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quinta-feira, março 08, 2007

NOJO AOS VELHOS

fotografia de Rocha de Sousa

Era a hora alta do chá e dos bolinhos, doses pequenas, formais, miniaturais, um eufemismo da ração que constava da ementa diária. A verdade, contudo, é que só uma pequeníssima minoria de residentes da Casa se escusava a esse ritual barulhento, mal servido na qualidade e na pressa, de qualquer forma delicioso para preencher vários tipos de espera, impaciências nossas nas mesas de jogo, falas simultâneas, rachadas pelo arrastar de cadeiras ou de algumas vozes mais agudas. Eu tinha ficado a um canto, do lado dos janelões, olhando os vultos com olhares panorâmicos, mal focados; e era uma dormência tão difícil de suportar como de perceber, odores oleosos ajudando a brotar a lassidão, as imagens que me ocorriam de um suicídio com os pulsos cortados, pingo a pingo a esgotar com eles a avidez da vida, vontade do movimento, o resto (de súbito poeirento) de um projecto afirmativo, contra o absurdo. Levantava um pouco a cabeça e via um friso de pernas ora magras, ora gordas, em geral manchadas de varizes, erros de anatomia, com os pís metidos para dentro, frisos de chinelas, botas de flanela, sandálias medicinais, um espectáculo envolvido na suspensão aérea de urina e de águas de colónia baratas. Esta realidade penetrava-me nos brônquios, vinda primeiramente dos olhos, escorrendo por dentro de mim em jeito de náusea, alternando com un nojo objectivo, agressivo, que me apertava a garganta. As vozes esganiçadas, ou o som de trapos soprados pelo vento, criavam naquele espaço uma estranheza concordante com as figuras por vezes goyescas de muitos dos velhos residentes, bocas desdentadas, desenhadas a frio, as gengivas petrificadas à flor de covas escuras. Muitos rostos começavam a fixar-se no fundo da memória, fotografias amontoadas, dobradas pelo tempo, grupos de velhas senhoras encostadas no jardim dos sofás, com os seus corpos obesos, os bracinhos agitando figuras abstractas, dedos gordos qe batiam o ritmo de uma afirmação, dedos magros a deslizar por coxas magras, apanhando fios invisíveis, reexaminando as fissuras do tecido, tacteanso a lembrança da pele jovem através dele, a pele desses dias de sal e gaivotas, algum corpo mais, ali perto, na praia à noite e depois das férias, nudez plácida após cada orgasmo, o peito a arfar, o dela e o do outro --era tarde na melancolia do céu estrelado e na aparente possibilidade de um repúdio do gosto pela preguiça, um resto de suor entre os seios de mamilos ainda endurecidos. E eu via entretanto certa mão gorda, ali perto, numa pose autista, a descansar no desproporcionado e grosso desenho da coxa; e as pernas curvavam para dentro, acabando em pés insuflados, as pontas enviesadas, a pele escondida por meias cinzentas, cerzidas, um resto de roupa interior abaulada, perdida (à vista) no côncavo da pose sem alma. Trapos pardos, trapos sépia um pouco por toda a parte, a par de algumas palavras ou frases geradas naquele ruído quebrado mas forte; e dezenas de bocas abrindo-se e fechando-se no ar brumoso, a lembrar seres dotados de guelras, bocas ovais logo fechadas no arco em rosa dos lábios de novo apertados. Faces pálidas em redor, algumas rosadas, uma boa dezena de pessoas imóveis, transitoriamente olhando para dentro de si, a rever porventura a frouxidão que acomete a vida, ou vidas para nada, entre a névoa que pairava levemente no lago da Quinta do Conde -- lugar provável da meditação completa, enquanto os peixes bem tratados não fugiam à lei da vida, começando a dormitar, a morrer de velhos, cercados por montes de exemplares vermelhos, todos virando à esquerda e à direita num golpe secreto de comando. Na Casa, apesar de haver um grande aquário, não se descortinavam acções de desvelo pelos habitantes da água verde. E, no entanto, podíamos observar também peixes grandes, pesados, sonolentos, rodeados igualmente por pequenos cardumes de bebés vermelhos, ordenados, que pareciam patrulhar com um navegar nervoso os seus iguais claramente mais idosos, as escamas enfim baças, seres de outro mundo ainda a flutuar na água onde parecia escassear o oxigénio. Nesse lugar privado, especial, encostado às sombras, dir-se-ia acenar ainda um fio de vida no líquido por fim imóvel, baço, ou até impensavelmente sujo,

Nota: este texto corresponde a um fragmento do capítulo 13 do livro, cuja publicação está a negociar-se, e é da autoria de Rocha de Sousa, por sua vez rascunhador deste blog com diversas obras ou parte delas, entre vários meios de expressão. O livro intitula-se, numa espécie de antítese NOJO AOS VELHOS.

2 comentários:

naturalissima disse...

Só espero que esta OBRA o leve ao Prémio Nobel.
Arrepiei-me ao lêr este pedaço magnífico, imagino o que seja o livro no seu todo.

Parabéns tiomeu
fiquei sem palavras... com o peito cheio e apertado de sensações.

Um beijinho
sobrinhasua
Daniela

jawaa disse...

Excelente fotografia!
O realismo comovente da sua escrita contrasta com a vontade política de encarar uma realidade cada vez mais premente, a necessidade de conferir alguma dignidade à maioria clara deste país de (cada vez mais) idosos – tratados desumanamente, sem apoio de qualquer espécie, como seres a extinguir quanto mais depressa melhor.
Ainda há uma semana atrás, o Ministério da Educação – liderado por uma mulher! – discriminava todas as professoras do país classificando-as negativamente se estas excedessem o número mágico de 9 faltas anuais.
Que belo incentivo à natalidade!