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quarta-feira, dezembro 28, 2011

CORPOS DESCONHECIDOS DENTRO DA PAISAGEM

pintura digital sobre papel | Rocha de Sousa

Não há diabo que chegue às paredes de pedra desta paisagem nem mestres do espaço que saibam como chegar bem perto dos montes, estes corpos sem nome. Então como se olha para uma pintura assim e se desenrola as suas aparências na complexidade do ver? Muitas vezes, no sonho da consciência, o apropriação de cada olhar tende a não desaparecer da mobilidade envolvente, tende a fixar-se na percepção visual, coisificando ou corporizando a imagem vista. É por isso que obras como esta, pintadas ao computador, e parecendo integralmente peças de cavalete, sobre tela, nos convocam para estranhas viagens no subconsciente, puxando fios e trajectos estranhos, atravessando duas dimensões para o domínio da perspectiva, para a distância impossível que desafia os nossos passos, o tempo, a distância sem marcas, apesar das duas partes que nos avisam de um céu terroso, com nuvens de pedra, e montes em baixo, talvez menhires, talvez afinal um sopro de certa gente de outrora, modelações empíricas como na Ilha da Páscoa ou aproximações megalíticas, de grande escala, aos deuses obscuros que povoavam um céu rastejante e pousavam por ali, devagar, ao jeito dos gigantescos mamíferos alados do tempo em que o homem ainda rastejava numa procura incerta da sobrevivência. Um dia chegou a dominar o território, esta estranha simulação de montanhas, expressão ou arte de alguém anterior ao próprio tempo após o primeiro glaciar, chuvas diluvianas a modelar rochas e lamas, lodos e lagos com margens curvas, máquinas de ninguém atravessando o céu por cima da rocha enfim modelada, musgos surgindo, a brisa e a luz dourada, depois a sombra e uma noite meio castanha, blocos rolando e tombando como velhos balões rasgados e cada vez mais amolecidos antes de atingirem o chão com um fragor explosivo, factos de outras visitas os planetas no acaso de trajectórias impensáveis. Esperem, monstros amigos, pelas máquinas: faltam milhões de anos para elas atravessarem as montanhas com túneis rangentes. Esse será o tempo cego das civilizações, ou aquelas que moviam pedras de 14 toneladas pelo encantamento de um simples dedo, erguendo pirâmides avassaladoras, ou as que se faziam entre guerras imensas, que tudo devastavam em largos espaços onde a vida acabaria convertida à grave pausa dos mais remotos insectos.

domingo, outubro 23, 2011

UMA EUROPA SEM GUERNICA NEM SENTIMENTO


nem Guernica nem sentimento | Rocha de Sousa

Não, de facto este desenho não se inspirou na Guernica, de Picasso, mas também não foi pensado num total esquecimento dela. A povoação que ajudou a gerar aquela famosa pintura sofreu um ataque brutal, em formação geométrica, pela força aérea da Alemanha de então, a Lufthansa, tendo ficado arrasada. Uma tal tragédia ocorreu sob o signo do treino e da geometria da quadrícula. Nada restou. Ou melhor: restou a memória da vida anterior e do próprio silêncio de gemidos ao fim do bombardeamento, os destroços, os rostos devastados. Seja como for, e depois da guerra que Hitler perdeu às mãos dos Aliados, num farrapo de doença e teimosia, porventura suicidando-se, a Alemanha, ajudada pelos próprios recém-inimigos, lambeu metodicamente as suas feridas e logrou reconstruir o seu corpo e organizar o seu território. A despeito do muro, o Muro de Berlim, que a União Soviética, descontente com a brandura e o poder do Ocidente, ergueu naquela cidade, atravessando-a com a mais simbólica das fronteiras, a fronteira intransponível, dois blocos gigantescos e adversos. Assim fraccionada, Berlim ofuscou as mentes do desenvolvimento e do consumo, a Ocidente, e tornou-se escassa e dominada a Oriente era aí chamada República Democrática Alemã, ironia das palavras, metamorfose dos conceitos, talvez dos princípios, determinação dos russos. E assim o mundo foi vivendo, de um lado e do outro, num medo paranoico à medida que ambos os blocos se municiavam de bombas atómicas e mísseis intercontinentais. Ninguém, afinal, era capaz de minimizar Hiroshima e Nagasaki.
O século XX foi a época em que tudo isso aconteceu e em que os países se organizaram como democracias, sob o chapéu capitalista e a social-democracia, vivendo, em todo o caso, risonhas esperanças de futuro: assim, uma reconstruída Alemanha acabou por absorver a RDA, integrando-a e reunificando-se. Aconteceu depois a queda do Muro de Berlim (durante a Perestroika) e a Alemanha intensificou decisivamente a sua influência a todo o espaço do continente.
As crises do crescimento, embora encobertas ou disfarçadas, foram absorvendo a melodia doce daquela Primavera que até a Portugal chegou. Acabara a guerra colonial e o triunfo do 25 de Abril de 74 abriu o país ao manejamento dos Estados Unidos da América e da própria Europa, sobretudo quando se criou a ideia da união nesse último espaço, outrora tão torturado, império falhado no projecto de Hitler, e se instituíu outra força, uma força monetária, a moeda euro, extensível progressivamente a toda a Europa. Os grandes organismos institucionais, Parlamento Europeu, Comissão, entre outros, tudo foi posto a funcionar com um febril pragmatismo de medidas e reorganização das próprias configurações produtivas dos países aderentes. Portugal empolgou-se e lá foi arrecadar os euros dos subsídios compensatórios, tendo, nessa mesma linha, perdido sectores tradicionais e tão importantes como parte das pescas, quase toda a agricultura, muita indústria que afinal nos completava em definição.
Não está de boa saúde, esta Europa a que pertencemos, com euro e tudo. Apesar das boas esperanças de Jacques Delors, o prosseguimento do novo, grande poder, alinhado pela globalização, suas virtudes e seus defeitos, não se consolidou no século XXI com a devida consistência, solidariedade e plural sentido de coesão. Uma crise financeira internacional, com génese numa derrocada no interior do capitalismo americano, encheu o tal mundo global de vários tsunamis. Os países que se tinham endividado na base de confiança que a a União Europeia parecia suscitar, bem depressa se viram cercados por avisos à navegação e medidas ou ameaças de derrocada. Portugal ensandeceu. No meio do oceano agitado, e com a queda de países como a Irlanda e a Grécia, Potugal, já ensandecido, continuou a viver na ilusão libertária do país das maravilhas, enchendo-se de casas, iates, carros de alta cilindrada, autoestradas em detrimento da via férrea, camiões Tir fumegando como lagartas de sul a norte, ao largo do mar salgado que nos defendera de tanta escassez e menoridade territorial. Os partidos políticos ainda não passaram da fase de aprendizagem da democracia e enchem o parlamento de gritaria e diversos tipos de insulto: estar na oposição é estar cegamente contra, estar no poder é ter cegamente razão. Tendo pedido a ajuda do FMI, uma, duas, três vezes, o país acabou agrilhoado à mais feroz das austeridades, método (dizem os entendidos) que permitirá equilibrar as finanças e relançar a economia. A Grécia, em pior situação, encheu-se de conflitualidades de rua, e os grandes da Europa (Alemanha e França, cujas dívidas iniciais foram engolidas) desataram a descrever ameaças de expulsão do euro, embora alguma parte dos parlamentares de Bruxelas se inclinassem para medidas estruturais e de fundo, capazes de reverem em parte os tratados, redimensionando as dívidas soberanas, reforçando um fundo de ajuda e meios de recapitalização do enviesado sistema bancário. Isto estava ontem na forja, depois de um namoro tempestuoso de Sarkozy e Angela Merkel, sempre feito de reuniões a dois e decisões de fundo, absurdas, sem consulta nem do Parlamento Europeu nem da Comissão. Merkel passeia em todos os cenários dessa Utopia enquanto Delors sorri com amargura. Portugal, primeiro tratado como lixo periférico, ganhou alguns pontos com a execução do Orçamento de Estado, com a resposta ao Memorando da Troika (FMI), recbendo alguns elogios. Elogios que o vento leva depressa. Elogios que soçobram ao azedume de Merkel que insiste em cacarejar pela necessidade imperiosa de punir todos os que prevariquem na dívida e na escassa resposta aos problemas entretanto criados. A Alemanha, que beneficiou de fundos internacionais para renascer da derrota na Última Grande Guerra, parece estar longe de ter uma visão abrangente e dinâmica da Europa, atropelando muita gente com a resistência que a França e outros copiam. Se a reunião dos G-20, na próxima quarta feira, não tiver proveitos determinantes, o euro entra na sombra e os tais países periféricos têm a miséria pela frente. Mas os males podem ser maiores e a agressividade dos desprotegidos, afundados pelos novos impérios, lentos impérios, pode acentuar-se. Que a Alemanha não beba a cicuta dessa taça e aceite que as culturas convivam, que a história seja possível, que a dignidade seja reconhecida aos humildes. Acabaram as Vanitas. As imagens emergentes são outras, bem as vimos em Atenas, Roma, Madrid e em mil cidades, num só dia, por todo o mundo.


