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Nem sonhos nem o efeito da brisa sob os véus da janela suposta entre as pálpebras ainda inchadas. Imagens sim, podemos falar delas, imagens que se libertam, a todo o custo, da realidade à qual porventura estão ligadas. Fotografias? Também, porque não? Os cisnes passam perto delas, numa semelhança de diferenças, mas as penas ou são ilusórias ou se perderam entre ancoragens, amarrações ou no desfazer dos laços. A fotografia finge tanto como a pintura, chega a fingir que é sombra a sombra que afinal a habita desde há muito. Seria, possível, no desfazer desse fingimento, iluminar de forma lenta cada parte destas ondulações, fios, tecidos, ou penas desfocadas, tornando cada vez mais claro o acordar destas imagens? Talvez como se nos fosse dado o talento de recriar o visível, bolhas de pano molhado emergindo da escuridão, o mistério do invisível abrindo-se num jogo matinal de aparecimentos. Apesar das concavidades ainda insondáveis e das aparências obscuras que tenderem a permanecer ali até ao rodar do dia, horas perdidas da tradução em escrita das previsibilidades de cada brilho, de cada bordado dentro ou atrás dos fios, estampagem, inércia dos artifícios ornamentais. Lembro-me de ter chegado aqui, um dia pela manhã, deslumbrando-me com a suave claridade que começava a aparecer nas janelas, atrás da respiração lenta e calada dos painéis finos, transparentes, que sempre velavam a objectividade excessiva das coisa aparecendo na grelha de madeira pintada de branco, branco mas na delicada cinza dos panos tradicionais que nos protegiam do ardor da luz os olhos transitando, a espreitar de lado. Mas agora não sei se vou voltar a este amado lugar, curvas do tempo e do visível meio desfeito, casa revisitada, amada, onde os portas diziam os seus versos do fundo das estantes e muitos testemunhos da antiguidade cobravam o seu lugar arqueológico nos intervalos das palavras. Candeias árabes, moedas rústicas das nossas primeiras dinastias, o ouro belíssimo que D. Fernando mandara cunhar, o estudo comparado das religiões e das almas, almas a cores, como as torturadas aparições em «Julieta dos Espíritos», de Fellini, ou as mutações malabaristas dos fantasmas fabricados pelos espiritas brasileiros, em nome da ciência, rostos na sombra, desfocagens de meninas vestidas de branco, um sopro do Além agitando a vela solitária, na quase noite carregada de murmúrios. Aqui, os espíritos, são os esplendorosos rostos dos meus avôs paternos, beleza da feição antiga, marcas de fungos num canto inferior. Mas talvez me concedam a força voltar aqui no próximo ano, abrir estas janelas, passar os cortinados sedosos pelas mãos crispadas de frio, oh, isso não sei. A porta bate, com o vento. De súbito, pousando na calçada, um pequeno pássaro confunde o frio com o medo. Imobiliza-se para se fingir morto.
Um comentário:
Obrigada por partilhar palavras e imagens e sensações e sentimentos deste jaez.
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