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terça-feira, dezembro 04, 2007

texto dedicado ao quadro invisível


O que o Professor viu, do outro lado do rio ou mais longe, com o mar por perto, parecia a anunciação da verdade, entre sonhos ébrios e festins de gente desconhecida, ornamentada com esplendor, talvez a grande tela das pulsações rítmicas e do desejo. Era um cenário em ruínas, lixos em volta, pintura de destroços e grandezas perdidas. Casas de adobe, movimentos larvares de homens nus, alguns procurando trepar os depraus do palco, num ginga-ginga absurdo e viral, a sugerir histórias escabrosas, lendas ou visões ao jeito de Georg Grosz, e por isso era de presumir que se estivesse simultaneamente diante do espectáculo da linguagem, na belíssima esquizofrenia própria da transição do século, num adivinhado Apocalipse de chamas prontas para devorarem tudo à sua passagem. Após cada metamorfose, cada monte de cinzas, erguia-se uma ópera diferente de outras óperas de outros tempos, espectáculo contraditório das indizíveis fomes à beira dos pântanos, lamas e répteis, plumas luxuosas, gente caricatural, penosamente obesa, que vinha alcandorar-se, lenta, como plantas tropicais, nos varandins suspensos de um palácio imaginário, surreal naquele limite do mundo. Velhos olhando acasos, poeira em redor, eles mesmos sujos de uma espécie de argila ou leite derramado, velhos cujas pálpebras húmidas, carregadas de nostalgias, acabavam por se tornar notáveis figurantes. Mulheres sentadas de forma ostensiva, as suas carnes de chocolate convertidas em grandes seios, bolsas flutuantes na água da cheia, barrenta, cheiro a fezes e a terra, a mortos e a flores ocasionais. Traves em queda, mais além, cabanas vazias, placas de construções derrubadas pelos novos ventos vindos de todos os lados, estratos de coisas sem nome, estratos e maus estratos, corpos mumificados entre eles, restos de genocídios de que ninguém quis saber, latas batidas aqui e além, choros e murmúrios fingidamente terminais. Tudo é desabamento, representação a óleo ou a tintas de água, moços esguios retratados para a revolta, mordendo as suas canções indignadas, por vezes notas roucas de uma espécie de morna, memória de ritos meridionais ou requiem africano, entre o fim das almas acenando de longe e as noites impiedosas, sem madrugada. A manhã baça escorria sobre a rede de troncos geminados, folhas gordurosas. E havia sempre alguém procurando modos de matar a fome, a excitação, os gemidos dos amantes, e um contentamento breve quando os pardais gordos se deixavam apanhar nos baldios e estaleiros de madeiras pôdres. Pardais apanhados à mão, cadeirões de verga nas varandas de perfil colonial, o fantama de alguma velha senhora ou as voltas da Cristina bailunda, depois os pássaros torrados, um cheiro de ervas e molhos, tudo na lonjura perdida para as montanhas de lixo, troncos, cascas, carrinhos de bébé, as bandeiras rasgadas, armários com vidrinhos verdes num fundo verde esmeralda, caçadores de coisas raras nos seus cavalos espumando de cansaço, cenas de mil injustiças entre gigantescas nuvens wagnerianas subindo ao céu depois da calcinação dos bosques. Aqui e além, nos montes de desperdício, rolaram cabeças degoladas, perdendo-se entre cadeiras inúteis, mesas e animais carbonizados, objectos sem rosto, tudo, em suma, votado à inutilidade de um território que deveria alimentar o mundo inteiro, em vez de suscitar sobretudo a fome de gente sem pernas acomodada nos cenários de casas velhas, candelabros oxidados, tectos rechados, jornais amarelecidos, um relógio da bisavó e dois retratos indecifráveis de quando os meninos usavam quadros de ardósia. Tudo escorre num discurso contínuo e o Professor, de mãos apertadas, não saberia classificar uma pintura assim, que nem os mexicanos fizeram, e que fala de tudo na invisibilidade de tudo.

2 comentários:

jawaa disse...

Um fluxo de palavras expelindo cenários bizarros e verídicos que subjazem no século que nasce.
O quadro invisível mostra que do feio se faz belo, assim queiramos - e possamos.

Rafael Almeida Teixeira disse...

Rocha.

Na verdade eu notei um céu azul
e um abismo na parte inferior.

Até o presente momento, não sei classificar uma pintura assim.

Posso linkar seu blog?

Seja como for, desde já obrigado.