sábado, outubro 15, 2011

OBRA LITERÁRIA E PLÁSTICA DADA EM LIVRO


AS COISAS

E AS PALAVRAS

autores
rocha de sousa
maria João gamito


Voltemos a Sísifo. É difícil fechar os olhos e decidir morrer. A lâmpada da Guernica continua acesa no tecto do mundo. E entre as pedras todas, amontoadas, sem que algumas delas nos pertençam por destino, há sempre o fragmento paradoxal do recomeço, o detalhe e o apelo que conduzem à escolha. Um resto de memória. A simulação da permanência.
Sísifo seremos nós, à espera da palavra?

Há a encosta, a planície, breves dunas, e a praia deserta. Viajando entre a espuma esponjosa da maré e do declive das areias além, olha-se na perpendicular, na direcção das nossas próprias marcas, e o que vemos são coisas. Estão ali desde o início do mundo, sem deuses nem homens, à espera de um rosto, de um nome. Ou da imagem da imagem delas (coisa sobre coisa) para que a palavra lhes dê sentido e as faça destino recomeço substantivado, ficção pelas memórias, o visível e o dizível inventando-se como amanhãs possíveis.

Esta exposição começa com uma escolha «ao acaso» e o encontro pensante (mas consciente de Sísifo) de duas pessoas diferentes, cujo trabalho por vezes reúne e as obriga à «semelhança» das conclusões. É um facto trivial, quotidiano, sem mistério nenhum, mas dificilmente determinável na assinatura individualista dos objectos/projectos que os operadores da cultura nos propõem à meditação e à posse.
Perante coisas sem nome tudo o que parte da planície chega ao cume do continente para regressar ao anonimato põe-se o problema da nomeação feita e partilhada colectivamente. As coisas, enquanto aparência absurda, desafiam a paixão solitária: na invenção de riscos, de símbolos gráficos, de símbolos fonéticos, princípio estrutural de quem somos no centro de um mundo que obviamente nos excede.
De facto, ao artista não basta a descoberta solitária. Há sempre um dia em que ele se interroga com os outros homens: «Estas são as minhas palavras. Quais são as palavras dos outros?» A meio da encosta, entre dois recomeços, a solidão pensa-se assim em termos de solidariedade e a aventura de cada nomeação, embora mais difícil, torna-se mais fecunda. A urgência da fala passa pela soma do esforço em conjunto (hoje sobretudo): trata-se de saber o valor das individualidades na consonância possível das reflexões, a par dos individualismos trágicos que a História nos aponta (esplendorosamente) após cada recomeço na ficção do futuro.

