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segunda-feira, novembro 19, 2007

BELAS-ARTES E SEGREDOS CONVENTUAIS

SOBRE UM LIVRO QUE DESVENDA
OS ATRASOS SOMBRIOS DO ENSINO ARTÍSTICO

Estes dois excertos foram escolhidos de um livro de rocha de sousa que vai sair dentro em breve e que põe a nu, pela primeira vez, um longo percurso de desdém pelas artes e pela cultura, significativamente traduzido antes e depois do 25 de Abril de 74, durante décadas de humilhação de professores e alunos, Escolas sem meios, vigiadas, sem cumprimento das carreiras dos docentes e das reformas entretanto saídas em 1957, por último em 1976, treze anos em que os artistas ali trabalhando, roubados das categorias a que deviam aceder, conseguiram, ainda sem quadros, obter do governo a consolidação das Escolas Superiores de Belas Artes em Faculdades -- a de Lisboa na Universidade de Lisboa e que só há pouco dispôs das primeiras categorias. Das seguintes também, finalmente até catedrático. O país e os brasileiros do Chiado nunca quiseram perceber, nem quiseram tentar, a realidade das batalhas travadas, das metodologias modernas que chegaram a ser clandestinas, do incumprimento de leis que remeteram para a designação de primeiros assistentes personalidades raras, duas décadas esquecidas do acesso a Professores Auxiliares. Perante governos que até o design baniam, largos anos depois da «revolução», pode fazer-se uma ideia, apesar de tudo, da perda em demissões e do desinteresse pela prestação técnico-artística que os novos licenciados poderiam oferecer ao país, desde um verdadeiro ensino atístico até à defesa do espaço urbano, do ambiente, das instituições regionais onde saberiam fundar novos polos dedicados ao entendimento da cidadania e de objectivos de vida capazes de inverterem a desertificação do interior.

primeiro

Helena, um belo prelúdio de amor e as fantasias desfazendo-se no umbral da porta, acenos distraídos, um cheiro a bolos daqui a pouco. Comia o meu bolo de arroz em passeios sem nexo no corredor que dava passagem para o atelier de modelo vivo. Bebia as minhas próprias lágrimas virtuais, humilhado pela mediania do exílio e pela cada vez mais clara pobreza desactualizada daquele curso -- Aldemiro como penosa imagem de tudo isso, professor amável mas inútil, refém da sua única corda vocal e das bibliotecas e dos museus que lhe favoreciam certas descobertas a par do trágico comportamento do século. Tombavam tectos de novo, as abóbadas tinham fissuras inquietantes, os canos vertiam fios de água para dentro das grossas paredes, havia humidade um pouco por toda a parte, vozes longe, na envolvência da realidade e da memória. Bolor. Bolores nos arquivos de belos desenhos arquitectónicos e cópias de ânforas do Mediterrâneo. Caves cheias de «Diários do Governo» e de ratos, num fedor que emergia também de outras caves mais fundas, esgotos, labirintos de morte. Como no cinema. Mas sem a fúria e a vertigem de travellings impossíveis. Quem descesse a essas distantes cavernas da civilização contemporânea, numa deriva de que jamais sairia, usando em todo o caso lanternas e máscaras, formaria, a curto prazo, passos arrastados, brevíssimos, imersos na lama escorregadia ou nos vales mais profundos onde uma água barrenta, talvez esverdeada, anunciaria o aventureiro, daí a pouco borbulhando em torno do seu pescoço.

segundo
«Também tu, mulher? Esta casa vai desabar, que é que julgas? O Firmino está feito com o Paulino, sabem de tudo, encontram-se com o Salazar durante a noite, mandam prender comunistas. Eu bem vejo os quadros do Mestre Salgado, enrolados debaixo do móvel de pau preto, à espera dos gajos da fronteira. A Cova Funda está cheia de ratos, crostas de caca, bolor em volta. De noite são os morcegos, aquelas asas de pano, pretas, num desassossego. Mas dentro do lixo há sempre um anel de brilhantes, noivas mortas, véus. E as molduras dos quadros roubados. E o sangue da violação. E as argolas e as correntes penduradas, cheias de ferrugem. As noivas eram crianças abandonadas na cripta, quando os cavalos se afastavam e batiam com ferros nas pedras da calçada. Tive os esqueletos das meninas nas minhas mãos, sobraram em monte depois das obras de 1911. Obras e reformas, sim. Foram os republicanos que mandaram edificar os casarões de escultura e pintura. Aproveitaram as escadas em caracol, descendo e subindo vezes sem conta entre fantasmas de frades e de freiras. A história levou-os mais fundo. A um lugar de cisternas e túneis lamacentos, donde removeram velhas armaduras semi-desfeitas, ainda habitadas pelas ossadas dos soldados mortos no labirinto. É tudo um labirinto. As estátuas antigas haviam sido modeladas em pedra. Os gessos armazenados. Foram todas enviadas, as estátuas, aos bocados, no bojo dos veleiros, para o Brasil. Nós somos os indigentes abandonados na fossa, ou aí dispersos pelos campos, mas esses campos secaram, amaldiçoados, desde o fim do Império e já não são Portugal. O Mestre Macedo tinha documentos que falavam destas coisas. Ele quase endoideceu quando, perseguido pelos homens do 28 de Maio, descobriu que já não vivia no seu país. Salazar, dez anos mais tarde, deu-lhe razão. Porque a pátria que o ditador não discutia, nem erstava à venda, era o Estado Novo, não era Portugal. Tudo começara a desfazer-se com o desaparecimento de D. Sebastião. Houve especiarias, a par do escorbuto, um tempo de viagens. O rei menino nunca mais voltou e não faltou quem dissesse, quando a corte fugiu para as terras achadas pelo Cabral, que alguém padeceu muito num convento anterior a este. Traziam de certa masmorra, para o caneiro que ía dar ao rio, roupas sujas, potes cheios de fezes, sangue e comida vomitada».
«Cala-te, Acácio!», gritou Felismina.
«Aquele sangue pertencia ao último português».
«Não digas asneiras, Acácio!»
«Todos os portugueses que voltam à terra onde existiu o reino de Portugal, voltam de madrugada, escondendo-se nos grandes nevoeiros da planície».

