Muitas das obras de arte do nosso tempo, nomeadamente nas últimas décadas do século XX, emergiram das mais diversas experiências, sobretudo pelo desenvolvimento instrumental dos meios no justo recurso às ciências, artesanatos, pensamento plástico, liberdade de inventar, superando convenções e atavismos aprisionantes. Toda a liberdade, bem o sabemos pela História e pelas revoluções entretanto sustentadas entre guerras, é um campo armadilhado, susceptível de tornar perigosas muitas escolhas aventureiras e implacáveis competições de ordem estética e de ordem mercantil. Neste caso, desde há muito que se fala em indústrias de arte, uma cultura salsicheira que a classe intelectual se encarregou de encobrir ou enobrecer como superior produto do pensamento. Não muito tempo antes, Umberto Eco, entre outros, atacara os males intrínsecos da arte de massas (ou para as massas), sublinhando a ideia de que certos valores recorrentes não significavam nem a socialização, nem a democratização da arte. A despeito dos muitos escolhos que o acesso à cultura superior coloca às sociedades, a verdade é que, para tratar pelas formas artísticas o pensamento ontológico mais consistente, a obra de cunho estético é inevitavelmente elitista, não no sentido comum, mas no sentido de um saber de grande sustentação e de uma visão do mundo capaz de o suportar.
E dirão alguns visitantes: pois sim, mas que tem isso a ver com estes dois bonecos que aqui nos oferece? Eles equacionam essa transcendência? Em resposta, eu não diria tanto. Mas, na base, a raiz comum dos bonecos está na fotografia, a partir da qual foram ensaiadas técnicas informáticas básicas a fim de conferir dois rostos a uma única identidade. Isso não constitui, a bem dizer, nenhum feito extraordinário. Mas já é extraordinário o que se pode extrair de uma reflexão abrangente sobre o que parece um fenómeno ludicamente comum. Talvez Greenaway tenha pensado nisso quando imaginou uma entidade humana, de anatomia reconhecível, vestindo um só fato apesar de sustentar duas cabeças sobre os ombros, ambas saindo da mesma camisa e das mesmas abas do vestuário. Essa ideia, bizarra na forma, do outro que sempre nos habita, siamês ou não, sugere a complexa via pela qual talvez possamos ultrapassar certos limites, a tridimensionalidade, a unidade na diversidade, o envelhecimento parcelar, a interacção dos elementos sobre sensação, percepção, repretesentação. O que, bem vistas as coisas, não é tão pouco assim.
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