Que importa quem escreveu as imagens e quem desenhou os textos? É preciso dar o exemplo da humildade no acto de partilhar as memórias como o corpo de ficção. Eis o que se tenta aqui, através de um esforço de conjunto provavelmente pouco experimentado num espaço social onde, à escassez do risco e da convivência serena, se contrapõem rótulos e vulgares equívocos. Quando se pensa em conjunto, moderando para uma área comum (de nitidez) o apetite individual por afirmações definitivas, chega-se sempre a uma escolha nova. E é então que se entende melhor como nenhuma escolha é de «acaso»; ou que as coisas nomeadas, partindo da descoberta de um único objecto, se multiplicam em ferro, madeira, calcário, desertos e barcos, casas e cidades outra vez o lugar das marés, retorno por fim assumido como acto poético e não como derrota de solidões indizíveis.
Portanto ninguém assinará esta introdução: nenum dos dois autores dos objectos todos, nem uma terceira pessoa avalista institucional de méritos alheios. Se a pedra volta, de novo e apenas, para o lugar das marés, é talvez legítimo concluir que as vozes deste discurso, após a conquista de uma consonância ou de uma ideia comum, também têm no oceano da vida lugares próprios, entre a individualidade inalienável e a tarefa universal de Sísifo.

a pedra, entre textos e imagens

1+1

A todo o comprimento da praia, entre brandos rumores de espuma e vozes devolvidas pela falésia, um olhar preso à areia é um longo «travelling» sobre coisas sem valor concreto de uso por isso intemporais, por isso invariavelmente disponíveis. A maré dilata-se e encobre tudo, falsos cristais, restos de vida oceânica. Barcos de madeira esperam, com olhos egípcios imóveis. E os petroleiros passam silenciosamente nas rotas do mundo, colando-se ao horizonte da distância.
Pela manhã, a praia cresceu como os corpos vivos mas deserta de tão cedo, apenas o rumor da espuma e agora a imobilidade monumental da falésia. De novo a descoberto, sob o olhar lateral que se move, milhares de coisas diversas: conchas brilhantes de súbito raríssimas, pedras roladas que lentas sedimentações marcaram com faixas argilosas, desenhos impossivelmente naturais que o nosso imaginário reinventa todos os dias, sombras também. Olhar suspenso, paralelo ao solo, pedras e pedras e pedras deslizando, intervalos sem medida, pequenos cristais entretanto. Passam cintilações de carcaças frágeis onde já existiu vida invertebrada, nervuras de plantas aquáticas, rios de sal correndo nas fracturas abertas entre milhões de outras pedras em miniatura.
Dentro do mundo há sempre a maqueta do mundo.
Na distância, petroleiros laterais e longínquos sempre.
E então a pedra outra, vulgar, nem redonda nem facetada, acidente natural no espaço de todas as singularidades. Contudo, quando a retiramos do côncavo de areia onde permaneceu, o que resta do seu próprio rasto é um vazio indecifravelmente desconfortante. Coisa sem nome, só pedra, sedimento milenário de um pó a que não sabemos atribuir a palavra última. Coisa, antes de tudo, ou talvez primeiro instrumento de uma reconstrução: coisa de remeter (apenas e de novo) para o lugar das marés.
_______________________________

Os textos publicados acima, e a fotografia e o desenho, constituem a abertura e o primeiro capítulo de um livro catálogo da exposição aqui referida. Há mais uma dezena de capítulos, sempre balanceados entre o texto e o desenho ou vice-versa, numa espécie de realismo gráfico que se reinventa na deriva da escrita. Ambos os autores reivindicam ambas as coisas. Muitos livros sobraram, leves, pequenos, graciosos e ponderados. Se alguém os quiser adquirir pode aceder a este blogue, solicitando, pelos meios usuais, a versão completa.

quinta-feira, outubro 06, 2011

ATRAVÉS DUM VER DIFUSO, A INVENÇÃO DO VER


fotografias de Rocha de Sousa

Não é a primeira fez que isto me acontece: um olhar súbito, difusa a sensação que resolve o ver, e logo uma coisa mudando para outra, sem que o espaço em volta se esclareça. De um lençol silencioso e branco, algo acontece no trajecto óptico até ao cérebro, difusamente, selecciona-me ruídos, manchas, um vago xadrez pendurado em contra-luz. Nada se passa depois disso: vejo as flores na varanda e os trabalhos no prédio do outro lado da rua, eternos. Então é tudo nítido, HD, mas os olhos parecem sensíveis a essa luz e acusam em ardor tal propriedade, as pálpebras ficam vermelhas no rebordo e as pestanas colam-se umas às outras. Não é um caso de cegueira, como alguns poderão pensar com o lençol branco e a branca cegueira do Saramago. É sobretudo a resposta ao excesso de real que me envolve, desde os velhos papéis que nunca mais conseguirei ler (porque são demais e amarelados) aos livros em pilha, depois de atravancarem a estante. Esse ciclorama de lombadas e de obras caídas, aparentemente mortas umas sobre as outras, eis a resposta da mobilidade visual, tarde na vida, quando os olhos são assaltados pelo excesso de experiências próximas, ruídos brandos e ruídos nenhuns, um sonho, uma vontade de entregar a face ao tecido branco, liso, silencioso e fresco. Talvez para dormir. Talvez para pensar melhor.

segunda-feira, setembro 12, 2011

AS SOMBRAS DEPOIS DE REVISITADA A CASA






















Cidade do sul, queimada pelos anos incandescentes, entra por aqui o vento inteiro, bandeiras esquecidas no tempo.











Janelas abertas para a rua,
tantos silêncios acesos na lembrança,
o vento devagar pela manhã pálida,
tristemente calados há muito os sinos das fábricas.





















Janelas abertas para a rua,
idade das flores e das casas,
ruínas de velhos quintais, cortiça ardida há quanto tempo...











Trabalh
a as agulhas e a lã,
malhas sobre malhas
ou evocação das antigas tecelagens em tear
Cidad
e das flores e da casa velha,
janelas abertas para a rua,
somas e somas de silêncios tantos.

Tudo para relembrar, ao contrário das horas,
os passos pensados em direcção à luz, a casa.











Tudo para relembrar ao contrário das horas.

Textos sem história, silêncio, penumbra.
Vidas a meio, devaneios, alegrias e filhos.











