés, afinal cercado pelo novo expressionismo, por exemplo, ou de
olhos olhando ao alto os retratos de Chuck Close, rostos comuns representados em
suportes de vários metros na perpendicular. Ainda mal se experimentara essa
espécie de desumanidade própria das máquinas, longe da pintura digital,
robótica, um caminho que viria promover a partilha entre o homem e a funcionalidade
da lógica informática. E o que aconteceu depois do veredicto de Dorfles nada teve a ver com a insustentável descoberta
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do absoluto, entre linguagens que, em última instância, não
aspiram à sagração mítica nem ao aprisionamento pelo dogma: trata-se apenas de
continuar, entre todos os horizontes, a marcha do homem. Sabemos que isso
comporta muitos paradoxos e belas invenções do sonho, resgatando do fundo desse
espaço velhos painéis e a secreta geometria da arte de compor. Embora ninguém
tivesse advogado verdadeiramente, no limite da nossa pequenez, a avaliação
entre o pincel e o computador, apesar de murmúrios que pareciam vaticinar
arranjos futuros muito mais consequentes do que a interacção da fotografia com
a pintura. Também somos tomados, no curto prazo, pela intuição sobre os processos que
transformam as coisas em volta, assombro do primeiro homem na Lua, fruto de ciências e tecnologias de ponta, alucinaç que parecia introduzir
alterações profundas no mundo. O artista de hoje é uma espécie de operador
generalista ou especializado no seu mister, ombro a ombro com parceiros de
áreas afins, e não um mero produtor de artefactos secundários. O que ele
realiza, com arquitectos, designers, engenheiros, além de mais e mais operadores,
são indubitavelmente objectos de
civilização. Sobra um problema bem complexo: como gerir essa civilização
O que o
Professor vê, junto da janela, com o rio por perto, lembra a anunciação da verdade, entre sonhos
ébrios e festins de gente ensandecida, ornamentada com esplendor, talvez a
grande tela das pulsações rítmicas e do desejo. É um cenário em ruínas, cercado
de casas de adobe, movimentos larvares de homens nus, alguns procurando trepar
os degraus do palco, num ginga-ginga absurdo e viral, a sugerir histórias escabrosas, lendas ou
visões ao jeito de Georg Grosz. E por isso, na dor, é de presumir que se esteja
simultaneamente diante do espectáculo da linguagem, na sua belíssima
esquizofrenia, própria da transição do século, ou num adivinhado Apocalipse de chamas
que devoram tudo à sua passagem. É estranho poder desvendar-se, por cada monte
de cinzas, um espaço de ópera diferente das outras óperas de outro
tempo. Talvez o quadro queira ser o espectáculo de um realismo contraditório,
mostrando irreparáveis fomes à beira dos pântanos, lamas e répteis, actores
carregados de plumas luxuosas, a miséria afinal obesa e caricatural. É gente
indecifrável, alcandorada, lenta, como plantas tropicais em varandins suspensos
de um palácio imaginário, surreal naquele limite do mundo.
Outros
varandins enchem-se também de velhos olhando acasos à sua volta, eles mesmos
improváveis mas sujos de uma espécie de argila ou leite derramado, anciãos
cujos olhos húmidos, ainda carregados de nostalgias, acabam por tornar algumas
mulheres por ali sentadas
em notáveis figurantes. Outras,
soltas, lavam de forma ostensiva as suas carnes cor de chocolate, grandes
seios, bolsas flutuantes na água apanhada da chuva tropical, entretanto
barrenta, lenta, cheirando a terra — ou a mortos e a flores ocasionais.
Há grupos
insinuados, por outro lado, elevando ao alto os cânticos espirituais de antigas
negritudes, em volta outra gente marcada pela magreza ou mutilações a lembrar
Brueghel. Tudo sonho ou realidade antiga. Tudo em espaços com parapeitos mal
aparelhados. Tudo como lugares entretanto vividos por mulheres afeitas ao
duríssimo trato de crianças rangendo, surpreendentes surpreendidas. Meninas sem
nome mas gentis na sua beleza lavada. Festa nobre da pintura. Mistura de
tempos, lugares e personagens. Roupas e cerimónias, a lembrar a libertação da terra ou as
recentes catástrofes naturais, não longe dos dias em que os mortos descem à
superfície do rio e por vezes acabam perdidos, às moscas, nas margens baixas. A
festa ou o paradoxo da vida. A presença estranha de uma ópera sem data, talvez
a lembrar Manaus, híbrida, com figurantes a exprimir outras gentes, outras
terras, lugares arrancados à selva. Paragens, enfim, capazes de receber
emigrantes de povos exóticos, rostos do mundo longe.
O professor senta-se, ofuscado com tais exercícios, entre meios, referências e belíssimas contradições. Ainda
não lhe ocorreu nada sobre o que procura. Os tempos e o espaço dos espaços não
parecem fazer sentido.
A miséria
surge aqui e ali no interior florestas colossais, num rumor de bichos e febres. Pode imaginar-se
que essa gente, a mais magra, a mais
desidratada, enchendo a boca de fuba uma vez por dia, esteja no limite da vida,
aguardando a morte, silenciosa e sem caprichos. Acaba a luz mas o povo não sabe
nada da luz, nem da morte, porque só lhe falam disso como direito ao mistério,
consolação na forma de flores atiradas sobre as urnas. É um confuso destino que começa, em todo o caso,
na viagem obscena da
maternidade e do início da vida.
O professor
pensa no limite, a Oriente e a Ocidente, para sul, pensa
nos grandes continentes carregados endemicamente de pestes. Mas ninguém trata
de ninguém, os genocídios misturam-se com as festinhas de senzala, latas que
batem, rebatem, quase apagando a lassidão das vozes na maior das escuridões,
choros e murmúrios nas horas diversamente terminais.
Breves excertos, de capítulos diferentes, do livro do autor do blogue,
intitulado
OBRA DE NINGUÉM
pensar o ver
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