Voltemos transitoriamente à pintura, aquela que se faz com matrizes digitais e se transforma, por diferentes meios directos e indirectos, em obra plástica mista sobre papel. As configurações podem não ter relevo estético muito apelativo e obrigar a leituras decifrantes, intermitentes, sem verdadeiro feed back. É um risco de todos os processos de comunicação pela imagem, mas é também uma conquista no campo expressivo, pluralmente liderada, segundo uma infinidade de projectos, de despojamentos, de apagamentos e recomeços. No meu entendimento, todo o ruído do experimentalismo ao longo do século XX, deixou marcas, sequelas, suicídios consumados. Nenhuma batalha se faz sem feridos ou mortos. Por este caminho demoradamente em catarse, os gritos e os silêncios haveriam de deixar impressivos efeitos sobre a evolução dos modos de formar ou os segredos dos grandes mestres da Renascença, para não citar outros, de outros tempos, de civilizações mais recuadas. A arte foi submetida, pela vontade sensível e pelos fenómenos do registo mecânico, a uma reflexão sobre a sua verdadeira natureza, possível autonomia, se estava ou não largamente infectada pelas indumentárias, riquezas de habitat, projecção de ornamentos, efabulações do ver e do delírio. Pelas conclusões das análises intensas e radicais, depressa se argumentaram os caminhos da simplificação, despojamento, limpeza do acessório. O princípio parecia legítimo. Mas não absoluto. E, com efeito, mal se chegou ao minimalismo da linha solitária sobre a tela ou do corte desesperado, num só golpe, ao centro da própria tela, acto liminar de Fontana, logo a moda subverteu o modo. Mas o homem não é simples, nem por fora nem por dentro.
quarta-feira, dezembro 23, 2009
PINTURA ARRANCADA AOS LIXOS URBANOS
Voltemos transitoriamente à pintura, aquela que se faz com matrizes digitais e se transforma, por diferentes meios directos e indirectos, em obra plástica mista sobre papel. As configurações podem não ter relevo estético muito apelativo e obrigar a leituras decifrantes, intermitentes, sem verdadeiro feed back. É um risco de todos os processos de comunicação pela imagem, mas é também uma conquista no campo expressivo, pluralmente liderada, segundo uma infinidade de projectos, de despojamentos, de apagamentos e recomeços. No meu entendimento, todo o ruído do experimentalismo ao longo do século XX, deixou marcas, sequelas, suicídios consumados. Nenhuma batalha se faz sem feridos ou mortos. Por este caminho demoradamente em catarse, os gritos e os silêncios haveriam de deixar impressivos efeitos sobre a evolução dos modos de formar ou os segredos dos grandes mestres da Renascença, para não citar outros, de outros tempos, de civilizações mais recuadas. A arte foi submetida, pela vontade sensível e pelos fenómenos do registo mecânico, a uma reflexão sobre a sua verdadeira natureza, possível autonomia, se estava ou não largamente infectada pelas indumentárias, riquezas de habitat, projecção de ornamentos, efabulações do ver e do delírio. Pelas conclusões das análises intensas e radicais, depressa se argumentaram os caminhos da simplificação, despojamento, limpeza do acessório. O princípio parecia legítimo. Mas não absoluto. E, com efeito, mal se chegou ao minimalismo da linha solitária sobre a tela ou do corte desesperado, num só golpe, ao centro da própria tela, acto liminar de Fontana, logo a moda subverteu o modo. Mas o homem não é simples, nem por fora nem por dentro.