Gavetas cheias de coisas breves,
papéis rasgados, velhos casacos de malha,
belos artesanatos da vida em casa, serões, luares.











Silêncio.
As horas ao contrário, as agulhas e as lãs,
malhas sobre malhas.

Famílias inteiras fugindo para a distância
e o tempo visitando a casa toda
como se fosse pela primeira vez,
visita a visita,
ao contrário das horas

Fragmento, com evocação
de planos de
«A Casa Revisitada»
e recolha do texto da banda
sonora, que sublinha,
em murmúrio, por evocações
e falas de sopro, os sonhos
vividos ou construídos
na orla da consciência.



segunda-feira, agosto 29, 2011

NEM LONGE NEM PERTO, A ALMA DA GENTE


composição foto e colagem de Rocha de Sousa
Lusofonia, quer queiram quer não:
ela vem de longe e revê-se nos corpos de hoje


Li hoje, deslumbrado, um dos mais belos documentos sobre Portugal e o Brasil, sobre os desvios da História e as mitologias ou sarcasmos inúteis que tantos teceram acerca de viagens e gentes, face a face na distância dos continentes e dos sonhos ganhos ou perdidos. É um texto de Miguel Sousa Tavares, no Expresso, uma lição testemunhal perante os erros, equívocos, vários ritos antigos e modernos, a par de muitos esmagamentos da verdade intrínseca da história lusófona.

«...as relações Portugal-Brasil, nos últimos 150 anos, são um interminável jogo de ioiô, em que, quando um está em cima, e vice-versa, com ciclos de emigração, económica ou política, cruzados ao sabor da situação interna de cada um de nós. Dir-se-ia então que o desdém e a fútil superioridade com que aqui recebemos esses brasileiros que vieram ocupar os trabalhos que os portugueses já não queriam foi uma espécie de ajuste de contas tardio na forma como os brasileiros receberam os portugueses que para lá foram em massa desde o último quartel do século XIX até às primeiras décadas do século XX. Injustiça paga com injustiça: nós ficamos agora a dever aos brasileiros grande parte da construção das auto-estradas, hospitais, Expos, com que, imbecilmente, imaginamos ter conquistado para sempre a modernidade e o progresso; e, antes, eles ficaram a dever os ciclos do café e da borracha da Amazónia, o que não teria sido possível, por ausência de mão de obra, sem a impressionante emigração portuguesa que teve, como contrapartida, a ruína do interior de Portugal.» Miguel Sousa Tavares trata bem a história do padeiro, personagem que invadiu por completo o imaginário do brasileiro: emigrantes que desenvolveram a indústria da panificação e geriam as respectivas lojas e sobre os quais os brasileiros idealizavam seres de pé descalço, trepando pela riqueza acima e explorando o povo em épocas de crise. A ideia da perfeição do Brasil e de tanta mistura devem colidir com a realidade histórica e ontológica do mundo e dos seres: em boa verdade, a perfeição é impensável e o que importa é sabermos qual a nossa relação com os lugares a que pertencemos. Miguel considera-se inteiramente do Brasil e de Portugal, o que é uma boa medida para a sensatez que nos vai faltando. Ele diz-se muito irritado com «as críticas mútuas e redutoras com que tantos portugueses e brasileiros se entretêm, como se com tanta mistura de sangue e de sémen, tanta aventura e tanta desgraça em que andámos envolvidos, uns com os outros, os vícios e fraquezas de cada um nunca tivessem passado ao outro.» Não terão os brasileiros sido também portugueses e os portugueses também brasileiros, pelo menos até 1882?
Diz Miguel Sousa Tavares:«1808», de Laurentino Gomes, sobre a chegada da corte de D. João VI ao Brasil: um panfleto doentiamente antiportuguês, sem preocupação de enquadrar a história no seu contexto e onde só interessa o lado negro da aventura joanina. Parece, segundo o autor, que, com a estada da corte portuguesa, os "brasileiros" descobriram, estupefactos, a porcaria urbana, a corrupção, o compadrio e o desgoverno (tudo coisas que, como se sabe, foram extintas em todo o Brasil há muito). Ora todos sabemos que D. João VI era um atrasado mental e que D. Carlota Joaquina era uma ninfomaníaca sevilhana permanentemente ocupada em conspirar contra o próprio rei ou marido.» Havia disso em todas as cortes europeias, fruto, também de problemas de consanguinidade e pelas regras arbitrárias dos próprios sistemas monárquicos da época.
«D João VI foi bem melhor soberano no brasil do que foi em Portugal. Reformou a cidade do Rio de alto a baixo, abriu os portos brasileiros ao comércio internacional e instalou um verdadeiro Estado que levou daqui por inteiro onde antes apenas havia capitanias e mandantes locais. O seu grande erro foi não ter tido a visão de perceber que a capital do Império devia estar no Brasil e não em Portugal.

sexta-feira, agosto 26, 2011

EVENTUAL PARTÍCULA DO INVISÍVEL E DA MORTE



Imagens ao espelho, corpos, estou a olhar
um cadáver de cada vez, nus, frios e hirtos.
como vítimas estranhas jazendo no espaço frio da morgue
ou na cortante madrugada, sacudida de ventos finas areias.

Os espelhos multiplicam-se, os corpos também.

Todos eles, primeiro, foram expulsos do mar
pela maior vaga alguma vez vista naqueles dias.
Todos eles, depois, vomitam peixes,
morrendo sem forças, ao procurarem expulsar da boca
grandes porções de areia em papa e pequenas conchas prateadas.

Apesar de tudo, e da reanimação imaginária como possível,
estavam mortos os homens, como os peixes,
bocas abertas, areia até aos dentes;
os olhos fixos, os corpos já inchados,
entretanto patéticos, inúteis, sombrios, inquietantes.

Ninguém se arredou da tarefa dura de cavar aquelas bocas.
Ninguém se apercebeu das coisas vindas nas colheradas enviesadas.


