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domingo, dezembro 23, 2007

O ESTRANHO CASO DE ANA ORWELL




Na cave de um velho edifício vazio, apenas frequentado por algumas dezenas de indigentes, pobres caídos em desgraça ou reféns de drogas, à semelhança do que acontecia nas grandes metrópoles da segunda metade do século XX, a eclosão acidental de um pequeno incêndio, dramático pelas circunstâncias de promiscuidade no lugar, obrigou a intervenções dos bombeiros e da polícia. A remoção de dois cadáveres, que se encontravam perto de uma porta blindada, entre destroços queimados, alertou as autoridades para certas características do edifício naquela zona, fortificações adicionais e claramente posteriores à data da construção inicial, parecendo fazer parte da necessidade que justificara a implantação de passagem tão cuidadosamente encerrada. Durante o rescaldo do incêndio, a polícia, auxiliada por sapadores, forçou duramente a abertura da porta, tendo sido necessáro usar cargas explosivas em certos pontos do seu encaixe. Foi assim aberto um túnel escassamente apetrechado que desembocava numa série de salas cuja configuração e aparelhos suscitavam a ideia de laboratórios cuja finalidade se mostrava difícil desvendar numa primeira avaliação. Todas as tubagens eram estranhamente finas e o grosso delas partia de plataformas de vigilância ou controle de qualquer actividade nunca nomeada nos blocos de lettring, bandas arrumadas junto dos computadores entretanto desactivados por completo, dado o absoluto corte de energia verificado no prédio desde há muito. Não havendo registos, nas instituições apropriadas e serviços secretos acerca da vocação daquele volume arquitectónico de seis andares, os investigadores tiveram de resignar-se com a notícia de haver ali funcionado um centro de actividades fiscais e o Ministério da Segurança. Depois de obter muitos indicadores no interior mais profundo da Casa, a polícia encerrou a zona num largo perímetro e foi então iniciada uma pesquisa a todos os pisos, incluindo naturalmente as caves, sempre recorrendo a grandes discrição a fim de salvaguardar a cidade de qualquer desastre. Cá fora, o bloco, cercado por barreiras e fitas de aviso, via-se envolvido em cenários delicadamente arborizados, contrastando com largos panos de parede gangrenada. Nas extremidades do lugar havia rampas para parques de estacionamento também desactivados, com ligação a elevadores muito amplos cujos cabos permitiam a ligação das caves à placa do último andar.
Em suma, registadas estas informações, que a população acompanhou de longe e pela escassez noticiosa dos jornais, um duro silêncio pareceu ter desabado sobre aquele incidente, muito arificialmente conotado com os vagabundos que se acomodavam ali e acabaram por ser encaminhados para Centros de Acolhimento na periferia. Mas houve sempre transeuntes mais curiosos que assinalaram a manutenção da área de segurança e a entrada e saída de veículos com caixa fechada, cuja permanência nos parques durava variavelmente uma ou duas horas.
A comunicação social acabou por conseguir romper as paredes do sigilo. Nas caves daquele edifício aparentemente abandonado funcionara um núcleo de pesquisa biológica, clonagem e recaracterização de células. Em anexo a esse espaço de labratórios, alguns deles vandalizados, havia uma espécie de grande morgue cujas gavetas estavam cheias de cadáveres decompostos, a maior parte deles reduzido à estrutura óssea. Embora todos os arquivos se encontrassem meio destruídos, foi possível perceber que os restos mortais daquela gente correspondiam aos milhares de cidadadãos desaparecidos desde o golpe de força que derrubara o governo e o substituira por uma junta militar de comportamento altamente repressivo. Muitas pessoas e familiares dos desaparecidos lutaram aqueles anos todos, mais de doze, desencadeando manifestações na Praça Maior, mães e mulheres que choravam os familiares, ostentando também, com fotografias, cartazes e gritos, ordens ditas em grandes letras no sentido