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quinta-feira, novembro 06, 2014

DESERTO, SOLIDÃO, VELHICE EM POBREZA








Estive a ver um documentário sobre o interior de Portugal, passando por estradas modernas e antigas, povoações breves, electrificadas, e cada vez mais, de sul a norte, quase avistando a fronteira de Espanha, terras e terras abandonadas, despidas de fauna, de floresta e cuidado. Tudo se tornava mais surdo e pedregoso para norte, entre vales imensos, serras brutais, salpicadas de árvores meio tombadas pelo constante sopro do vento. 
E então comecei a descortinar casas de adobe, em ruinas, outras de granito bem talhado, sem telhado, com dentes de pedra apontados ao céu. Não há gente nestas covas, nestas antigas culturas dedicadas à agricultura. Depois sim, aparecem casas perto umas das outras, ainda cobertas de telhas, fechadas, tudo fechado, ruas secas e sem o menor sinal de qualquer uso pedestre ou de carros de tracção animal. Animais também não havia, as cabras, as ovelhas, nem um sinal decisivo, ainda que breve, de vida humana. A câmara desliza pelo estranho silêncio, rasando paredes cinzentas ou apertando as fendas de algumas paredes, flores secas, restos de copas de árvores já mortas, tornando bela a sua sepultura, no próprio lugar em que haviam nascido, hastes em cruz, cruzadas, subindo ao alto, batidas pelo vento, pela luz, ou silenciosamente apagadas pelo avanço da noite.

Mas acabei por ver gente: um homem metido em casa, ouvindo músicas através de velhos aparelhos sobrepostos numa espécie de bancada. «Não faço mais nada, não tenho forças físicas e psíquicas para me chegar à rua. Agradeço à Junta ter-me fornecido esta baixada para a electricidade.» Perguntaram-lhe pela família mas ele abanou primeiro a cabeça para dizer depois que já não tinha ninguém; ou, se tinha, há muito que não diziam nada lá do fundo da Austrália para onde tinham emigrado.
Uns quilómetros acima, após uma deriva por ruinas belas e comoventes, dentro das quais ainda se vislumbravam restos de mesas, baldes, velhos engenhos para tratar a terra e as plantas rasteiras, lá estava a terceira povoação, alcandorada numa colina florestada, aliás também ferida de tons abertos de impossíveis flores que só sobrevivem com o trato de alguém. Um homem vestido de escuro, magro, sem dentes e um chapéu acabado de ter sido enterrado na cabeça, saíu da porta e parou, ao ver-me, nos dois degraus que ligavam o piso à terra e às pedras da vereda serpenteante. Era o único habitante da aldeia, empenhava-se com as flores e a conservação exterior de algumas casas ainda em bom estado, das quais, aliás, conhecia os donos, também fora do país.
Num outro lugar só povoado de mulheres, duas delas com mais de cem anos, foi possível ouvir histórias do tempo em que ali se festejavam várias datas e havia crianças e uma escola por perto. E Agora? «Agora somos apenas nós. Só ali a Ermelinda ainda recebe no verão a visita de um filho que foi há muitos anos para França». Perguntei: «E Não lhes pesa esta solidão, a subsistência?» Uma sorriu com amargura, outra gargalhou em três sopros, as outras pareciam de pedra. «A gente cá se arranja e ainda tratamos dos nossos mortos. Estamos aqui porque é o nosso lugar, é onde nos criámos, casámos e tivemos os nossos filhos. Para quê ir para as grandes cidades, onde já não somos ninguém, se calhar nem pessoas.» Rápido: «Não, não diga isso». Ela: «Não é por mal. É o que tem de ser. Até  as  terras  de  África  se  afogaram. Lá  ficaram dois filhos meus, na guerra. Que Deus os tenha em paz porque os de cá nem os restos nos resgataram. Mas não deixa de ser esquisito que ninguém se chegue aqui, a estes montes tão lindos. Aqui a minha amiga Floripes não se conforma. Não é por ter ficado e nem cartas receber. É porque, como ela diz, estas regiões abandonadas e tristes podiam produzir grande riqueza. Muita gente podia viver aqui com desafogo e paz.» A Floripes, esganiçada, acusou: «Eles querem escritórios e coisas ricas, o mar, as praias que a gente nunca viu. O estado já rachou todo o país em dois, de norte a sul, mais ou menos a meio, um risco azul  desumano e já desbotado. Ainda na semana passada, ali em baixo, no Pé de Galo, morreu a mulher do pobre Sebastião. E ele ainda não acabou de chorar. Então não acha tudo isto uma selvajaria? A Linda perdeu os dentes e uma perna, faz tudo sozinha, vestida de negro, com uma touca até ao fim das orelhas. Em  certas alturas do ano, com sol, andam por aí  uns moços e moças de Inglaterra. Tiram retratos a tudo e dizem, quando arranham o português, que nada como isto há na Terra inteira. Pode haver gente pobre e em pouca quantidade mas nunca numa metade inteira de um país, longe uns dos outros, morrendo devagar, todos e poucos perdidos das vozes amigas, o avô António, a Maria em pequena, o Zé, o cão maricas, tão meigo: de cada vez que alguém morria, de cada vez ele lá ía parar, como qualquer de nós. O cansaço e a fome, isso que ninguém sabe o que é, atenuamos nós cavando a terra e plantando tudo o que é fresco e serve para sopa, saladas, tapar  buracos da noitinha. Tá vendo? A gente ficou a viver num país vazio, ao lado da última grande estrada que fizeram à pala dos capitães. Vieram de África, fugindo, e empurraram só as pessoas para essa coisa das cidades, rasgando o que puderam e chamando aos seus irmãos de cá «tuga», «tuga», que era o que os outros diziam de nós a eles, lá, na mata. Aqui o mais difícil não é o trabalho nem as dores do lumbago ou dos pés: o mais difícil é saber ler os sinais da morte.»





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