Cobertos por mantas até ao queixo, aqueles homens,
permaneciam ocultados dos filhos, mal de ver,
e os próprios filhos talvez nem imaginassem os pais ali,
apenas feitos de bocas entaipadas por areia húmida.
Alguns filhos eram rapazes de estudos,
já só percebiam dias de férias, a baba de cada pai, o prato da açorda.

Olhavam, apesar disso, numa curiosidade mórbida mas de fascinação,
as bocas abertas e erguidas, quase tapadas de areia,
quase fingindo um grito em vias de soltar-se do fundo
e na hora terrível em que tudo estivesse limpo.

Mas quando as mulheres, já perto da garganta,
deixaram de esgaravatar tão malvada areia
e entornaram água para dentro das bocas rígidas,
os moços, ansiosos, quiseram levar aquela matéria, a baba das ondas,
além desses pequenos e subtis grãos das praias,
os quais isolavam em descoberta debaixo de uma grossa lente
e logo os perdiam de vista ao adestrado dos gestos.


A sua esperança residia no facto de haver ali, entre fios de algas
e os restos da massa, ligando areia e sufocação,
como breves sinais, porventura sempre a escapar-se,
sinais cuja natureza entretanto, e afinal, mantinha invisíveis
outras coisa que não fossem porventura, e apenas, partículas da morte.

fotografias de Rocha de Sousa com a participação encenada de Miguel Baganha

quinta-feira, agosto 18, 2011

PELA ESPUMA DOS DIAS OU O BANHO A BRINCAR


Sem vontade de nada, para nada, nado na banheira cheia.
Braços estendidos ao lado do corpo,
ondulando para cima e para baixo,
ora devagar, ora mais depressa,
flocos de espuma com a lógica da sua leveza
a descer, lentas, como pedaços de nuvens rendadas,

Agora formou-se tanta espuma
que o teu corpo até pode esconder-se:
aí ficas por instantes, a respiração suspensa e os olhos fechados
contra o ardor desse mundo de brincar,
dedos depois em voltas de ajuda.

A água e o sabão escorrem pelo corpo já torto,
respira e abre os olhos,
ao contrário escorres tu antes de poderes ver,
antes de poderes abrir a boca, Antes de soletrares o real
limpo da espuma dos prazeres breves, Vidros, mármores e cromados.
Um espelho cheio de bruma, sem ti, coberto de espuma e perfume.
E rios árcticos como rachas estampadas no Universo.

Enfim, desta vez és tu quem quer sair da submersão,
agarrar o cromado e a torneira em falta,
procurar a âncora pendurada já sem argola nem sinal.
Sem nenhum prumo auxiliar no escuro da espuma,
nem espelho em volta na volta da moldura solta.
E um pé desliza para longe, o outro também,
a cabeça a cravar-se na pedra e no metal atrás,
onde se aquece a vida e a chuva
quando nos molha de acordares.
Ficas imerso e acompanhado desse ruído borbulhante
no súbito silêncio da tua boca.

Olhas para mim, emergindo, mas já não olhas de verdade
e a tua boca começa a encher-se de espuma
como se estivesses a engolir nuvens.

terça-feira, agosto 16, 2011

NEM SONHO NEM BRISA, O ACORDAR DA IMAGEM












***************
Nem sonhos nem o efeito da brisa sob os véus da janela suposta entre as pálpebras ainda inchadas. Imagens sim, podemos falar delas, imagens que se libertam, a todo o custo, da realidade à qual porventura estão ligadas. Fotografias? Também, porque não? Os cisnes passam perto delas, numa semelhança de diferenças, mas as penas ou são ilusórias ou se perderam entre ancoragens, amarrações ou no desfazer dos laços. A fotografia finge tanto como a pintura, chega a fingir que é sombra a sombra que afinal a habita desde há muito. Seria, possível, no desfazer desse fingimento, iluminar de forma lenta cada parte destas ondulações, fios, tecidos, ou penas desfocadas, tornando cada vez mais claro o acordar destas imagens? Talvez como se nos fosse dado o talento de recriar o visível, bolhas de pano molhado emergindo da escuridão, o mistério do invisível abrindo-se num jogo matinal de aparecimentos. Apesar das concavidades ainda insondáveis e das aparências obscuras que tenderem a permanecer ali até ao rodar do dia, horas perdidas da tradução em escrita das previsibilidades de cada brilho, de cada bordado dentro ou atrás dos fios, estampagem, inércia dos artifícios ornamentais. Lembro-me de ter chegado aqui, um dia pela manhã, deslumbrando-me com a suave claridade que começava a aparecer nas janelas, atrás da respiração lenta e calada dos painéis finos, transparentes, que sempre velavam a objectividade excessiva das coisa aparecendo na grelha de madeira pintada de branco, branco mas na delicada cinza dos panos tradicionais que nos protegiam do ardor da luz os olhos transitando, a espreitar de lado. Mas agora não sei se vou voltar a este amado lugar, curvas do tempo e do visível meio desfeito, casa revisitada, amada, onde os portas diziam os seus versos do fundo das estantes e muitos testemunhos da antiguidade cobravam o seu lugar arqueológico nos intervalos das palavras. Candeias árabes, moedas rústicas das nossas primeiras dinastias, o ouro belíssimo que D. Fernando mandara cunhar, o estudo comparado das religiões e das almas, almas a cores, como as torturadas aparições em «Julieta dos Espíritos», de Fellini, ou as mutações malabaristas dos fantasmas fabricados pelos espiritas brasileiros, em nome da ciência, rostos na sombra, desfocagens de meninas vestidas de branco, um sopro do Além agitando a vela solitária, na quase noite carregada de murmúrios. Aqui, os espíritos, são os esplendorosos rostos dos meus avôs paternos, beleza da feição antiga, marcas de fungos num canto inferior. Mas talvez me concedam a força voltar aqui no próximo ano, abrir estas janelas, passar os cortinados sedosos pelas mãos crispadas de frio, oh, isso não sei. A porta bate, com o vento. De súbito, pousando na calçada, um pequeno pássaro confunde o frio com o medo. Imobiliza-se para se fingir morto.



