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sexta-feira, agosto 29, 2008

O SOPRO DA BRISA E A MORTE DAS ÁRVORES


















Liso, seco, translúcido,
o tecido sobre a janela ainda se deixa atravessar
assim,
entre a luz e a palavra cujo sentido
nomeia a cortina, no balanço breve da brisa
a descer sobre o tapete copiado dos persas
aqui,
no lugar procurado pelo cão,
passos leves encobertos, dispersos,
cão que vem dormir vagos sonhos
no chão feito de flores e fios diversos.

Dorme, cão, respira devagar como as plantas,
sonha que é natural e verdadeira a relva desse tapete
e deixa que o teu pêlo se pareça com a lã do chão,
mal reflectindo a luz amarelada que desce da janela,
ou das cortinas e dos panos laterais,
ou do teu próprio sonho,
dessa lassidão lateral, de cão,
as pernas estendidas e a cabeça de orelhas caídas,
tombada e já sonhando novas saídas.

Nem tu sabes, cão, quantas vezes estive assim,
dormindo pela tarde fora, fingindo o real,
mal acordado depois pela cortina contra a cal,
outros panos laterais, igualmente teatrais,
pesados do sol a queimar e dos anos mais.

Morte anunciada, a deles,
dos troncos seculares, sem canais,
gigantescos e abandonados pelos pardais,
seiva seca, ramos quebrados,
jardim de bairro, recantos abafados,
dois patos, lentos e sós,
e um lago breve onde eles deslizavam, perto de nós.
Olhares divagando, doridos,
enquanto as serras cortavam os troncos feridos.

Troncos mortos antes de feridos.
Pardais mortos antes de perdidos













quarta-feira, agosto 27, 2008

APRENDER AS HORAS COM O RELÓGIO DA AVÓ


Eu era menino, já formava palavras e fazia contas. Foi há muito tempo, sem brinquedos nem prendas soberbas, a casa velha e fria, uma avó santa que me ajudava nas pequenas redacções e me oferecia, quando regressava de Aljezur, caixas com regimentos inteiros de soldadinhos de chumbo. Chamava-se Angélica, a avó, e fazia lindas rendas em crochet, costurava camisas e vestidos singelos de senhora. Cozinhava petiscos de galinha do campo e por vezes mandava ao forno público tabuleiros de folares. Em certos dias, quando não falava e nos dirigia olhares saudosos, era fácil perceber que tipo de sentimentos a povoavam e as saudades adiantadas para depois da morte. Tinha 90 anos e uma saúde de ferro. Escapara à pneumónica e tivera seis filhas.
O meu padrinho era um senhor farmaceutico, que emigrara para França e lá casara com uma senhora de boas famílias, madame Renée, que ainda conheci largos anos depois da guerra. Tinha um flho da minha idade e acabara por ser igualmente minha madrinha.
Quase no fim da guerra, o meu padrinho veio a Portugal para se tratar de uma doença dos pulmões e trouxe-me duas ofertas de sonho: um carro descapotável, pequeno, que andava a corda e no qual podíamos rodar o volante, mudando a direcção das rodas, e ainda um relógio de pulso, à prova de água, com ponteiros luminosos, segundo creio de muito boa marca.
Foi rápida a minha adaptação ao automóvel, em metal e com rodas de borracha, um luxo que nunca vira nas feiras onde só havia tralha de lata, de madeira e arame, coisas pitorescas mas que sucumbiam junto do meu peugot. Os meus dedos finos, de criança, manejavam o volante com facilidade e em bom acompanhamento de marcha.
O relógio, lindíssimo, grande de mais para a minha idade, é que era o pior. Pior porque eu não sabia ver as horas e não queria revelar a ninguém essa falha. Nem sequer me ocorria pedir a um dos amigos do meu pai, na Havaneza, que me ensinasse. Isso não seria estranho, pensava eu, tanto pela minha idade, como pela minha relação com a pessoa, o senhor Costa. Mas tive vergonha, de uma timidez congénita, e fiquei sem poder usar o relógio, embora o visitasse muita vez e lhe tivesse dado corda.
Eu ouvia as pessoas falarem das horas: «Maria? Que horas são?» E a voz dela, lá do fundo: «São dez e trinta e cinco». Depois percebi, quando a avó alimentava de corda o seu velho relógio de parede, acertando logo as horas, que o ponteiro mais pequeno correspondia aos números, aos doze números, o sinal das horas, sendo o maior um instrumento das tais partes ou minutos. Cada vez, neste jogo de espionagem, sabia mais sobre o funcionamento dos relógios e a marcação das horas.

