As bocas. A boca. Comer a falar, sinto prazer em comer, comer ainda mais, criando a ilusão de que a vida será mais longa. Mesmo quando bebo chá nos intervalos das «grandes» refeições, assim acontece, bolachas a jeito, doce de maçã, bocas cheias esfarelando para a roupa os restos de uma mastigação afogueada e deficiente. As gengivas de pedra cobrem-se, durante algum tempo, por lábios enormes, horizontais, e as mãos trémulas, ajudando-se uma à outra, levam as chávenas à ponta dos lábios de súbito transfomados em bico de funil, metamorfoses funcionais dos corpos, apesar das peles encarquilhadas e das artroses paralisantes ou outras deformações mais avançadas, armadilhas tantas vezes lançadas aos que pior se deslocam, ou, tragicamente, a todos os que perdem, no deslizar das doenças, o ânimo de chegar mais além, alguns dos quais abreviam pelo suicídio a pobreza dos impulsos conscientes. São os que, em certos casos, recorrem à mais terrível das escolhas, de forma espectacular, escarnecendo da bonomia e da fé dos que permanecem à espera da salvação, na sombra estreita das suas vidas vegetativas.
A meu lado, Francisca esquece o olhar e a bolachas que se espalham sobre a saia de fazenda preta. «Em que é que está a pensar, tia Francisca?» Ela estremeceu e baixou a cabeça: «São estas coisas tristes que nos lembram os nossos mortos» Aperto as mãos uma na outra para não falar ao acaso da minha própria angústia. Agora digo: Estar triste é um pouco como querer morrer. A poesia ajuda-me a perceber o estado dos meus sentimentos, aquela inclinação para a loucura de que nos fala o nosso amigo Mateus»
_____________________________________________________
N. Do livro «Nojo aos Velhos», em preparação no círculo dos leitores, do autor deste blogue
N. Do livro «Nojo aos Velhos», em preparação no círculo dos leitores, do autor deste blogue
Um comentário:
Triste realidade.
Postar um comentário