fotografias de Rocha de Sousa

quinta-feira, agosto 04, 2011

NASCER PARA CRESCER, CRESCER E MORRER

Ninguém sabe quando nasce, nem porquê nem para quê. Conscientes de tanta coisa em volta, a fecundação, os fetos sangrentos, os meninos já toldados da melancolia e da dúvida esperam, no canal gelatinoso da vida, o momento da chegada. Antes a penetração, perto do acaso, num certo ovário, de uma certa mulher, de uma certa família. Trazendo consigo um karma de vida e saudade, na certeza da morte, branco de estímulos, excepto a força ardente do oxigénio nos pulmões e o modo como o tocam, tão diferente da sua aconchegada placenta.
Após algum tempo de maternidade e de urgência das tetas, lavado e vestido, o menino cresce. E é nessa altura, como se disse atrás, que os sentidos se perturbam, se interrogam, diante de coisas sem nome, embora as pudesse pisar e sujar nelas as pequenas mãos do emergir da idade da razão.


Sentado num ponto alto, já homenzinho como ouvia dizer as vizinhas, o Carnaval apanhou-o a descer sobre o universo da família, uma grande cara junto de si. O menino não era mais do que um balãozinho pousado na cabeça do seu irmão, um homem já grande, esse sim, capaz de o levar às cavalitas e de se embrenhar, entre as estrelas do céu, nos ombros e cabeça do outro, o anterior, o irmão. Verdadeiramente, ninguém se conhece nessa altura, começa-se a brincar, a ver e aprender coisas dos adultos. E então o menino pensava: não posso andar sempre neste homem-cavalinho. Andarei pela mão. Andarei pelos lagos do jardim. E ele afastar-se-á um pouco, anos depois. O menino foi um dia à Escola: era no número 33. Valeu-lhe a sorte, porque quando chegou à idade da tropa, ganhou o nome numérico de 333, a conta que Deus fez, e começo de estudos mais difíceis. Tinha acabado o estudos de Belas Artes quando, no quartel onde se encontrava, o convocaram para a guerra que deflagrara em Angola. Era uma guerra de que ele não sabia nada, porque, enquanto menino, menino mesmo, levara a ouvir relatos da Grande Guerra, e viu cinema, e leu revistas, e começou a pressentir que lhe havia de calhar um calhau daqueles. Lá foi para Angola, em 61, num navio aparelhado para transportar três mil homens. Ele estava melhor servido, na zona habitável e não nos porões ataviados com altas e triplas camas de madeira.
E aqui em baixo, por volta dos 20 anos, cá está o menino depois da metamorfose, fotografado solitariamente no Colonato do Vale do Loge. Ainda faltava tempo, mas, fosse qual fosse a indignidade daquela guerra dita colonial, houve longas aprendizagens, o corpo cheio de vitalidade, grandes «tempestades» de medo em lenta guerrilha e longos minutos de pacificação, assim, exactamente como o menino homem se olha e parece dizer: ainda aqui estou.

auto-retrato

Voltou noutro barco, tendo beneficiado de uma rendição individual por estar nomeado para o liceu D. João de Castro. O barco parecia ser todo para ele. À noite, num dos decks, via filmes e sonhava com a família. Contra tudo o que decorria aqui e além, foi ali que ele viu pela primeira vez um filme fascinante, «A Sede do Mal», de Orson Welles. Nunca mais se desligou das artes visuais e da escrita, que é feita de letras e palavras e frases, pintando também o mundo, visualizando a guerra de há pouco e os jardins em volta de lagos, num país longínquo.

sexta-feira, julho 15, 2011

A LEVE E CLARA ARGUMENTAÇÃO DO SENSÍVEL












Pinturas de Isabel Sabino

O visível é um fenómeno complexo da nossa natureza, por vezes relacionável com o invisível ou a denegação do real. Vimos aqui, não há muito tempo, um notável conjunto de obras de Isabel Sabino, cuja poética e cuja estética se podem evocar, em perfeita coerência, com as actuais peças, o melhor que conhecemos na ordem rapidamente esquecida da pintura anacrónica. Havia naquelas obras talvez um segredo, da pintura ou do real ou dos conceitos algo paradoxais que atravessavam as cenas de um provável jardim, espaço revisitado na óptica do humano mas a perder-se, inútil, na espessura pouco encorpada do seu abandono ao vazio. Após um eventual desastre, as ausências sucederam-se e as imagens que podíamos contemplar traziam em si uma inefável relação entre a morte e a beleza.
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Associemos esta espécie de paradoxo à famosa sequência do fotógrafo, em Blow-Up: julgando ver e fotografar uma cena de amor, o seu dom operativo, na manipulação dos negativos, revelou-lhe que a sequência antecipava um crime. Uma hipotética cena de amor torna-se no grão fotográfico de uma cena de assassinato. Há algo de parecido com o mistério da piscina, nos anteriores trabalhos de Isabel Sabino e o seu actual jardim
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«Aguarelando» sem rebuço através de tintas acrílicas, Isabel parece fazer aquilo que é recorrente nos ginásios, exercícios de aquecimento, coordenando a mancha, a gestualidade e a minúcia de uma aventura de ambíguo destino. Há mais experiências destas, por vezes paradoxais ou despojadas de algum assunto sustentando um tema.
Se olharmos para as obras que abrem o pano após estas (fotografia convocada para várias sustentabilidades) a luz é nitidamente m ais afirmativa, de uma poética fresca, apelando a todos os elementos figurativos para essa solidez matinal, entre plantas e leves construções, que podem lembrar composições cénicas, porventura mesmo cinematográficas, de certas escritas da arte britânica, diluições brumosas, quase sem sombras, onde tudo parece recuperado de um património cultural já aberto, lúdico, sem crispações. São, além do mais, um belíssimo uso da pintura representativa para investigar todos os géneros dela. A embriaguez expositiva do século XX tem tudo a ver com isto: porque, quanto mais se desmanchava por dentro e por fora de si própria, aproximando-se do seu motor invisível, mais espectáculo produzia, sem título, mas ruidosamente, ou elegendo estruturas mínimas, tintas solitárias, sempre em volta de uma descoberta verdadeiramente decisiva, por implosão ou imagem minimalista. O facto é que, sempre depois das contas, nada que mudasse o mundo aconteceu de facto sob a brutalidade dos experimentalismos todos, mega suportes, rias singelas.
Voltemos a Isabel Sabino no País das Maravilhas. Os lugares para os quais ela nos convida são imediatamente admiráveis: são paisagens de sítio nenhum. A autora quer aspirar ao aprazível e ao jogo de encenar figuras e objectos naquela paz silenciosa. Há aqui uma pintura representativa mas não mimética nem académica. Então, damo-nos conta de que o tempo já passou por ali, nódoas, rachas nas paredes, chão fino de quase nada, partes de um puzzle que Isabel, pensando o lugar, o ser e o ver, reboca para um tempo humanista que tende a recuperar o céu. Brincando. Numa leve e clara argumentação do sensível. Um mundo narrado assim, enquanto a pintora aponta atmosferas brancas, líricas, e «debaixo das folhas das árvores voando pétalas amarelas e verdes ou violetas», as flores do nosso imaginário.
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Do artigo «Sem paisagem, na paisagem» cuja publicação no JL falhou por um incidente técnico.