terça-feira, dezembro 15, 2009
TRANSPARÊNCIAS DE UM AMOR SEM NOME
Era ele, num dia sombrio mas sem chuva. Chegara pelas oito horas e ficara, como sempre, a descansar um pouco, dormitando sobre o volante do carro, já estacionado muito perto da oficina. Por volta das nove horas, quando era mais provável entrarem os primeiros mecânicos, dois deles estranharam a oficina ainda não estar aberta. Trocaram impressões sobre o facto, e um dos rapazes achou que o Frederico estava atrasado, nada mais, por isso deviam abrir a oficina e retomar a rotina. Um hora mais tarde, o Frederico não aparcera. De casa, para onde telefonaram, a mulher confirmou que o marido saira como habitualmente, cerca de vinte minutos antes das oito. Os homens entreolharam-se, foram até à porta, e poucos instantes depois descobriram o carro, quase à esquina, reparando que o Frederico estava aconchegado ao volante, como fazia habitualmente, para descansar um pouco antes de fazer a abertura. Foram lá, bateram no vidro, para acordar o patrão, mas ele continuou na mesma posição. Abanaram o carro, uma, duas, mais vezes e já atormentados. Nessa última tentativa, o corpo do senhor Frederico escorregou para a esquerda e eles viram e sentiram claramente como a cabeça do patrão e amigo tombara para a esquerda, batendo no vidro. Não estava a dormir. Foram buscar a chave de reserva e abriram a viatura, procurando agarrar logo o corpo do amigo, corpo lasso, rosto pálido e frio, corpo logo nas mãos dos homens e um grito para telefonarem para o 112. Estava morto e os meios de apoio à vida limitaram-se a confirmar esse facto e a guardarem o corpo numa lona apropriada. O que mais espantou a rapaziada e os vizinhos foi a decisão dos serviços de auxílio abandonarem o corpo ali, dizendo que não devia ser removido por ninguém antes da chegada do delegado de saúde. Por ali se conversou, lembranças comovidas de um homem ainda novo, honesto, trabalhador, que geria a oficina como uma cooperativa bem fraternal. Grande conheceor das mecânicas de vários tipos de carro, os seus diagnósticos eram infalíveis.
terça-feira, novembro 24, 2009
FEIRAS DE ARTE E BRINQUEDOS NÓMADOS
Ontem fiz referência a um texto de Hugo Canoilas sobre a exposição «Atravessando Fronteiras», dedicada aos anos setenta e promovida pelo Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. Hoje, ainda perante um outro texto do mesmo autor («Vem aí a Feira») passo para este espaço, acompanhado de imagens de vários feirantes que registei num grande evento no Algarve. Vou assim citar amplamente Hugo Canoilas, a bem de uma importante causa que envolve a arte actual portuguesa e a submete de forma tosca a mimetismos de olhos desvairados vindos da Alemanha ou de Espanha, visitantes de consumadas feiras de arte, a primeira das quais sucedeu em 1970, Colónia, vítima de grande contestação por artistas como Wostell ou Joseph Beuys. Segundo o articulista aqui evocado, aqueles e outros autores sentiam que a «feira» era um caso de «constrangimento criativo e de práticas de exclusão injustas». Tal sentimento parecia, diziam eles, «trazido por esta moda», apesar dessa espécie de bolsa das artes revelar a abertura de maior número de galerias na Alemanha. Apesar dos «poços de ar» verificados noutras circunstâncias, esta febre afinal mercantilista fez alargar imenso o número de galerias entre os anos 60 e os meados dos anos 70: apenas 400 espaços, grande variedade de produtos como é próprio de qualquer feira que se preze. Haverá nesta realidade um factor socializante em termos de distribuição, o que, na altura, se ligava a algumas propostas mais conservadoras e, naturalmente, a um grande aumento dos valores de mercado. Hugo Canoilas acentua, a propósito da natureza de certas tipologias de algumas vertentes artísticas, o curioso facto de autores como Blinky Palermo e Gerhard Richter «serem absolutamente pró mercado em reacção às práticas conceptuais vigentes (quando a arte conceptual era no início não mercantilizável)». Vivia-se entretanto a ideia envolvente (que alguém espreitava da margem da história) de que estes eventos talvez permitissem manusear trabalhos, negociar com com artistas e marchands, tendo em conta igualmente a conhecida sensibilidade dos clientes e o seu modo de comprar. Agitando produtos e lugares, ainda se pensou que a feira poderia alcançar um importante significado para os homens do ofício (artistas e vendedores a retalho). Perante a actual Feira de Lisboa, Hugo pergunta-se com pertinência: Será que, em Portugal, ainda não se aperceberam que este modelo de feira é um «nado morto»? É, com efeito, problemático este alinhamento (pobre) por exemplos exteriores que já mudaram de figurino, apelando à inscrição da cultura e contra a menoridade dos objectos. Se as