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sábado, março 31, 2007

BREVE VISITA À OFICINA DO FREDERICO




fotografias de Rocha de Souss
Estas imagens foram recolhidas num largo espaço onde funciona uma oficina de automóveis. E embora seja aqui, desde há muitos anos, que procedo a revisões e arranjos no meu carro, a verdade é que algumas das minhas visitas decidem-se mais como a procura dos mecânicos amigos, trocando palavras e fazendo deslizar o olhar, em deriva, pelas montanhas de peças, estruturas, operações diversas, quadros eléctricos, motores abandonados, guindastes, ferros desfuncionalizados, ferramentas, várias cirurgias ao coração dos carros. A minha presença, por vezes, ao fim da tarde, arrasta um olhar panorâmico e dorido, a procura dos locais onde costumava encontrar o dono da oficina, o senhor Frederico, homem ainda novo e sem dúvida um dos mais extraordinários mecânicos que jamais conheci.
Passaram talvez dez anos, não sei bem. Ao sair de manhã, um dia, deparei com um grupo de pessoas que rodeava um carro, talvez fruto de algum acidente. Mas não. Era o carro do Frederico. Ele chegara, estacionara, ficara um pouco a olhar em frente, como sempre fazia, e de súbito a cabeça tombara para a frente, sobre o volante. Morrera assim, sem mais. Ele nunca deixaria que nenhuma das máquinas que tratava sucumbisse assim. Só que não usou consigo mesmo o método que sempre escolhia profissionalmente. Ficou durante cinco horas estendido no passeio, revestido a plástico, esperando com a mesma paciência de sempre a chegada do Delegado de Saúde.

sexta-feira, março 30, 2007

AS VELHAS FOTOGRAFIAS DO CAIS



Já passara o 25 de Abril de 1974, os sindicatos fumegavam, as chaimites passeavam pela planície alentejana, formavam-se partidos com grande alarido e lá para o Norte funcionava a Quinta Divisão, alfabetizando os camponeses em nome da revolução. O Caidinho era um pobre homem dedicado à pesca no rio e ali estava ele sentado. Foi apanhado por mim à falsa fé, contra a parede envelhecida, assim, com simbologias contraditórias por cima da cabeça. A mallta do cais (de Silves) não gramava o PPD, dedicando-se por isso a vandalizar cartazes e palavras de ordem. Foi então que a flha do Caidinho me apareceu de súbito na objectiva e de súbito me fez disparar, sobressaltado. Aqui está ela, entre a estranheza e a curiosidade, analfabeta, quase abandonada na margem lamacenta do Arade. Fica-nos este olhar estrábico, de incerto futuro, menina mal-amada e uma cabana na várzea onde vivia com o pai.

AS VELHAS FOTOGRAFIAS DA MARGEM

a proa jazente
cordame em descanso

todas as bandeiras do mundo


amarração lassa
Devagar, pisando a areia branca, fui até Cacilhas e de lá aportei à margem sul, numa manhã clara de Primavera. E achei, ouvindo o marulhar das ondas minúsculas que mordiam o cascalho, e vendo de perto restos de embarcações, bandeiras perdidas, travejamento próprio para assentar o bojo da embarcação, que aquele lugar era o lugar adequado à estreia da minha recente máquina Minolta, obra prima da óptica e do sistema analógico de registar o visível

segunda-feira, março 26, 2007

QUEM ACABOU COM O PARQUE MAYER?
















Hoje vim a este «cemitério», restos do Parque Mayer, onde tantas vezes joguei ping-pong e bilhar, onde tantas vezes comi um prego bem temperado, regado a cerveja, entre aulas meio esquecidas e os restos festivos da abertura de uma nova revista no Maria Vitória. Tudo isto num espaço nostálgico, abençoado pelos sulcos do tempo e outrora apimentada pelas gargalhadas que saíam do teato e se perdiam na noite fresca. Manhãs belas de domingo, como esta, a de hoje, com vazios e silêncios e ruínas em volta, carros parados, parcados, dormindo.
Qem acabou com tudo isto? Por mim, disparando sem gosto a máquina fotográfica, não me importava nada, mesmo nada, que viesse alguém para aqui a fim de que tudo fosse restaurado e reconstruído exactamente como era.