terça-feira, julho 12, 2011

QUADRO ENQUADRADO NO QUADRO DO ERÓTICO

veja depois de ver

As obras de arte, respeitados os direitos de autor, são por vezes material para novas derivas. O conceito de remake
integra a resolução de uma obra inspirada de perto noutra, por vezes muito perto da fonte, noutros casos distanciando-se para o domínio da metáfora, do simbolismo, agarrando na forma e no conteúdo uma parte do fio condutor do que terá sido apenas uma boa narrativa, mais ou menos despojada de valores ontológicos e na prática das escritas óbvias.
Esta imagem, foi publicada com outra função nas revistas, sobretudo em termos de publicidade, perto de uma fragrância corporal ou erótica. Podemos reparar que o que o aquecequecimento da cor e de um aperto do enquadramento, são factos que sublinham o sentido e a ideia de corpos que se enlaçam e sentem para além da sua aparência. Se esta ligeira metamorfose permitiu alterar contexto e conteúdo, aprofundando com alguma nitidez e plasticidade o clima erótico, há casos em que o proceocedimento representativo, meio oculto, torna o apelo da imagem nos levam mais longe ao limbo do desejo, porventura reconfigurando os estímulos do imaginário.

segunda-feira, julho 11, 2011

ORA DEUS NÃO PARTE PEDRA, O HOMEM SIM


Exemplo de calçada à portuguesa

Esta velha arte, que alguns associam a inspirações espirituais, é estruturalmente uma forma de tratar o ambiente, de fazer arte, como vemos em certos desenhos de Paula Prates. E nós mesmos temos ensaiado. Prates desenha de forma quase naturalista e sintetiza composições pictóricas com uma base semelhante.

ONTEM AO ENTARDECER, O CÉU ROMPEU-SE


Não esperava nada, suponho que no fundo do meu inconsciente se formava a imagem de um céu a romper-se, vazio de nada depois. Hei-de cogitar sobre esta percepção.

sexta-feira, junho 17, 2011

ARTE PODE DIZER A VERDADE PELO EMBUSTE

fotografia de Miguel Baganha


Digamos que a arte não é uma coisa nem um conjunto de coisas. Mas o que serão as coisas sem a arte para as sonhar ou dizer, aceitando nomes, silhuetas, desperdícios?

Em boa verdade, essas junções, corpos nomeados e mortos por uma simples alcunha, nada disso nos escapa, entre paradoxos e cataratas da memória, um fio de nostalgia, um sentimento de surpresa. Vou pela rua e deixo que o meu olhar se assuma voyeur, aconchegado aos reflexos das montras e aos riscos de uma vandalização pueril. Foi por isso que tive de parar, fazendo uma volta de pequenos passos, da direita para a esquerda, a fim de reconstruir o que as minhas sensações mal haviam indagado no campo tão contingente de percepção visual.

Retocado o ponto de vista, acertei o vértice das lajes que formavam o passeio: os botins de senhora, azuis pardo, tacões bem esguios, jaziam, bem perto da parede mas arrumadamente quase em ângulos rectos através da orientação dos canos, um adoçado à parede, pouco erudita, e o outro, descendo na minha direcção, lado esquerdo, paralelo ao primeiro, ou quase, e o outro, descendo na minha direcção, lado esquerdo, paralelo ao primeiro, ou quase, enquanto as pontas das botas, cada uma para seu lado, naturalmente à esquerda e à direita alta, garantiam a saúde do design proposto, mas não tinham alcançado um perfeito e oriental alinhamento, fosse ele qual fosse, com o desenho dos ângulos das lajes, rectos, de bicos voltados para nós, dois completos e um pequeno triângulo sobejamente atrás da bota mais além. Sinais curtos, de cima para baixo (doze, pelo menos) eram a modernidade instrumental do sopro, assim, cadilhos breves, chovendo sobre a irónica composição instaladora que se completava em baixo. Ali, no ponto de vista que resgatou uma particular imagem do devaneio quotidiano.

Mas isto não é nada disto, obviamente, ou pode não ser. Primeiro, porque as botas de senhora não são restos sarcasticamente abandonáveis. Segundo, porque o desenho angular ou modular do chão em pedra está longe de formar um suporte irreparável para as coisas «abandonadas». Terceiro, há uma distância mais ou menis previsível entre o tempo do lançamento dos sprays e o resto.Assim, podemos admitir dois aproveitamentos transitórios das coisas como coisa em si. Donde a fotografia passa ao nível do fait-divers e as botas terão em breve o seu dono. Sociologi- camente, podemos citar, nesta instalação, um retrato do quotidiano do século XX (ou mesmo XXI), ocasional ou propositado, que acabará por reflectir, conforme o nosso juízo, o despudor do consumo e a visão redutora da utilidade dos equipamentos urbanos.