galerias investem muito dinheiro na apresentação da feira, o certo é que o nível da visibilidade alcançada não escapa ao ruído envolvente, aos equívocos de bem parecer, à cedência ao público arreigado e aos imperativos dos habituais ou duros coleccionadores. De resto, procurando estratégias «adequadas» para este tipo de acontecimento, ao certo quase nada interdisciplinar, os galeristas ensombram a desejada «celebração da arte contemporânea», o que deveria convocar ambientes festivos, o gosto pelo debate sobre o papel da arte no mundo de hoje, inclusivé envolvendo todos os agentes (artistas, galeristas, coleccionadores e público) numa frutuosa troca de ideias, entre saudáveis polémicas e possíveis consensos. Com leituras também, a relação do livro, da sua linguagem perante outras de suportes e factores integrantes diferentes. E como o verdadeiro cinema faz falta nestes casos, mesmo que para tanto as barracas tivessem que fechar os varandins, deixando ao relento os dados físicos de algum marketing..Hugo Canoilas diz ter verificado que a feira de Amsterdão, ao comemorar os seus 25 anos, solicitou a todas as galerias a apresentação de exposições individuais, facto que aconteceu e conferiu um novo interesse às acções correntes. «Foi de facto - diz ele - uma das melhores feiras que vi»; em experiências assim ganha a vontade de participar e os termos de legibilidade. Há outros exemplos de outras soluções, como em Viena e o convite a autores de Leste cuja produção, espectro de dados inovadores, grangeou um entusiástico interesse do público. Viena vai mais longe, convida curadores de prestígio, uma classe que parece seguir o antigo caminho da crítica - o de se substituir aos próprios artistas, gerindo mediatizações e deploráveis ostracismos. Um dia, estou certo disso, este poder institucional, protegido nas respectivas instâncias, terá de ser melhor enquadrado e trabalhar com outro espírito. A arte, esquiva a dogmas e decisões absolutistas, ela sim, ela é que faz a sua verdadeira história.
Cito de novo, ao correr das palavras, um trecho de Hugo Canoilas (e ele que me perdoe trazer para aqui vários inserts da minha visão deste assunto, melhor: deste tema por debater: «Existe também um divórcio entre as instituições portuguesas e a feira. O que torna tudo mais amador e de menor qualidade.» As galerias e aquelas entidades acolhem entre si as incertezas e a responsabilidade pela débil proliferação da arte portuguesa na sociedade. «Não se compram espaços nas revistas, patrocinando mas também divulgando actividades e transformações neste domínio. Não existe aliás qualquer tipo de estratégia para colocar definitivamente os termos Arte Conteporânea na própria língua portuguesa, como tem acontecido com o Design e a Moda. A arte praticamente não chega à televisão; ou, quando chega, aparece mediada. Chega sempre em segunda mão.» A verdade, digo eu, é que a lógica mercantil das televisões atingiu proporções verdadeiramente absurdas, acentuadas, aliás, pela manipulação do público através de formas de espectáculo indescritíveis, todos os canais vestidos de igual à mesma hora. De quando em quando, anos talvez, lá vem uma espécie de «curador» curar de um artista já assado e condimentado. Excepções só no erudito «Câmara Clara» (bem longo) e no «debate» futebolístico (bem mais longo). Há quem diga que é melhor assim, pois uma acção em terreno movediço sai fora dos padrões de audiêncicai e vai cair nos mesmos, sem risco nem contraditório. E no entanto era perfeitamente exeqível (competitivo, como dizem) um programa sobre várias artes, cada bloco de 50 minutos proposto por um agente cultural de interesse reconhecido por uma comissão prévia. Augusto França pode seguir-se a Leonel Moura, Paula Rego tratada por Rui Mário Gonçalves, Nuno Portas dissecando a obra em geral de Siza Vieira. Nada disto tinha de ser curado por curadores. Temos muita gente bem apetrechada para dirigir e orientar projectos assim. Vai sendo tempo de pensar a alma do país e a moodernidade que nele se gerou para além das chamadas «imagens convenientes». Os artistas que ganham o primeiro galão (mesmo só como alferes) tendem a ligar-se a diferentes tutores, tribos, lobbies, garantindo a sua colher de sucesso nacional e internacional. As encomendas que venham, eles não as procuram. Por isso abominam associar-se, criar organismos representativos deles: isso dá trabalho e obriga a compromissos rapidamente queimáveis pela inveja latente no burgo. Talvez por isso é que eu fui obrigado a ouvir o membro de um governo provisório, quando se instituía a Faculdade de Belas Artes da U.L., que a nossa pretensão era fútil e sem fundamento: «o país não precisa de artistas», disse o homem, um pé institucional sobre a onteria do 25 de Abril.
