CÍRCULO DOS LEITORES
extracto
A irmã Mariazinha andava de volta, o braço direito a balançar como numa saudação, sugerindo a impossível distribuição de hóstias fora da hora litúrgica que as ligava ao Senhor. Francisca arrastara a Dona Feliciana para uma esquina diante do janelão, tratava das bolachas com geleia, espalhando toda essa anunciada felicidade pela bandeja que depois sabia ajustar nos braços da cadeira de rodas. Feliciana tinha alguns haveres preciosos e a serventia voluntária daquela mulher que ficara marcada pelo gosto beato de assumir estes trabalhos e outros similares, sempre na dependência de alguém, sempre em obediência ao poder instituído. Na sua passagem fiscalizadora, Mariazinha soltava no ar certas palavras de ordem: «despache a senhora, tia Francisca, isto não é serviço para mimos e rezas mururadas». Mariazinha vinha zelando pelo equilíbrado decorrer da refeição, sem alienar as palavras próprias e os gestos indiciando ordem, entre roupas pardas e o aviso dos cheiros. Era necessariamente muito tolerante para com os velhos que usavam roupa da Casa, pijamas de flanela às riscas, largos, grotescos, ou fatos de cotim, tesos das lavagens completadas com ferro e goma. Ajudava no sentido de que tudo decorresse, por outro lado, dentro do horário previsto, inacessível aos velhos sem dentes ou outros males semelhantes, terminando a chamar de longe as auxiliares para que carregassem a louça, pilhas de louça. As auxiliares eram mocinhas de pouca idade, maminhas a despontar, rostos de porcelana e acabamentos a ouro, pernas já grossas e abauladas nas calças de ganga que traziam por baixo da bata curta. Bolinhos, mais bolinhos. «Que idade tens tu, minha querida?» As bocas luzidias da saliva e do chá abriam-se e fechavam-se umas após outras, comendo, falando, expondo a língua por acaso ou num maginário de luxúria. Mateus ia sempre para o mesmo lugar, de perna aberta, a mastigar bolinhos e a escarrar nos guardanapos de papel. Punha a mão no sexo quando as mocinhas passavam e gostava de vê-las rir, como se elas lhe viessem prestar outros serviços, daqui a pouco ou de madrugada, entre aventuras cheias de lascívia. «Deixe as moças em paz, compadre Mateus, olhe que ainda o mandam para o olho da rua». Gargalhadas, murmúrios de desaprovação. E ele: «Mas que faço eu às miúdas, ó merda? Olho para elas com um olhar sem malícia, saudoso dos borrachos de outras épocas, nem mais nem menos». O senhor José tinha recebido a visita da irmã Mariazinha porque deixara cair uma chávena e esta partira-se. Ela dedicou-lhe palavras atordoantes, como setas nos alvos de cortiça pintada em círculos, o dourado ao centro. «Ah sim? Está tudo apertado ou os senhores é que se apertam como pardais no cimo das árvores?» José era um velhote de estatura meã, torrado pelo sol dos campos, que a Junta de Freguesia da sua aldeia cobrira de alguns favores em troca das culturas dele, da casa em ruínas e da pensão de miséria que o Marcelo lhe inventara. «Eu pago a chávena, foi sem querer, as minhas mãos ficaram trémulas logo que deixei de cavar».
Excerto do capítulo 13, livro A Casa, de Rocha de Sousa
2 comentários:
Tio-mestre,
parabéns por mais esta peça que já vai a caminho das bancas. Um livro com uma história repleta de sub-histórias, relatos existenciais de "jovens d'outrora" ocorridos no interior duma "casa" onde as memórias se mantêm à superfície da lenta e derradeira submersão do Homem.
Inevitávelmente...
Adorei o "cheirinho", João. Vou esperar pela sua edição com grande expectativa. A capa é sinistra, bizarra e penumbrenta. Adequada á atmosfera do interior da casa que o extracto aqui apresentado nos sugere. Muito no espírito Rocha de Sousiano.
Espero que este livro tenha o sucesso pretendido por si, meu bom tio-mestre. Julgo que uma boa distribuição e sub-sequente divulgação já seria uma nota positiva. A ver vamos...
Daqui, onde o clima é tão incerto como o futuro, abraçamo-lo com admiração, estima e saudade,
os-siameses-MiguelDani
Espero que tenha o sucesso que deseja. Pelo excerto de apresentação tudo leva a crer que sim.
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