Foi muito difícil ver-te partir. A tua cabeça afastava-se para o elevador e eu tinha a sensação de que já não voltavas a fim de te ajudar, revoltado com Deus, obreiro da tua doença e daquelas cansativas noites em que o teu corpo se imobilizava. Ralhavas. Querias mover o que já mal se movia e eu chorava a olhar para a tua cabeça cansada. E à noite, o Miguel e a Daniela partiam, todos os dias a começar o que nós já quase acabámos. Nestes momentos é que tudo se torna claro: eu olhava para a televisão, para aquele terrível Eixo do Mal, mas a minha cabeça voltava-se para o teu maple, onde já não estavas. Nunca soubeste verdadeiramente como gosto de ti e sobretudo como me fazes falta, mesmo tocando aqui e ali para ajudares as tuas pernas em perda. E de repente tudo me fazia falta: os jantarinhos à noite, o fecho da Casa dos Segredos, o sono puxado a letras de romance. Agora escrevo-te sem pretensão nenhuma, apenas para te dizer que faremos todos os possíveis para estares ao pé de mim, a olhar para o canal 14 e para a Duquesa de Alba. As tuas botas ali alinhadas lembram-me tudo e o tempo dos teus passos ainda bem direitos a caminho do Cataplana.
Ali atrás estão as tuas coisas, não quero imaginar o que
sofreste ao ser analisada, mas essa era a esperança possível que nos restava
explorar. Reza por mim e por ti, eu acredito nessas rezas, porque são da nossa
vida e não de Deus nem dos anjos. Num mundo tão conturbado perto do nosso fim,
todos os instantes que restarem, copiados daqueles em que as pernas nos levavam
a sítios diversos, devem ser aproveitados, com ou sem lágrimas.
Beijo
João
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