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quinta-feira, agosto 04, 2011

NASCER PARA CRESCER, CRESCER E MORRER

Ninguém sabe quando nasce, nem porquê nem para quê. Conscientes de tanta coisa em volta, a fecundação, os fetos sangrentos, os meninos já toldados da melancolia e da dúvida esperam, no canal gelatinoso da vida, o momento da chegada. Antes a penetração, perto do acaso, num certo ovário, de uma certa mulher, de uma certa família. Trazendo consigo um karma de vida e saudade, na certeza da morte, branco de estímulos, excepto a força ardente do oxigénio nos pulmões e o modo como o tocam, tão diferente da sua aconchegada placenta.
Após algum tempo de maternidade e de urgência das tetas, lavado e vestido, o menino cresce. E é nessa altura, como se disse atrás, que os sentidos se perturbam, se interrogam, diante de coisas sem nome, embora as pudesse pisar e sujar nelas as pequenas mãos do emergir da idade da razão.


Sentado num ponto alto, já homenzinho como ouvia dizer as vizinhas, o Carnaval apanhou-o a descer sobre o universo da família, uma grande cara junto de si. O menino não era mais do que um balãozinho pousado na cabeça do seu irmão, um homem já grande, esse sim, capaz de o levar às cavalitas e de se embrenhar, entre as estrelas do céu, nos ombros e cabeça do outro, o anterior, o irmão. Verdadeiramente, ninguém se conhece nessa altura, começa-se a brincar, a ver e aprender coisas dos adultos. E então o menino pensava: não posso andar sempre neste homem-cavalinho. Andarei pela mão. Andarei pelos lagos do jardim. E ele afastar-se-á um pouco, anos depois. O menino foi um dia à Escola: era no número 33. Valeu-lhe a sorte, porque quando chegou à idade da tropa, ganhou o nome numérico de 333, a conta que Deus fez, e começo de estudos mais difíceis. Tinha acabado o estudos de Belas Artes quando, no quartel onde se encontrava, o convocaram para a guerra que deflagrara em Angola. Era uma guerra de que ele não sabia nada, porque, enquanto menino, menino mesmo, levara a ouvir relatos da Grande Guerra, e viu cinema, e leu revistas, e começou a pressentir que lhe havia de calhar um calhau daqueles. Lá foi para Angola, em 61, num navio aparelhado para transportar três mil homens. Ele estava melhor servido, na zona habitável e não nos porões ataviados com altas e triplas camas de madeira.
E aqui em baixo, por volta dos 20 anos, cá está o menino depois da metamorfose, fotografado solitariamente no Colonato do Vale do Loge. Ainda faltava tempo, mas, fosse qual fosse a indignidade daquela guerra dita colonial, houve longas aprendizagens, o corpo cheio de vitalidade, grandes «tempestades» de medo em lenta guerrilha e longos minutos de pacificação, assim, exactamente como o menino homem se olha e parece dizer: ainda aqui estou.

auto-retrato

Voltou noutro barco, tendo beneficiado de uma rendição individual por estar nomeado para o liceu D. João de Castro. O barco parecia ser todo para ele. À noite, num dos decks, via filmes e sonhava com a família. Contra tudo o que decorria aqui e além, foi ali que ele viu pela primeira vez um filme fascinante, «A Sede do Mal», de Orson Welles. Nunca mais se desligou das artes visuais e da escrita, que é feita de letras e palavras e frases, pintando também o mundo, visualizando a guerra de há pouco e os jardins em volta de lagos, num país longínquo.

2 comentários:

Miguel Baganha disse...

Li, emocionei-me, reli e emocionei-me, reli e emocionei-me outra vez e outra e mais outra. A sua história é, também, a minha história; a história do outro; a caminhada repetitiva do Homem, para cima e para baixo, rumo à inevitabilidade existencial: "Nascer para Crescer, Crescer e Morrer".

O Homem valoriza muito pouco a vida, duma forma geral, o que quremos é usufruir da situação.
E isto confere à existência um carácter absurdo, sobretudo por ser irrelacionável. Além disso, é simples demais. Poderá dizxer-se que a existência "parece2 não existir.
É caso para perguntar?
Será que só existe aquilo por onde a existência passa? Aquilo que (eventualmente) acaba ou se transforma?...
Numa perspectiva pessoal, julgo que tudo contuinua no fundo do poço, ainda sem fundo, por enquanto. E até que "fundo" se revele, o Homem seguirá incompleto:
Agindo,
Criando,
Recriando,
Pensando
Como se tivesse traçado para si um itinerário.
Mas, o pensamento, de tudo aquilo que o Homem consegue fazer, o pensamento é o valor que mais importa e nos distingue de todo o resto. Além de tudo ainda é gratuito.

Estou feliz por si, João: você é um dos poucos que soube utilizar o pensamento. Estou feliz por mim: porque tenho o prazer de o ter como amigo e de privar consigo.

«Estou feliz e sei porquê». Esteja também, mestre.

Um abraço,
Miguel

jawaa disse...

Comovente esta leitura, embora a mensagem não seja inusitada, vinda de si. É mesmo assim, João: crescer, crescer sempre, crescer mais... e depois?
E mais não digo porque o Miguel já disse tudo.