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sábado, agosto 14, 2010

BICHOS, GENTE E A VOZ DO POETA PASTOR

foto de rocha de sousa
Sinto a boca seca de tanto gritar
no imenso vazio das palavras todas.
Por cada silêncio devagar
presumo que escuto o murmúrio das larvas
ou talvez o rilhar incerto das cabras,
essa maquinal mastigação do pasto já duro e pobre.

Sou pastor, penso então, desde o amanhecer.
Ou talvez a partir de ontem, na terra, sem nada de mim,
durante a hora pesada e lenta e nobre do entardecer.

Agora, descortinando o lado donde vim,
sobressaltado com a paz estafada a meus pés,
olho para o lado inverso, de pedra, para ver onde calha o fim.
O sul, outrora brando, era devorado por chamas altíssimas.
Balindo, pateando, tão gente como a gente que foge,
as cabras correm na sinuosa tontura do medo aquém
e eu grito de novo, quase rouco, aos bichos e a essa gente além.
Desdigo o caminho para o lugar da morte
e aponto um outro lugar, provável salvação da vida,
muralha ou ladeira de todas as veredas,
a norte,
saída mítica para gente como eu, folhas de vento na ida,
palavras soltas, velhos e crianças, a travessia de um deserto
na fuga ao inferno empurrado do sul,
chamas no horizonte aberto
onde se calou a sorte
e nos aponta a norte, contrário à lenda, largos céus de azul
impensavelmente penetráveis pelas chamas e pelo fumo
ainda longe atrás dos nossos passos,
nuvens aqui e além, descompassadas.
Julgava ser escritor, campos e serras para sustentar alguém,
afinal eu mudado em pastor de cabras e desta gente desacontecida,
pastor de acaso, pensante, partindo da coisa lida
porventura em nome do desatino feito destino.
Destinado serei eu quando julgo ser de uma regra só?
Não assim: porque o destino não acontece, inventa-se.

3 comentários:

Miguel Baganha disse...

Por entre bichos e gente, a voz do poeta-pastor (nunca de acaso) narra a história da vida: sinuosa, incerta, e às vezes cruel.

Cruel também seria
A privação duma escolha,
O Livre arbítrio, a poesia,
A escrita do Rocha de Sousa
Degustada folha a folha.

Magnífica oração. Quase um requiem, não aos mortos, mas à vida.

Um abraço, João!

Miguel Baganha disse...

Por entre bichos e gente, a voz do poeta-pastor (nunca de acaso) narra a história da vida: sinuosa, incerta, e às vezes cruel.

Cruel também seria
A privação duma escolha,
O Livre arbítrio, a poesia,
A escrita do Rocha de Sousa
Degustada folha a folha.

Magnífica oração. Quase um requiem, não aos mortos, mas à vida.

Um abraço, João!

jawaa disse...

Este poeta-pastor abraçado aos bichos, à terra que arde por essas serras além, comove-me pela solidariedade nas horas tardias e belas do Poente.
É o escritor completando-se na poesia dum destino que se inventa em cada dia.
É o poder do homem que se prolonga depois do entardecer, pela noite pontilhada de estrelas.

Um abraço