Na feira que visitei, colocando-a ao lado de de Lisboa, os brinquedos de madeira fecham uma sala. E não posso deixar de me lembrar que um artista português usou, nos anos 70, este brinquedo do pássaro com rodas e cabo em grande quantidade de uma amável e repousante instalação.
os velhos brinquedos de uma geração ainda não perdida
terça-feira, novembro 10, 2009
TRANSPARÊNCIA E UM RELÓGIO DE HORAS
Água verde mas límpida.
Translúcido espelho amarrado
ao muro de pedra já ferida.
Velho espelho em casa da avó,
tão velho como o relógio centenário
preso à parede, rachado e só,
sempre a bater as horas
sobre um obtuso relicário
no qual se eflectia
o arrastado ranger da corda,
essa espécie de coração
cujo rumor de concavidade
se faz sentir no quarto exíguo
pelo frio de pedra
ou pelo circular rigor do tempo
sábado, outubro 31, 2009
PRESENÇA E APARÊNCIA NA FORMA DO VISÍVEL
pintura | técnica híbrida | rocha de sousa
terça-feira, outubro 27, 2009
A DEVASTAÇÃO DO IMOBILIÁRIO QUALIFICADO
Em cima, a desertificação começou pelo uso que o filho mais velho da família destroçada foi dando aos quartos, sala e saletas, um quintal que nunca vi, com ramagens de aguarela. O ataque continuava, nenhuma classificação fora conseguida, ou critério de bem público (que o era) e muito menos quando a avó das águas furtadas morreu, dias no quarto, depois um funeral esquisito, acompanhado por gente jovem, mal vestida, duas moças magras, crianças recentes, de olhares já indiferentes e breves.
Tudo pronto: os homens dos papéis e da ganância lá conseguiram a licença de demolição. Nem uma meia dúzia de azulejos, para amostra, sobrou da insanidade vandalizante. Deitar abaixo é uma coisa. Arrasar a arte e a nobreza dos adereços é outra. Ninguém veio ao funeral da amável moradia que conheci durante quarenta anos. Vim eu, olhando da minha própria janela.
As duas imagens seguintes, muito belas à sua maneira, corresponem ao fundo da casa, já esburacado até às traseiras da garagem da outra rua. Oiço as miúdas de antigamente e lembro-me do senhor de cabelos brancos e olhos claros mas avermelhados. A menina mais nova, magríssima, a comer um gelado. E o gato. E aquela moça angular, de camisola sem mangas, que aparecia na janelinha direita, assente no telhado. Costumava passar discos dos Ping Floy e cuidava de um cato arrumado no canto do pequeno varandim.
Nunca mais recebi sinais dali, da menina e do rapaz, da mãe dele que acabara por casar com um engenheiro civil, longe daqui. Mas quem sabe da folha de serviços do engenheiro?
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segunda-feira, outubro 12, 2009
ORFANDADES E SOLIDÕES, O DESERTO
terça-feira, setembro 29, 2009
METAMORFOSES DE UM VELHO MURO LATERAL
É outra escrita, mas igualmente uma escrita indecifrável.