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Com base em excertos de obras de Foucault, este pequeno ensaio de indagação sobre a coisa vista repõe o problema da percepção, do real e do visível, da representação e da aparência, da instalação e do embuste.

quinta-feira, junho 02, 2011

IMAGENS DE GENOCÍDIOS CONTEMPORÂNEOS

entre os conflitos que ainda hoje estão a começar um pouco por todo o mundo, evocam-se genocídios que marcaram o século XX e que nos despertam para o futuro, tendo em vista o que há bem pouco tempo ocorreu em vártios pontos do globo, a fragmentação do que foi a juguslávia e o horror em certos países africanos
como aconteceu no Burundi, 800.000 mortos que não tiraram o sono aos europeus, nem perto da linha que tanto atrai a NATO para a Líbia.




Ontem, ao entardecer, entre coisas indevidas por todo o chão, havia gente no passeio, entardecendo, murmúrios de gente que nem movia os lábios, gente curvada, pisando as folhas, passos lentos. Ao entardecer, ontem, eram velhos aliviados do peso da vida sem rumor nem temor por isso. Eles ladeavam, em deriva, a ideia da morte e os lugares dos mortos para sempre. Lugar negro. Passo a passo. Perdidas as sandálias no chão invisível, e nem sequer se dava por um fio de matéria pisada, passo a passo, pés descalços entretanto, as pernas nuas sob o manto das horas acabadas. Horas acadas assim, até a brisa se confundir com o bafo das meias palavras no curto pisar das folhas, passos quase longe, um riso curto de si mesmo. Chegaram então as luzes. Ou surgiram miniaturais no horizonte crispado. Era um cerco de luzes parando os passos, retorno torneando os que estavam ficando, temor no urmor vindo dos lados todos. Os que vinham em silhueta, vinham sem olhos, todos cegos entra a venda contra as pálpebras e a mordaça nas bocas, porque as falas também dão a ver, ver sobretudo por cima daquele rumor abrangente, a crescer, vasto círculo aumentando o seu espaço para negar a natureza do seu centro onde se viam, finalmente as populações emigradas. desatentas, temendo coisas estranhas e muito mais inquietantes do que o relento das noites. Ouviam-se ordens rápidas e ríuspidas, de longe, de perto, em volta, luzes afinal cegando quem estava livre de ver. De súbito, uma imensa e rangente trovoada rompeu o espaço, rente às cabeças apertas pelas mãos. Era um som a rolar atrás de uma chuva de estilhaços ou mais de cem mil tiros soltando-se em rajadas sem parar, rente, laminatmente, como a grande foice do Apocalipse. E a luz começou então a tremer, com tanto fogo e tantas sombras, gente de súbito irreconhecível, parecia tropeçar, desistir da corrida, ferida, e já ali perto montes e montes de mortos, atirados sem ordem no acaso dos casos, sobre moribundos que procuravam renascer, clamado, impróprios, pelas mães que já ninguém sabia quem eram. Que foi isto? Quem nos quer tanto mal? Arcanjos de asas pretas, diziam duas velhas já de luto.


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Rocha de Sousa

sexta-feira, maio 13, 2011

O MANDANTE E O MATADOR, AO ANOITECER

Tenho ordem para matar

Engoli uma pedra esta manhã.
Pão de pedra, passos na hora.
Achei coisa de engolir depressa,
os passos partindo, nocturnos.
Mas depressa a coisa ficou presa na garganta,
nem pão nem pedra.
Falta-me o ar,
bebo água que logo retorna, inútil.

Meto os dedos na boca,
empurro o pão para o estômago,
pão ou talvez pedra.
É pedra, certamente,
mas incha como pão
e eu julgo estar prestes a vomitar,
entre pausas.
Deixo-me cair de joelhos,
apoiando o queixo no cano da arma engatilhada.

Que vem por aí, que respiração é esta?



A arma engatilhada,
os meus pés já enviesados
arrastados pelo chão.
De joelhos, sobre calhaus redondos e pretos,
a lua acesa por cima
da minha cabeça tombada.

Tenho ordem para matar,

Duros, os calhaus nos joelhos.
Dura, e já imensa, a pedra
tomando conta das minhas entranhas.
É urgente, raios, partir a pedra seja como for
e vomita-la.
Agoniado como nunca,
curvo a espinha
forçando o vómito
num urro interminável
como se me rasgasse em sangue
e a pedra solta-se, de súbito, ao contrário:
na avidez de me salvar accionara o gatilho,
e centenas de mais pedras entraram-me pela boca aberta
num estoiro imenso:
o tiro a que eu estava mandado
cumpria-se assim, invertido,
num brutal desmando.


versos de rocha de sousa e fotografias de maria jawaa

terça-feira, abril 26, 2011

UM MILAGRE INDUZIDO COM SAPOS E RATOS







Desandavam os céus no início da tarde.
Um sapo fora arrastado até ao tampo da mesa.
Deixou-se esticar e crucificar na madeira seca
e adormecer com o perfume do clorofórmio.
Cortaram-lhe o peito, fazem ranger a matriz do osso,
e várias pinças puxaram, em simetria, o manto da pele,
afastando para cada lado as duas abas da caixa torácica,
e daí a pouco jé se via o pequeno coração a bater,
grande pulga arroxeada, aos saltos, viva,
e ninguém sabia dizer donde vinha aquela energia,
quem segurava o ritmo e reforçava magias
com o fim de o observar vivo.
O olho do saber,violando a sua privacidade,
recebera apenas orientações para observar o pulsar da vida.

Quando o coração parou
e ninguém mais o conseguiu reanimar,
alguém disse, sem a menor compaixão:
podemos estudar na mesma,
mal se imagina quantos ratos cobaia falecem por dia,
carregados de tumores implantados,
intoxicados por vacinas em análise,
as fémeas esventradas aré ao seu pequeno útero,
sós como nunca,
e assim sempre usadas, para, entre outras veleidades,
permitirem ulteriores trabalhos, não para confirmar a morte,
mas para que deles se refaça, à escala dos homens,
o milagre da ressurreição.