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domingo, abril 01, 2007

UMA SEDE DE OLHAR E VER, PARA CRIAR





                                     fotografias de Rocha de Sousa

Estou cansado. Sento-me perto da mesa redonda, manchada pelo tempo. A sede que sinto é mais uma sede de olhar do que sede de água. Aparentemente longe do alcance da minha mão está um copo que parece ter um resto de água, é para isso que serve um copo, ou quase. O problema, contudo, não consiste em estender os dedos, apanhando o copo. O problema refere-se à minha sede de ver, à minha vontade de partir ao encontro das coisas, para as compreender, apropriando-me delas. Incapaz de dormir recostado sobre o braço flectido, rosto assim reclinado, permaneço agora nessa pose e só os olhos deslizam de um lado para o outro à procura da verdade que se esconde atrás da transparência ou dentro dela. Encontro a imagem de uns óculos, que usei há pouco, e tudo se distorce, tudo se desvanece ou escorre na retina, ver também acontece pela lassidão dos músculos orbitais ou através das lágrimas. A imagem muda, transforma-se, consoante a focagem do cristalino ou o seu desinteresse, a sua distenção. Puxei o jornal, que estava um pouco distante, à direita, e o jornal rasgou-se, a luz aumentou, apenas posso descortinar restos de uma fotografia e a mutilação de um texto. Podia usar a caneta e sublinhar para amanhã o que me cansa fixar hoje, embore continue refém deste olhar vítreo, que bebe a água do copo, fitando-a até afastar ou aproximar a espessura da percepção: há um ponto em que fica tudo muito nítido mas não é por isso que acedo ao olhar pleno, que pode desdobrar-se em mobilidade e revelar-me o que acontece do outro lado da mesa, dentro do jornal, na própra transparência da água ou da água contida por outra espécie de água, a do vidro, fino redondo, virtual. Ver é também compreender. Ver é também julgar, na subtil distinção e coordenação dos estímulos. Portanto estou a ver, movendo a consciência e fazendo apelo ao envolvimento das emoções e da razão: sem esse entrelace que me desperta a mente, entre procuras desejáveis, ficarei apenas entregue à deriva do olhar. Lá estão os óculos, maís nítidos, menos desfocados, prontos a me facilitarem o acto de ver. De súbito, quando menos espero, tomba uma flor ao lado do corpo, um amarelo vibrante, um choque emocional que agita a minha deriva visual, destruindo uma imagem e construindo outra, ou melhor: fazendo com que eu construa outra. A sede de olhar corresponde ao cansaço existencial e este abranda enquanto o braço desliza sobre a mesa e a capacidade de ver se expande em torno do sentido destas breves coisas próximas. E se mais o olho mais contacto com o cérebro, fornecendo consistência ao ver; mais eu descubro a flor decepada de um contexto para vir habitar este novo contexto. A imagem resolve-se então numa simples palavra: lírio.

2 comentários:

miruii disse...

Um copo de água e a flor
dessa cor
dariam vida ao Amor.

Tristezas não pagam dívidas!
Picada

naturalissima disse...

Gostei muito de rever esse ambiente (que me é tão familiar) nesta sequência de imagens quase como de pedaço de filme se tratasse... onde sinto frescura misturada com uma angustia matinal, um tocar nas coisas comuns, a busca do significado de cada uma delas como utilidade no seu lugar, na vaidade no estar e de ser.
Com a sede de olhar e ver para criar, o tio conseguiu construir um "post" BELO.

Um beijinhodasobrinhasua
Daniela