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quarta-feira, maio 02, 2007

NOJO AOS VELHOS

foto de Rocha de Sousa
texto: excerto do romance Nojo aos Velhos, do mesmo autor
Ninguém interrompeu o discurso de Orlando. Feliciana tinha os olhos abertos de sabedoria.
«Eu pensei que não gostava da senhora e hoje não tenho razões para começar tudo desde o princípio. Aliás, se tivesse conhecido o Duque em pé de igualdade, estaria longe de olhar sequer para ele no fervor de uma época de republicanos. Com certeza. Se calhar não gostava da senhora por ter sido esposa de um resto encarquilhado da monarquia, ou do espírito monárquico, os fatos, os velhos cavalos, a renda de pedra para fingir pináculos de grandeza. Era tudo ideia dele, certamente. Agora, se a vejo de soslaio, por aqui, neste não dizer nada, tenho outras razões para a raiva de cada dia, sempre ponderáveis, contra essa lenga-lenga dos bons sentimentos. Deve ter sido graciosa em nova, reconheço. Contudo, eventualmente, sobrevive entretanto com muita pintura e cabelos apertados. Isso vem de longe, porventura. Mas não é orgânico, não pertence à verdade, claro que sim, os vidros além. Eu sei que desliza pelos corredores e salas e saletas, eventualmente, um pouco tonta por vezes, de uma utilidade inútil. Em todo o caso, se a fotografarmos da cintura para cima (devagar, em contra-picado) talvez se possa dizer que está de pé, assumindo a herdada ruina da autoridade. Sim, tam razão: é patético não me lembrar do seu nome, penso devagar e nada, depois sinto a orla de uma lembrança, alguém que se chamava Mariana; e deixo-me vencer pela confusão.Ah, já sei, Feliciana. Agora que o seu perfil se tornou claro em contra-luz, vejo-a discutindo o destino do mundo, saltando por cima da morte e da solidariedade social. Era atrevida, a Dona Feliciana, e agora está aqui, na Casa, ainda em vida, para cumprir uma pena dolorosa. A sua cadeira dourada, pois claro, contudo. Deveras que penso mais em artilharia do que em cavalaria. Ele era pequeno, de pera, bebendo o seu cognac, e acabou fotogrado nos jornais, após a nossa libertação, por causa de mulheres e fraudes financeiras, um escândalo nacionalista. Certamente. Vezes sem conta. A senhora resistia, da varanda do seu palacete, cópia eventual de outras mulheres, a seiva a perder-se. Não, de facto não tinha simpatia por si, nem pelo Arquiduque, e o facto de nos encontarmos nesta promiscuidade, eu modesto engenheiro imobilizado, a senhora apodrecendo colorida, prova a insanidade da Natureza. Porventura. De erros vários, contudo. Dizem que há um Deus cego, eventualmente atordoado com a nossa aventura, a incandescência em volta, os sonhos escurecendo no entardecer.

2 comentários:

jawaa disse...

Caracterização tocante, de uma personagem.

naturalissima disse...

Aguardamos a edição de mais um livro seu.
Bela passagem que nos desvendou... despertando interesse e vontade de o lêr.

Um beijo para Mamijohn
hehehehe... ;)
Até breve
Daniela