quarta-feira, setembro 23, 2009
MEMÓRIA REVIVIDA DE UM TANGO PERDIDO
A esquina, o canto, o ângulo recto de um chão enviesado, o vermelho e o negro, como em Stendhal, talvez a pena de ferro fino crispada sobre o papel poroso, todo o ruído num só fio rasurado - e a dança procurada dos dedos invisíveis, apenas o aparo em jeito de lança antiga, preto, branco e vermelho, memória revivida de um tango perdido, aqui encoberto pelos fragmentos minimalistas das suas cores emblemáticas, românticas, a prumo ou na horizontal, a escrita cursiva, itálica, bordando aluns limites escuros, lisos ou texturados, e ainda os panos dos teatrinhos de zarzuela, flamengo em Granada, as praças de Buenos Aires, desertas sob a bota militar, gente desaparecida, assassinada, corpos cinzentos atirados para as valas comuns que só há pouco as mães dilaceradas desobriram, impossibilitadas de encontrar nas fardas e nos ossos, o rosto forte dos seus filhos. Praças amplas como as de Chirico, atravessadas por sombras negras, oblíquas, ameaça visual que uma menina, inocente, não conhece, fazendo rolar o arco sob os contrastes da luz branca, solar, e a sombra côncava debaixo das arcadas, como acontece na Lua que já sabemos como é, nem plácida nem escura: os poetas cantavam-na, em tabernas e espaços nocturnos, ouvindo os sapatos das mulheres, vendo as blusas vermelhas, os seus folhos negros, uma coxa avançando, branca, e logo se escondendo, enquanto as botas dos homens, pretas e luzidias, traçavam o espaço e batiam no chão, num rodopio do sonho e do desejo, e em tudo isso afinal, uma geometria secreta como a que se expõe e se oculta nestes planos negros, nestas faixas vermelhas, no brilho branco das camisas, equilíbrio ternário que submete o nosso olhar à vertigem das curvas, à doce violência de um enlace pela dinâmica, corpos em contra-luz, negro partilhado com o vermelho, branco com o apagamento do gesto petrificado. Também nestas telas o mundo se petrifica e as diagonais sugerem a ordem pelo absoluto, são igualmente absurdas na inutilidade do seu espectáculo mínimo, só elas fingindo uma rasura textural em certas arestas, espaço do silêncio entretanto, a completa imobilidade, o completo esquecimento das grandes bandeiras totalitárias.
Se Chirico ressuscitasse e viessa visitar estes espaços, na dureza de quase nada, haveria de desenhar uma menina que ele criou e ali costumava passar, o aro de metal barulhando devagar no empedrado de outrora.
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texto de Rocha de Sousa, partilhado com duas pinturas de Miguel Baganha na exposição em Setembro, galeria Prova de Artista, e uma sessão de Tango, 2009
quinta-feira, setembro 10, 2009
UMA VIDA ESCASSA PARA TANTA MELANCOLIA
Já não tenho fotografias tuas na velha casa do sul, a não ser esta em que pareces muito novo. Era o teu rosto na altura em que casaste com a mãe. Sempre me disseram isso, desde os meus primeiros passos pela escola. Que fizeram das tuas fotografias, aquelas de corpo inteiro, com uma bengalinha a fingir e polainas de camurça nos sapatos envernizados? Não vi nada dessa época, ao vivo, só achei para meu consolo as fotografias de família, belíssimas, aquela rapariga ao mesmo tempo singela e notável, meias de lã, sapatos de fivela lateral, um vestido muito fino, de cintura descaída, em cores esplendorosamente diluídas. E tu, mais tarde, com ela já mudada para senhora, um inverno cinzento por cima das cabeças, um chapéu de fita em ti, uma gola de pele nos ombros dela. Havia, cobrindo as vossas silhuetas, uma ligeiríssima velatura sépia, jeito do fotógrafo assaz famoso ou sinal da passagem do tempo que tem essa propriedade mágica e branda de queimar os ingredientes da representação assim.
Muitos anos depois, lembras-te?, a tua fabriqueta de rolhas ficou a viver das sobras, entre farmácias leais que produziam alguns remédios e a protecção daquele homem silencioso, trabalhador sem mácula, que se chamava Juiz, José Juiz, e tinha de facto uma surpreendente noção dos valores da amizade, da partilha, da beleza dos caminhos campestres, embora não soubesse ler nem escrever. Foi uma época triste mas votada à esperança pela poética lírica dos teus versos. Era, na humilhação da perda, a possível sobrevivência do espírito, os passos pisando veredas junto ao rio, papéis escritos e guardados na albibeira do casaco, um chapéu mais moderno e mais feio na cabeça, com a tal fita no tom próprio apesar de indevidamente baça, cinzenta como os altos muros das velhas fábricas corticeiras, mortas pelo fogo que a crise financeira espalhava pelo país, sombra, aliás, da política e exportação da cortiça em prancha, portanto sem a manufactura portuguesa, ao acaso de quem herdara milhares de sobreiros, assim enriquecendo mais depressa, delfins prosaicos, caçadores arrogante a fingir nobreza genealógica.