de forçarem a devolução dos eventuais sequestrados, sobre os quais, aliás, julgavam ter indícios de sobrevivência em campos de trabalhos forçados. A quase totalidade dos seus cadáveres teria, contudo, sido trasladada para o banco de frio. O caso que mais intrigou os investigadores parecia haver decorrido nos últimos dias da queda do regime: uma rapariga jovem, assistida por ventilação artificial, jazia na marqueza, com restos de pele e do rosto, quase encostada à parede do quarto. Esse separador de tijolo e massa branca mostrava-se, paralelamente, recoberto por uma infinidade de riscos, letras porventura escritas torturadamente com as unhas, entre as quais sobressaía, desenhado em líquido azul, primeiro um nome bem comum, ANA, e por baixo outro ligado a um mundo que a humanidade sempre temera: ORWELL. Era por certo uma alusão ao escritor inglês George Orwell, o que marcava um grito de alerta indescritível. Ana era sem dúvida o último cadáver daquela sala, pois ainda conseguira rebentar o frasco suspenso (como nas transfusões de sangue) donde teria pingado um enigmático líquido azul. Depois porque a rapariga usara a sua mão direita a fim de escrever ao lado. Com efeito, verificou-se o arrancamento do fio, caído na perpendicular e cheio daquele produto agora azul escuro, seco, obstruindo a saída em jeito de trombose colossal, orlada de coágulos azulados. Da mão esquerda da prisioneira, já óssea e tombada para o chão, havia igualmente tubos enrolados que se afunilavam para um reservatório de vidro. quase cheio de sangue escuríssimo, bem como os tubos principais ligados por agulhas ao desaparecido sistema vascular da rapariga. A autópsia e os estudos efectuados sobre este singular cadáver, todo ele encontrado com uma espécie de bata hospitalar e com tubos enovelando-se sobre o peito, veio revelar que a vítima tinha sido mantida viva até ao limite da sucção do seu próprio sangue para os frascos que, à semelhança de outros casos, foram descobertos, aos milhares, numa zona ocupada pela rede de frio. Nos imensos corredores, que se cruzavam perpendicularmente, havia ainda calhas metálicas e câmaras de um circuito interno de televisão, instaladas a intervalos estratégicos, como de resto acontecia em salas que pareciam de aprisionamento e outras, com toda a clareza, onde se praticava cirurgia ou algo muito semelhante na forma. Ana ainda tivera forças para nos comunicar a essência terminal do seu caso. E por isso desenhou uma palavra emblemática que tudo resumia: Orwell.
Na Praça Maior, as mães que se arrastam todos os anos em preces e pedidos patéticos de salvação para os seus familiares desaparecidos, insistem hoje em forçar o novo governo a revelar os nomes dos agentes daquela organização, o julgamento exemplar dessa gente, incluindo por certo outras personagens sinistras que vampirizavam os sequestrados. Porquê e para quê? Por ordem de quem, em nome de quem, como, quando? Ana não tivera meios, espaço e força para deixar na parede mais uma marca, assaz decisiva: BIG BROTHER.



Este texto resume a história que inspirou a produção do filme «A Morte de Ana Orwell», anos 90, filmado em super 8, com a contribuição da pintora Maria João Gamito. O filme concentra-se na vampirização da personagem e no seu lento estertor, assistida por suportes de vida por um lado e sangrada cientificamente por outro. Alegoria a partir da acção das mães argentinas, com filhos desaparecidos para sempre, e do seu protesto numa das praças de Buenos Aires. Se isso é parte da história contemporânea, e se passou sob os nossos olhos, a história aqui contada e o filme não passam, naturalmente, de ficção.

filme integrado num estudo sobre a imagem na Universidade Aberta

3 comentários:

M. disse...

Fiquei sem palavras.

M. disse...

Claro que foi pela positiva que fiquei impressionada, mexeu comigo. Gostei.
Um bom Natal para si.

jawaa disse...

Ao contrário da M.e com a M., fico impressionada, mas só se pode gostar destes cenários olhando-os como uma obra de arte.
Sentindo, não sou mazoquista.