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segunda-feira, dezembro 17, 2007

UMA NOVA MANEIRA DE RASGAR CARTAZES

pintura digital, colagem descolagem e riscos
Vinha eu descendo uma rua do bairro, gemendo por causa da dureza das pedras da calçada, feita e refeita em obras descontínuas, quando uma senhora colossal me estampou contra uma caixa de ferro da Companhia da Luz, central manhosa, de muitas conexões eléctricas que se espalham por toda a cidade, entre esquinas e covas fundas da noite outrora deslumbrante. Encostei-me áquela caixa pintada de cinzento, repintada e rasgada, cheia de restos de cartazes que os lisboetas gostam de e arrancar de passagem, ao passarem, aquecendo os dedos nessa tardia desconstrução, os olhos engolindo desenhos mal amanhados nas paredes de subúrbio, coisas da malta, coisas que já formam um delírio de génios do grafitti, pinturas murais que tanto se fazem assim, estilo próprio e técnicas cada vez mais apuradas, como são, no seu melhor, formas parietais, a sujidade decorativa dos muros envelhecidos que ladeiam impropriamente certas vielas. E eu a sacudir a roupa, a esfregar a perna, olhando de esguelha a belíssima pintura que cobria a feia caixa da Companhia, o que me induziu, numa espécie de súbita pacificação, a espreitar melhor os papéis rasgados, letras, vermelhos, um rosto feminino que servira de modelo não sei há quanto tempo. E levantei um bocado do papel, que era parte de um monte de folhas coladas por cima das antecedentes, feridas pelas unhas, rasgadas com prazer, favor de limpeza lúdica que apenas desvenda a morte de papéis mais antigos, empastados, lindos de morrer nas suas carnes expostas, contingentes, derramando pintura em descolagem, uma corrente artística vinda de França, ou das docas de Nova Iorque, já nem sei. Pois eu tinha as mãos subitamente secas e feridas, cheias de papéis empenados, gordos, dois ou três a suportar um dos últimos, a rapariga, os riscos de crianças apressadas, entretanto margens e fundos vermelhos, que raio de coisa tão bela e tão inútil, da qual se soltavam outros pedaços para as minhas mão sequiosas de pintar, ou colar, ou riscar. Levei tudo, como Jonas quando se encarniçava na sua obra afinal mansa, levei até casa, havia de colar tudo, de pedir a um miúdo da rua para acabar de fazer o que havia a fazer sobre todas as sobreposições. E eis que os meninos recolhidos pela Santa Casa da Misericórdia, que moram onde eu moro, mas num centro de Acolhimento produtor de barafunda na saborosa mistura de raças que anda por ali, disseram «eu quero». E foi ali que eles se apropriaram da minha colagem, «a gente pinta, a gente desenha, a gente cola», rodando no pátio do prédio, canetas de feltro na mão, tintas sabú, uma régua para riscar o que fosse preciso riscar a direito. Meninos! Era a Educadora a tratar do rebanho, uma Educadora loura e insinuante, que olhou para a minha obra pendurada das dedos e sorriu a dizer que tanta coisa junta era bonita, não era borrada, «devia oferecer-nos o resultado do jogo para colocar na sala das brincadeiras». «Preciso primeiro de fotografar» «Porquê?» «Ora essa, também me cabe alguma coisa, obra, parte de um testamento, a memória estilhaçada» Foi então que a Educadora, imaginando não sei que malefícios, me fechou a porta na cara. A um metro da cara, diga-se a verdade. O boneco fica aqui como testemunho para as escolas: em bandos vão pela cidade, inutilizando cartazes com tinta e spray, descolando e rasgando outros, coleccionando montanhas de destroços para espalharem pelo quintal, como peças de um puzzle, a juntar a contrução à reconstrução plástica (constru+pintar). Assim começarão a aprender a limpar toda a cidade, refazendo-a de outra maneira, longe de Disney, longe do Potter, nada de lendas e maravilhas, só força de encadear, misturar, sobrepor, rasgar e juntar de novo, prontos para uma fala sem meninos, nem gatinhos, só plof, plof, bué lindo, Juca.

Um comentário:

jawaa disse...

«As minhas histórias são muito detalhadas para um blog», disse no meu espaço.
Eu não penso assim, nomeadamente esta com que nos presenteia aqui. É uma história detalhada, é verdade – e por isso mais atraente – breve, uma história bonita de um pedagogo a querer ensinar aos meninos que se pode achar beleza nas coisas antigas, nas coisas velhas, nas ruínas de um qualquer cartaz abandonado por imprestável.
Diz tanta coisa bonita nesta sua história detalhada!
Senão veja: o poder de encontrar a beleza no aparentemente inútil e reconstruir com ele uma obra de arte; a sensibilização das crianças para a necessidade de limpar a cidade usando criativamente os desperdícios, ocupando o tempo em actividades de desenvolvimento criativo e não alienatórias; a empatia criada com eles e com a professora que pretendeu ficar com a obra final achando-a bonita, pois claro; depois lá terá de desculpar a moça a quem de repente assaltaram dúvidas sobre as suas verdadeiras intenções, tão pressionada pelos media, sem o conhecer, sem saber da sua idoneidade.
A sua escrita é bonita e alegre também, bem disposta com aquela senhora colossal não sabemos se pelo tamanho, pela violência do passo, ou apenas engrossada pelos embrulhos do consumismo. Dá para imaginá-lo primeiro arreliado e logo pacificado pela beleza que logo o assaltou do meio daqueles papéis rasgados.
Desejo-lhe a concretização do tal quadro impossível logo, logo, à entrada do Novo Ano.
Felicidades para si também (com umas filhós pelo meio).
Um abraço