Agora posso ver-te daqui, através da derradeira imagem, sentado nos muros baixos a montante da lagoa que o rio nos emprestava em certas épocas do ano para um repouso tardio, as lágrimas dos chorões quase tocando o espelho móvel da maré baixa. O sol batia no teu rosto, enchendo-o de luz, olhavas em frente, na direcção da foz ou daquele horizonte que recebia a queda do balão redondo e luminoso, alaranjado, ao ritmo da temperatura lenta do começo e do fim de cada Verão. Toda a paisagem vista nessa atitude contemplativa, descomplicada como a voz de um poeta guardador de rebanhos, Alberto Caeiro, ou como a de um outro artista de ninguém que dizia sentir a sua alma voando de mundo em mundo e o coração preso à terra, bem lá no fundo.
José Juiz tinha um cão que o acompanhava pela cidade. O homem levava as encomendas ao correio e o cão deslocava-se a seu lado, numa agitação das pernas em frente, para acompanhar a grandeza plácida do seu senhor, passos maiores. E num desses dias, já imprevistos, José Juiz, grave, aproximou-se de mim, tratou-me por menino, como sempre, e disse apenas: «menino, olhe bem para o seu pai».
Foi só desta maneira, nada antes, nem com os sonhos premonitórios da mãe. Não me fora apresentada uma sentença, parecia um aviso apropriado, e logo a cabeça do José a baixar, a mão acenando pendida, o corpo a enfiar-se na viela a que chamavam rua Nova. Então olhei para ti, pai. De manhã cedo, estavas a sair da casa de banho, com uma toalha em volta do pescoço, e disseste «olá, tão cedo» e eu percebi o teu sorriso, esbocei um «bom dia,pai», enquanto tu fixavas os olhos nos meus, boca entreaberta de haver falado, boca tão pouco enviesada mas enviesada no canto esquerdo, expressão de súbito tímida, de desconforto ou pudor -- «menino, olhe bem para o seu pai». Foi o dia em que soube que ias morrer.
quarta-feira, agosto 26, 2009
HORA DE SOMBRAS OU MADRUGADA DE MORTE
Olha, olha, então eu não vi?
Nada de nada, nunca. Vai perguntar à Vergina. Até se mijavam, agarrados
uns aos outros, mesmo junto ao café do Almerindo.
Quando amanheceu, devagar, ninguém arredava pé.
Espreitavam os que podiam e cortavam a garganta de tanto gritar.
Deus? Deus estava a dormir, nunca dá por nada. Nada de nada
MARIANNE E O DRAMA DO PINTOR FRENHOFER
Fico a olhar para ela e não sei o que dizer. Não sei quem devo procurar, Marianne já se afundou na história da vida e dos filmes em que participou. E Odette era absolutamente igual à rapariga que nos servia de modelo nas aulas das Belas Artes, comendo a sua maçã ao intervalo e lendo, rosto sereno, um livro de Éluard. A minha também vai chegar, com a sua carga de memórias e os seus sucessivos apagamentos, apesar destes belos fantasmas e das imagens retiradas das gavetas e pouco depois retornadas a essa sombra apagante.
domingo, agosto 23, 2009
A BELA IMPERTINENTE E A DOR DE FRENHOFER
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Excerto do livro, a sair em 2010, obra de ninguém, de Rocha de Sousa
quarta-feira, agosto 19, 2009
SÍSIFO, A PEDRA OU A CONDIÇÃO HUMANA
O homem sempre se dedicou, tanto para se guardar como para se condenar, à idealização dos seus deuses e heróis. A mitologia, num sentido lato, pairou longamente sobre as civilizações de eras distantes. Conhecemos todos esses casos e as suas ressonâncias simbólicas, uma teologia obscura. Herói mítico, deus à sua medida, Sísifo, que Camus interpretou de forma soberba, tornou-se conhecido por aquele trabalho a que fora condenado, rotineiro e dilacerante. Tratava-se de um castigo para lhe mostrar que os mortais não têm a liberdade dos deuses. Os mortais têm a liberdade da escolha. Essa é uma das suas superiores afirmações, integrando ideologias e a esperança. Mas o mundo que gerou o castigo de Sísifo concebia que a escolha obrigava à concentração nos afazeres da vida quotidiana, vida só assim vivida em plenitude, tornando-se criativa na repetição e na própria monotonia.
