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terça-feira, abril 06, 2010

A CONDENAÇÃO DO PASTOR PELO REBANHO


Esta história, que talvez contenha conteúdos de parábola extraídos dos terrores medievais, envolve a via atribulada de dois irmãos atirados de súbito para a orfandade, situação terrível e injusta que só podemos relacionar com os insondáveis desígnios de Deus. Só Ele, porventura, saberá dar sentido a esta trágica solidão das duas crianças, confrontadas com a morte súbita dos pais numa cheia dantesca. Só Ele poderá explicar a razão das escolhas, porque razão, ao mesmo tempo, se salvaram milhares de vidas, algures, do outro lado do Mundo.
Vivia-se uma época aterradora da limpeza moral intentada pela Santa Inmquisição, e as praças das cidades ou aldeias, com forte assiduidade, eram palco da execução de penas capitais, na morte pelo fogo, de gente condenada segundo códigos algo obscuros, atrás de denúnciais cruéis, muitas vezes presumivelmente falsas, actos de vingança ou perduráveis querelas. Tais condenações visavam criaturas tidas como bruxas, geralmente velhas, e homens ou mulheres acusados de actos impróprios, heresia, insulto aos símbolos sagrados, luxúria, entre outros.
Num casebre da aldeia de Clov, vivia uma família de camponeses, pai, mão e dois filhos. O mais pequeno não tinha ainda dois anos e o mais velho, sério, concentrado e responsável, rondava os sete anos. Era gente pobre, trabalhadora e honrada.
Tempo depois da morte dos pais, na casa sombria e húmida, viviam aquelas crianças, e tudo era tratado pelo moço mais velho, naturalmente, com alguns apoios dos vizinhos que moravam mais perto e sentiam compaixão por aquele destino. Não recolheram os miúdos para suas casas porque o mais velho, o José, nunca aceitara sair dali.
Certo dia, pela tardinha, um senhor da Igreja, vestindo de forma comum, que parecia ter grande vontade em ajudar os pobres e por isso escondia a sua origem, aproximou-se da casa das duas crianças orfãs, tendo conversado ternamente com o José e afagando as carnes e os cabelos do menino no seu canto acolhedor.
Dias depois, este mesmo senhor da Igreja, disfarçado de homem comum, voltou a visitar a casa das crianças, e chegou carregado de alguma comida e muitos doces. Afeiçoara-se aos orfãos, sobretudo pelo mais pequeno, a quem dispensava carinhos intensos, beijos longos, afagos insólitos, e até colocava o menino ao alto, sobre o seu peito descoberto, reclinando-se depois na cama, com ele, como a mãe fazia. O José, de início, olhava para tudo com grande enlevo, lavando louças e roupas, entre outras tarefas que o senhor por vezes lhe indicava, incluindo saídas para fazer compras longe dali. Foi nessa fase que o José, desconfiado, surpreendeu o homem todo nu, na cama, e com o menino enrolado no interior das suas pernas peludas. Foi posto na rua com um berro, voltando a casa quase ao anoitecer, com prudência, e logo correu ao ouvir o choro do irmão. O irmão encontrava-se meio vestido, sentado no chão, à sua frente um prato de papas entornadas nas roupas, apresentando os lábios em ferida.
Tempos depois, reposta a tranquilidade na sua casa e na vida do irmão, José deixou o menino na casa de uma vizinha, a cinco minutos dali, e foi assistir às matanças da Praça Maior. Queria espreitar e perceber tudo o que lhe diziam outros rapazes. E viu, assombrado, as fogueiras, ouviu os gritos, cheirou a carne queimada. Havia uma agitação contraditória em redor, carros chegando, guarnições militares, um palco com tecto, todo forrado em tom púrpura, e no qual, atrás de uma mesa longa, bispos, oficiais, juízes, todos se afadigando entre papéis, gestos, audições. Juntos, vistos de frente, até pareciam uma representação luxuosa da última ceia de Cristo. Ao olhá-los assim, frontalmente, o José, de repente aterrado, reconheceu num bispo da mesa o homem que lhe visitara a casa e que abusara do irmão. Era uma descoberta grave, o outro sentado no lugar de Cristo, conduzindo os trabalhos e bebendo goles de vinho. O bispo era, sem tirar nem por, o religioso sem farda que os invadira a casa da inocência e praticara as piores heresias.
José, atordoado com os fumos da carniça e aquela gente que já condenara um amigo dos seus pais, correu numa direcção aparentemente errada: queria falar com outro homem bom, mestre escola, que sempre dialogara com os pais e comia muitas vezes lá em casa, parecendo haver uma estranha cumplicidade entre todos. O encontro, depois da fala soluçada, era mais do que uma denúncia, era um acto desesperado de vingança ou de reconquista de uma dignidade ofendida. O professor soube rapidamente quem era aquele «santo» homem, o Bispo, Bispo Coordenador, Encomendador dos Processos em Curso. