ovelhas são mais o símbolo da comunidade e da sobrevivência do
que gente empurrada para castigos sem explicão.
projecto de apresentação comentada de pinturas e fotografias do autor Rocha de Sousa
texto e fotos de Rocha de Sousa, autor do blog
Tomei agora conhecimento de uma série de cartas (textos de criação literária) que são actuais e de origem judaica. Imaginemos a edição de um livro cujos capítulos correspondem à urgência do homem se entender, de forma enfim consistente, com as divindades dos diversos polos religosos. Um dos capítulos integra uma carta dirigida por alguém sem identidade e que se dirige a Deus, com endereço em Jerusalém. Os outros capítulos são igalmente dirigidos a divindades de religiões activas e vastas na actualidade. Cada carta, dirigindo-se à divindade, abre-se a uma relação clara, explica-se com humildade e grandeza, mostrando-se depositária de importantes estruturas formais, supremas no seu valor literário. O texto, ou fala, ou prece, percorre o sentido da condição humana interligada ao perfil, poder e natureza da divindade. O humano que escreve mostra-se inquieto com o mundo em que vive, com a origem desse mundo e dele mesmo, ser falante, tendo por certos os propósitos superiores, inimagináveis, que terão sido encarados pela divindade como suportes da Sua obra, todo o Universo, as suas imagens e seres, os seus movimentos e massas animadas por milhares de forças, começando pelas gravitacionais, implicitamente aquelas que surgiram da enorme energia libertada no espaço, entre biliões de partículas, em choque e multiplicação, até às imensas concentrações de astros (explícitos) e outros corpos (invisíveis ou implícitos) cuja trajectória e formação de vida se encontram por toda uma infinidade de dimensões, sempre a fazer-se, a desdobrar-se, povoando-se de realidades biológicas, como a humana, nas quais a consciência se partilha com a razão, as emoções, a inteligência e a memória, sem limites palpáveis. Quem escreve vai colocando questões sobre a marcha da humanidade, dos seus ramos e crenças, em vastas manchas civilizacionais cuja história se afirma marcada por acontecimentos extraordinários, por obras eternizáveis, por tratados sobre a vida e a morte, entre guerras de difícil relato, ou genocídios, ou crimes e abatimentos os mais diversos. Quanto mais a carta se humaniza (objectiva) e trata do lugar dos homens e do seu apagamento depois da morte, cada texto torna-se comovente, como que feito de folhas meio secas que sobram pelo chão, imagem de qualidades iventadas pelo ser humano, talvez em partilha inominável com os poderes igualmente indizíveis de alguma consciência inserida no próprio universo. A utilidade disso inquieta as frases, a passagem e o vazio também, os cemitérios e grandes monumentos necrológicos relevando de todas as solidões no mundo, gente que migra, sobrevive, consolida família logo destinada à perda, ausências de sempre, presenças mitigadas e absurdas. Que farão os outros, amanhã, que destinos estão prometidos e são verdadeiros, para que servem, enfim, as partículas invisíveis em que se transformará, na morte local, o Sol, a Terra, o simples rosto desfocado de uma criança atravessada pela tempestade?
Quando passava na ponte sobre o rio, Senhor, toda a margem que os meus pés pisaram estava juncada de mortos, uma inteira paisagem de cadáveres, gente de todas as origens e raças, incluindo militares e sacerdotes, fragmentos de fragmentos, rios de sangue enchendo algumas clareiras ensombradas. Este braço que vem junto das minhas coisas parece ter pertencido a algum irmão do Norte de África, só é observável do ombro ao pulso, visto que a mão lhe foi decepada. Não sei se é devido e se o meu pensamento tem préstimo para quem me ouça, mas recomendei ao Senhor a minha prece de compaixão por este homem infinitamente sem nome nem corpo.
Ontem fiz referência a um texto de Hugo Canoilas sobre a exposição «Atravessando Fronteiras», dedicada aos anos setenta e promovida pelo Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. Hoje, ainda perante um outro texto do mesmo autor («Vem aí a Feira») passo para este espaço, acompanhado de imagens de vários feirantes que registei num grande evento no Algarve. Vou assim citar amplamente Hugo Canoilas, a bem de uma importante causa que envolve a arte actual portuguesa e a submete de forma tosca a mimetismos de olhos desvairados vindos da Alemanha ou de Espanha, visitantes de consumadas feiras de arte, a primeira das quais sucedeu em 1970, Colónia, vítima de grande contestação por artistas como Wostell ou Joseph Beuys. Segundo o articulista aqui evocado, aqueles e outros autores sentiam que a «feira» era um caso de «constrangimento criativo e de práticas de exclusão injustas». Tal sentimento parecia, diziam eles, «trazido por esta moda», apesar dessa espécie de bolsa das artes revelar a abertura de maior número de galerias na Alemanha. Apesar dos «poços de ar» verificados noutras circunstâncias, esta febre afinal mercantilista fez alargar imenso o número de galerias entre os anos 60 e os meados dos anos 70: apenas 400 espaços, grande variedade de produtos como é próprio de qualquer feira que se preze. Haverá nesta realidade um factor socializante em termos de distribuição, o que, na altura, se ligava a algumas propostas mais conservadoras e, naturalmente, a um grande aumento dos valores de mercado. Hugo Canoilas acentua, a propósito da natureza de certas tipologias de algumas vertentes artísticas, o curioso facto de autores como Blinky Palermo e Gerhard Richter «serem absolutamente pró mercado em reacção às práticas conceptuais vigentes (quando a arte conceptual era no início não mercantilizável)». Vivia-se entretanto a ideia envolvente (que alguém espreitava da margem da história) de que estes eventos talvez permitissem manusear trabalhos, negociar com com artistas e marchands, tendo em conta igualmente a conhecida sensibilidade dos clientes e o seu modo de comprar. Agitando produtos e lugares, ainda se pensou que a feira poderia alcançar um importante significado para os homens do ofício (artistas e vendedores a retalho). Perante a actual Feira de Lisboa, Hugo pergunta-se com pertinência: Será que, em Portugal, ainda não se aperceberam que este modelo de feira é um «nado morto»? É, com efeito, problemático este alinhamento (pobre) por exemplos exteriores que já mudaram de figurino, apelando à inscrição da cultura e contra a menoridade dos objectos. Se as galerias investem muito dinheiro na apresentação da feira, o certo é que o nível da visibilidade alcançada não escapa ao ruído envolvente, aos equívocos de bem parecer, à cedência ao público arreigado e aos imperativos dos habituais ou duros coleccionadores. De resto, procurando estratégias «adequadas» para este tipo de acontecimento, ao certo quase nada interdisciplinar, os galeristas ensombram a desejada «celebração da arte contemporânea», o que deveria convocar ambientes festivos, o gosto pelo debate sobre o papel da arte no mundo de hoje, inclusivé envolvendo todos os agentes (artistas, galeristas, coleccionadores e público) numa frutuosa troca de ideias, entre saudáveis polémicas e possíveis consensos. Com leituras também, a relação do livro, da sua linguagem perante outras de suportes e factores integrantes diferentes. E como o verdadeiro cinema faz falta nestes casos, mesmo que para tanto as barracas tivessem que fechar os varandins, deixando ao relento os dados físicos de algum marketing..Hugo Canoilas diz ter verificado que a feira de Amsterdão, ao comemorar os seus 25 anos, solicitou a todas as galerias a apresentação de exposições individuais, facto que aconteceu e conferiu um novo interesse às acções correntes. «Foi de facto - diz ele - uma das melhores feiras que vi»; em experiências assim ganha a vontade de participar e os termos de legibilidade. Há outros exemplos de outras soluções, como em Viena e o convite a autores de Leste cuja produção, espectro de dados inovadores, grangeou um entusiástico interesse do público. Viena vai mais longe, convida curadores de prestígio, uma classe que parece seguir o antigo caminho da crítica - o de se substituir aos próprios artistas, gerindo mediatizações e deploráveis ostracismos. Um dia, estou certo disso, este poder institucional, protegido nas respectivas instâncias, terá de ser melhor enquadrado e trabalhar com outro espírito. A arte, esquiva a dogmas e decisões absolutistas, ela sim, ela é que faz a sua verdadeira história.
Na feira que visitei, colocando-a ao lado de de Lisboa, os brinquedos de madeira fecham uma sala. E não posso deixar de me lembrar que um artista português usou, nos anos 70, este brinquedo do pássaro com rodas e cabo em grande quantidade de uma amável e repousante instalação.
os velhos brinquedos de uma geração ainda não perdida