Esta questão é essencial. Curiosamente, Sísifo morreu de velhice e foi considerado um grande rebelde, juntamente com Prometeu. O trajecto dos homens, sendo estruturalmente idêntico ao de Sísifo, desviou-se muito cedo daquela relação entre liberdade e escolha. A escolha implica uma responsabilidade decisiva, ligada aos efeitos sobre os outros e o mundo. Inclui o devastador direito de renúncia. O homem quer sempre ulgtrapassar os seus limites, abrir-se a mais território, por exemplo, num fio indeterminado de novas apropriações. Constrói e destrói, como na parábola da pedra. Mas procura contornar tal condenação e descobrir maiores benefícios para além da rotina, crescendo, amontoando informação, virando as quantidades de tudo e dos próprios benefícios contra si. A abastança em desequilíbrio contraria a simetria doUniverso e pode provocar a implosão ou o caos absoluto.
Já não vemos nem representamos o que vemos. Com razão à partida, porque ver não é contemplar: é sair ao encontro das coisas, é recriar a dinâmica do transpoite da pedra, esboçando atalhos. Mas de nada serve erguer e multiplicar aleatoriamente mais montanhas, juntas, sobrepostas, cada vez maiores. A arte não nos pede o excesso incomportável nem o deserto de todo e qualquer sentido. A grande dependência das construções em vias de implosão pode ultrapassar a crise da Natureza, em parte gerada pelo homem, mas redes sistémicas de uma civilização baseada no dinheiro e no crescimento sem retorno, também podem pulverizar-se com a renúncia de Sísifo. Nem todos pensam em falência na repetição sisifiana: mas a verdade é que ele não tem o poder dos deuses e um dia o mundo acabará encurralado como os conformados habitantes da Ilha da Páscoa, outrora.
Não foi por acaso, a seu tempo, que Albert Camus começou o livro «O Mito de Sísifo» com esta frase: «Só há um único problema filosófico: é o suicídio».
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Extracto do livro de Rocha de Sousa «Obra de Ninguém»
quinta-feira, agosto 06, 2009
CEMITÉRIO E MORGUE DOS NAVIOS MORTOS
Vieram os homens, os que trabalham na apanha de bivalves entre fedores inconsequentes e os que pertencem à desmontagem dos ferros, como quem derruba árvores para exportar madeira. Máquinas vivas avançam por meio de lagartas de aço, elevam guindastes com garras suspensas da ponta. E há vozes de comando. Vozes longe e perto. Martelos batendo carcaças já rasgadas e semi-desfeitas, corcovas de ferro oxidado, e a grua roda, deixa pender um grande disco com garras abertas, roda, roda, pára, espera, e de súbito deixa cair as mandíbulos sobre um monte de sucata de belo efeito. O ruído dos dentes a fechar-se e dos ferros semelhantas a latas de brincar, mais e mais, vai firmar-se num uivo de sucção, o disco subindo e levando consigo várias toneladas e metais meio configurados que já desempenharam funções leves e pesadas numa grande unidade de carga ou eventual petroleiro. Espalhados pelo cemitário, já ninguém lhes recohece nome, matrícula, origem, décadas de história. As serras operam entretanto de alto a baixo, cortando fatias e fatias de muros espessos, agora rangentes e porventura, de longe, semelhantes a latas que qualquer tesoura rasgaria quase em silêncio. Senhores, vejam isto uma vez na vida, vale bem qualquer doca de Nova Iorque. É um cemitério lindo, uma instalação interestelar, os restos de grandes naves que tombaram sobre a terra, talvez anunciando vida semelhante à nossa em pontos invisíveis a cerca de dois milhões de anos luz.
terça-feira, julho 28, 2009
ENTRE GUERREIROS E POMBAS, APENAS SONHOS
Mas isso eu sei ver e até gosto. A velhota diz que não há morcegos brancos, só pombas dos castelos. E também já não é tempo de guerreiros, as terras estão conquistadas e afeitas, nem a família do Artur atravessa uma serra para espavorir o sono entaremelado de moços como eu. Mas posso estar a fazer o mundo outra fez, em sonhos. Não me dizem que o mar é assim como uma parede azulada, ao longe, sem fim? Daí pode aparecer um sonho, barcos desses que andavam pelo rio, carregando coisas. Agora, escangalhado, não há cabras, nem ovelhas, só duas galinhas e um galo emprestado. Mas como é que posso mudar o sonho só com a lembrança destas poucas coisas? O sonho somos nós. Tudo o que vejo nos sonhos é mais meu do que as histórias de lobos, medos, passos nas casas, essas coisas todas que o senhor Artur conta, escarninho e sempre a beber, babado.