sábado, março 24, 2007

OUTRORA UM SENTIMENTO IMPERECÍVEL




...a dor de um rosto a tremer

no mundo, entre planos de noite e planos

de luz parados sobre a agonia,

águas de Deus correm numa paisagem

geral e obsessiva, e no terror de uma brancura explosiva,

a morte, fixa


excerto de um dos poemas de OS BRANCOS ARQUIPÉLAGOS, de Herbert Helder

quarta-feira, março 21, 2007

DO REAL À PINTURA E A PINTURA ELA MESMA



















Esta breve relação que estabeleço aqui, entre pinturas minhas e fotografias também da minha procura habitual, não é mais do que um sinal sobre o vasto campo de aproximações e afastamentos entre áreas como as enunciadas. Não se trata de uma questão de semelhança, mas, se há destroços e dinâmicos rasgões nos «desastres» indiciados pelas pinturas, algo de idêntico se passa na «soma de destruições» das duas fotografias, nas quais o tempo fez e desfez olhares -- e até lá conservou ícones de hoje para que não nos esquçamos da nossa própria invenção do sonho.

domingo, março 18, 2007

JARDIM COM LEGENDAS DE ALBERTO CAEIRO


Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos















Sinto uma alegria enorme
ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
e a Primavera era depois de amanhã,
morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
















quinta-feira, março 15, 2007

EXPOSIÇÃO «NOVAS FUNDAÇÕES»

Estas obras, uma das quais já foi divulgada aqui, fazem parte da exposição de Rocha de Sousa na galeria CiDi arte. Mais uma vez a relação entre a formulação plástica manual e o modo digital foi aqui testada e a problemática da conservação da identidade nos dois campos avaliada exeperimentalmente. Embora o autor esteja a elaborar, por meios digitais, ainda em fase de pesquisa, procurando em breve aceder a outras escalas, as peças dos dois processos mantêm uma originalidade de raiz comum e o espectáculo, desta vez tratado com rigor, beneficiou de um lugar apropriado.



