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sábado, dezembro 22, 2007

A BOCA OU O NOJO AOS VELHOS


As bocas. A boca. Comer a falar, sinto prazer em comer, comer ainda mais, criando a ilusão de que a vida será mais longa. Mesmo quando bebo chá nos intervalos das «grandes» refeições, assim acontece, bolachas a jeito, doce de maçã, bocas cheias esfarelando para a roupa os restos de uma mastigação afogueada e deficiente. As gengivas de pedra cobrem-se, durante algum tempo, por lábios enormes, horizontais, e as mãos trémulas, ajudando-se uma à outra, levam as chávenas à ponta dos lábios de súbito transfomados em bico de funil, metamorfoses funcionais dos corpos, apesar das peles encarquilhadas e das artroses paralisantes ou outras deformações mais avançadas, armadilhas tantas vezes lançadas aos que pior se deslocam, ou, tragicamente, a todos os que perdem, no deslizar das doenças, o ânimo de chegar mais além, alguns dos quais abreviam pelo suicídio a pobreza dos impulsos conscientes. São os que, em certos casos, recorrem à mais terrível das escolhas, de forma espectacular, escarnecendo da bonomia e da fé dos que permanecem à espera da salvação, na sombra estreita das suas vidas vegetativas.
A meu lado, Francisca esquece o olhar e a bolachas que se espalham sobre a saia de fazenda preta. «Em que é que está a pensar, tia Francisca?» Ela estremeceu e baixou a cabeça: «São estas coisas tristes que nos lembram os nossos mortos» Aperto as mãos uma na outra para não falar ao acaso da minha própria angústia. Agora digo: Estar triste é um pouco como querer morrer. A poesia ajuda-me a perceber o estado dos meus sentimentos, aquela inclinação para a loucura de que nos fala o nosso amigo Mateus»
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N. Do livro «Nojo aos Velhos», em preparação no círculo dos leitores, do autor deste blogue

Um comentário:

M. disse...

Triste realidade.