*

O primeiro excerto envolve referências a um clima escolar dos anos 50, assim revelando a natureza das carências, das salas degradadas e de uma pedagogia que já não fazia sentido.

O segundo excerto traduz uma «fala» do funcionário Acácio, no início da sua demência, das suas metáforas erráticas, antes ainda do tempo em que o mantiveram no serviço quando ele permanecia em estátua o dia inteiro, alucinado e de corpo dilacerado.

4 comentários:

Miguel Baganha disse...

Diogo de Macedo, Almada Negreiros, Júlio Pomar, Eduardo Viana e H.Vieira da Silva -esta a quem Salazar não restituiu a cidadania portuguesa por ter casado com o húngaro "Arpad Szenes"- entre outros.Tudo isto, são artistas portugueses Neo-realistas, Abstraccionistas, Surrealistas ou simplesmente pessoas cuja visão de vanguarda foi oprimida por assustar um governo de mentalidade pequena e obsoleta.Este governo estupidamente ditatorial tinha medo pelas modernidades que iam crescendo na Europa.
Salazar pensava que ao assimilar essas modernidades, Portugal perderia a sua identidade ignorando na verdade, que ela viria a perder-se precisamente na deriva das limitações impostas ao seu povo.

O que seria de Souza-Cardoso com a sua capacidade visionária se tivesse vivido sobre esse regime?, não sei...o que sei é que os artistas portugueses viram nessa época, a sua evolução criativa e cultural ser ameaçada, o que "empurrou " alguns desses grandes nomes para fora do seu país em busca de mais liberdade artística.

Nenhum dos artistas portugueses de vanguarda viu o seu talento ser reconhecido em vida.Mas todos eles enriqueceram culturalmente no período em que estiveram ausentes do seu país.

Espero que Portugal não necessite de voltar a esconder-se na neblina da ignorância.

Boa semana, João...e Belas-Artes!

Um abraço,

Miguel

Miguel Baganha disse...

Diogo de Macedo, Almada Negreiros, Júlio Pomar, Eduardo Viana e H.Vieira da Silva -esta a quem Salazar não restituiu a cidadania portuguesa por ter casado com o húngaro "Arpad Szenes"- entre outros.Tudo isto, são artistas portugueses Neo-realistas, Abstraccionistas, Surrealistas ou simplesmente pessoas cuja visão de vanguarda foi oprimida por assustar um governo de mentalidade pequena e obsoleta.Este governo estupidamente ditatorial tinha medo pelas modernidades que iam crescendo na Europa.
Salazar pensava que ao assimilar essas modernidades, Portugal perderia a sua identidade ignorando na verdade, que ela viria a perder-se precisamente na deriva das limitações impostas ao seu povo.

O que seria de Souza-Cardoso com a sua capacidade visionária se tivesse vivido sobre esse regime?, não sei...o que sei é que os artistas portugueses viram nessa época, a sua evolução criativa e cultural ser ameaçada, o que "empurrou " alguns desses grandes nomes para fora do seu país em busca de mais liberdade artística.

Nenhum dos artistas portugueses de vanguarda viu o seu talento ser reconhecido em vida.Mas todos eles enriqueceram culturalmente no período em que estiveram ausentes do seu país.

Espero que Portugal não necessite de voltar a esconder-se na neblina da ignorância.

Boa semana, João...e Belas-Artes!

Um abraço,

Miguel

jawaa disse...

Demora muito tempo para se apagar uma falta por ignorância na vida de um só; na vida dos povos cada falta destas arrasta consequências por décadas.
Aqui não houve faltas, foi crime.
Vem sempre em tempo a denúncia.

Obrigada pelos excertos, deu para «provar» a escrita.

Fico na dúvida se a belíssima imagem que surge no início é uma pintura ou uma composição fotográfica de um perfil grego.

miruii disse...

Uau...! que capa lindérrima e atraente!
Quando é o lançamento?
Ainda este ano?

Honradíssimo, eu.
Muito obrigado.