quinta-feira, março 08, 2007

NOJO AOS VELHOS

fotografia de Rocha de Sousa

Era a hora alta do chá e dos bolinhos, doses pequenas, formais, miniaturais, um eufemismo da ração que constava da ementa diária. A verdade, contudo, é que só uma pequeníssima minoria de residentes da Casa se escusava a esse ritual barulhento, mal servido na qualidade e na pressa, de qualquer forma delicioso para preencher vários tipos de espera, impaciências nossas nas mesas de jogo, falas simultâneas, rachadas pelo arrastar de cadeiras ou de algumas vozes mais agudas. Eu tinha ficado a um canto, do lado dos janelões, olhando os vultos com olhares panorâmicos, mal focados; e era uma dormência tão difícil de suportar como de perceber, odores oleosos ajudando a brotar a lassidão, as imagens que me ocorriam de um suicídio com os pulsos cortados, pingo a pingo a esgotar com eles a avidez da vida, vontade do movimento, o resto (de súbito poeirento) de um projecto afirmativo, contra o absurdo. Levantava um pouco a cabeça e via um friso de pernas ora magras, ora gordas, em geral manchadas de varizes, erros de anatomia, com os pís metidos para dentro, frisos de chinelas, botas de flanela, sandálias medicinais, um espectáculo envolvido na suspensão aérea de urina e de águas de colónia baratas. Esta realidade penetrava-me nos brônquios, vinda primeiramente dos olhos, escorrendo por dentro de mim em jeito de náusea, alternando com un nojo objectivo, agressivo, que me apertava a garganta. As vozes esganiçadas, ou o som de trapos soprados pelo vento, criavam naquele espaço uma estranheza concordante com as figuras por vezes goyescas de muitos dos velhos residentes, bocas desdentadas, desenhadas a frio, as gengivas petrificadas à flor de covas escuras. Muitos rostos começavam a fixar-se no fundo da memória, fotografias amontoadas, dobradas pelo tempo, grupos de velhas senhoras encostadas no jardim dos sofás, com os seus corpos obesos, os bracinhos agitando figuras abstractas, dedos gordos qe batiam o ritmo de uma afirmação, dedos magros a deslizar por coxas magras, apanhando fios invisíveis, reexaminando as fissuras do tecido, tacteanso a lembrança da pele jovem através dele, a pele desses dias de sal e gaivotas, algum corpo mais, ali perto, na praia à noite e depois das férias, nudez plácida após cada orgasmo, o peito a arfar, o dela e o do outro --era tarde na melancolia do céu estrelado e na aparente possibilidade de um repúdio do gosto pela preguiça, um resto de suor entre os seios de mamilos ainda endurecidos. E eu via entretanto certa mão gorda, ali perto, numa pose autista, a descansar no desproporcionado e grosso desenho da coxa; e as pernas curvavam para dentro, acabando em pés insuflados, as pontas enviesadas, a pele escondida por meias cinzentas, cerzidas, um resto de roupa interior abaulada, perdida (à vista) no côncavo da pose sem alma. Trapos pardos, trapos sépia um pouco por toda a parte, a par de algumas palavras ou frases geradas naquele ruído quebrado mas forte; e dezenas de bocas abrindo-se e fechando-se no ar brumoso, a lembrar seres dotados de guelras, bocas ovais logo fechadas no arco em rosa dos lábios de novo apertados. Faces pálidas em redor, algumas rosadas, uma boa dezena de pessoas imóveis, transitoriamente olhando para dentro de si, a rever porventura a frouxidão que acomete a vida, ou vidas para nada, entre a névoa que pairava levemente no lago da Quinta do Conde -- lugar provável da meditação completa, enquanto os peixes bem tratados não fugiam à lei da vida, começando a dormitar, a morrer de velhos, cercados por montes de exemplares vermelhos, todos virando à esquerda e à direita num golpe secreto de comando. Na Casa, apesar de haver um grande aquário, não se descortinavam acções de desvelo pelos habitantes da água verde. E, no entanto, podíamos observar também peixes grandes, pesados, sonolentos, rodeados igualmente por pequenos cardumes de bebés vermelhos, ordenados, que pareciam patrulhar com um navegar nervoso os seus iguais claramente mais idosos, as escamas enfim baças, seres de outro mundo ainda a flutuar na água onde parecia escassear o oxigénio. Nesse lugar privado, especial, encostado às sombras, dir-se-ia acenar ainda um fio de vida no líquido por fim imóvel, baço, ou até impensavelmente sujo,

Nota: este texto corresponde a um fragmento do capítulo 13 do livro, cuja publicação está a negociar-se, e é da autoria de Rocha de Sousa, por sua vez rascunhador deste blog com diversas obras ou parte delas, entre vários meios de expressão. O livro intitula-se, numa espécie de antítese NOJO AOS VELHOS.

domingo, março 04, 2007

EÇA DE QUEIRÓZ VANDALIZADO NA FANTASIA



fotografias de Rocha de Sousa


Por muito que se menospreze a estética e a permanência do monumento alegórico a Eça de Queiroz, que nos acenou durante muito tempo na passagem da rua do Alecrim, na praceta adjacente, nada justificava, e muito menos por quem o fazia cobardamente, a vandalização da escultura, amputações várias, pinturas como a que ainda macula o peito da fantasia, a beleza dos véus e os sonhos do poeta com os braços amparando a dádiva maravilhosa da poesia, da escrita, do entendimento da cortesia. Agora, enquanto o Camona foi preservado e arrumado modestamente junto do Pavilhão Branco, toda a estátua que sublinhava um vulto superior da nossa cultura jaz a par do Pavilhão Preto, um pedestal solto, a mulher maculada mas rica de juventude, o escritor, por fim, serrado pelo peito, resto indigno pousado na relva. Quem são os nossos maiores, afinal? Quando se decide preservar cuidadamente o nosso património cultural?

CONFIGURAÇÕES DAS PEDRAS SIMBÓLICAS





fotografias de Rocha de Sousa
No grande relvado do sector norte do jardim do Palácio da Cidade existem diversos despojos encostados ao muro deste espaço e que lembram, com maior ou menor evidência, glórias antigas, personagens esquecidos, ornamentos de outras arquitecturas antigas e até monumentos mutilados.