Um dia, estava a minha avó a fazer a cama, perguntei-lhe: «Vó? Que horas são no seu relógio? Não vejo bem daqui.» E ela: «Pois claro, filho, és tão pequeno. São nove e dez». «Ah, está bem». E logo corri para o meu quarto com o intuito de colocar os ponteiros do meu relógio na posição em que vira os dela. Depois fui espreitando o andamento dos relógios. Por volta das cinco da tarde, decidido a aprender a ler as horas, meti-me na casa de banho e com um papel apontei aquele famoso «nove e dez». Percebi depressa que poderia, logo a seguir áquela hora, haver uma outra, no caso das dez. Se o ponteiro pequeno fosse colocado nas dez e o grande na posição das nove e dez, o resultado só podia ser «dez e dez». A partir daí começei a fazer experiências diferentes, rinventando o tempo que os outros apregoavam durante o dia. Eram seis horas quando descobri tudo, com uma alegria interior brutal. Quase a tremer, rodei o meu ponteiro das horas para as seis; e o maior para o número três. Segundo a minha descoberta seriam seis horas e 15. Corri para o corredor, onde a minha avó se sentava e vigiava o seu próprio quarto, mas, para disfarçar, desandei para o quintal. Um pouco depois clamei: «Vó?» E ela: «O que é, menino?» E eu:«Que horas são no seu relógio?» Ela inclinou-se para ver e disse: «São seis e vinte». Estremeci. Esperei. Acrescentei cinco aos 15, porque o seis já eu lobrigara do corredor. Fui, enfim, com ar distraído e sonso olhar a renda da avó e, logo que me foi possível pôr a jeito, olhei para o relógio dela: os velhos e rendados ponteiros estavam na posição dos meus: seis e vinte e quatro.
Nesse dia, até à noite, andei pela rua e pelo café a perguntar as horas. Quando mas diziam, eu pensava. O ponteiro pequeno está nas sete e o grando está nos 30, que eles chamam de meia hora.
E assim, longamente, tudo foi batendo certo. Não esperei por mais idade para colocar o relógio. De manhã coloquei-o no pulso, antes de ir para a Escola, e quando parti eram sete e trinta e cinco: sete horas e trinta e cinco minutos.
Rocha de Sousa

sexta-feira, agosto 15, 2008

PENSADOS DE ONTEM, CONSUMIDOS HOJE


A seguir a este conjunto de imagens, captadas na Feira Medieval de Silves, poderemos ver mais coisas próximas da sedução pela bugiganga. Estamos em Agosto de 2008 e a ideia dos dos organizadores cestes eventos é chamarem as massas que devoram tudo o que seja espectáculo , obstruindo a cidade e chamando os milhares de mirones que devoram tudo o que seja erspectáculo e bens (mesmo menores) consumíveis. Aqui olharemos pulseiras «iguais» e tecidos porventura trabalhados em teares eléctricos, informatizados, nos quais ninguém procura efeitos especiais capazes de sugerirem a espessura dos panos medievais, obtidos em grandes aparelhos horizontais, rudes e produzindo por vezes delicadas tramas de linho. Teares de quatro pentes e correpondente número de pedais, que separavam as teias umas das outras, aos pares.


quinta-feira, agosto 14, 2008

SILVES: FEIRA MEDIEVAL OU A ILUSÃO CÉNICA

OS ESPELHOS MÁGICOS

A Feira Medieval de Silves é uma tradição recente. Uma cenografia mágica, com espelhos milagrosos e milhares de bugigangas que não servem para nada mas que, na sua anarquia de multidão, se espetam nos nossos olhos e tornam-se estranhos sucedâneos dos nossos desejos. A população, sobretudo jovem, veste os trajes da época, por vezes cortejando as almas do clima, circulando em marchas dançantes, acompanhado a célebre dança do ventre, olhando de longe as lutas dos cavaleiros,--combates de lança e a cavalo, combates rancorosos a pé, com grandes espadas cerimoniais. A rainha não sei donde vem ao largo das memórias poéticas e navega brevemente no rio engalanado. Este ano imaginou-se o tempo do domínio árabe e a conquista da cidade por D. Sancho I, apoiado numa armada de Cruzados. Mas tudo se reduz ao mesmo do ano passado, a Idade Média são fantasmas de várias épocas, enquanto nas barracas sem idade e luzes bruxeliantes, instalam-se marroquinos, ciganos, espanhóis e até lordes ingleses, louros, com mulheres e filhos, estilo baile de máscaras, a vender candeias de lata e colares de vidrinhos. É uma boa brincadeira, cercada de grandes espaços toscos, onde se comem leitões e as mais esquisitas iguarias Essas sim, lembram mais de perto a Idade Média. Sem querer ser desmancha prazeres, acho que era mais honesto chamar ao ecento apenas Feira de Outros Tempos. Ficava tudo mais integrado, sem medo dos erros históricos e sem as joalharias de lata e vidro em barracas de lona vanguardista. Em paralelo podia fazer-se história, lembrar acções dos séculos XI, ou XIII, ou mesmo XIV.





terça-feira, agosto 12, 2008

A LENTA SUBMERSÃO DOS HOMENS | A CASA

Livro de 2006. Em preparação de saída
CÍRCULO DOS LEITORES
extracto
A irmã Mariazinha andava de volta, o braço direito a balançar como numa saudação, sugerindo a impossível distribuição de hóstias fora da hora litúrgica que as ligava ao Senhor. Francisca arrastara a Dona Feliciana para uma esquina diante do janelão, tratava das bolachas com geleia, espalhando toda essa anunciada felicidade pela bandeja que depois sabia ajustar nos braços da cadeira de rodas. Feliciana tinha alguns haveres preciosos e a serventia voluntária daquela mulher que ficara marcada pelo gosto beato de assumir estes trabalhos e outros similares, sempre na dependência de alguém, sempre em obediência ao poder instituído. Na sua passagem fiscalizadora, Mariazinha soltava no ar certas palavras de ordem: «despache a senhora, tia Francisca, isto não é serviço para mimos e rezas mururadas». Mariazinha vinha zelando pelo equilíbrado decorrer da refeição, sem alienar as palavras próprias e os gestos indiciando ordem, entre roupas pardas e o aviso dos cheiros. Era necessariamente muito tolerante para com os velhos que usavam roupa da Casa, pijamas de flanela às riscas, largos, grotescos, ou fatos de cotim, tesos das lavagens completadas com ferro e goma. Ajudava no sentido de que tudo decorresse, por outro lado, dentro do horário previsto, inacessível aos velhos sem dentes ou outros males semelhantes, terminando a chamar de longe as auxiliares para que carregassem a louça, pilhas de louça. As auxiliares eram mocinhas de pouca idade, maminhas a despontar, rostos de porcelana e acabamentos a ouro, pernas já grossas e abauladas nas calças de ganga que traziam por baixo da bata curta. Bolinhos, mais bolinhos. «Que idade tens tu, minha querida?» As bocas luzidias da saliva e do chá abriam-se e fechavam-se umas após outras, comendo, falando, expondo a língua por acaso ou num maginário de luxúria. Mateus ia sempre para o mesmo lugar, de perna aberta, a mastigar bolinhos e a escarrar nos guardanapos de papel. Punha a mão no sexo quando as mocinhas passavam e gostava de vê-las rir, como se elas lhe viessem prestar outros serviços, daqui a pouco ou de madrugada, entre aventuras cheias de lascívia. «Deixe as moças em paz, compadre Mateus, olhe que ainda o mandam para o olho da rua». Gargalhadas, murmúrios de desaprovação. E ele: «Mas que faço eu às miúdas, ó merda? Olho para elas com um olhar sem malícia, saudoso dos borrachos de outras épocas, nem mais nem menos». O senhor José tinha recebido a visita da irmã Mariazinha porque deixara cair uma chávena e esta partira-se. Ela dedicou-lhe palavras atordoantes, como setas nos alvos de cortiça pintada em círculos, o dourado ao centro. «Ah sim? Está tudo apertado ou os senhores é que se apertam como pardais no cimo das árvores?» José era um velhote de estatura meã, torrado pelo sol dos campos, que a Junta de Freguesia da sua aldeia cobrira de alguns favores em troca das culturas dele, da casa em ruínas e da pensão de miséria que o Marcelo lhe inventara. «Eu pago a chávena, foi sem querer, as minhas mãos ficaram trémulas logo que deixei de cavar».
Excerto do capítulo 13, livro A Casa, de Rocha de Sousa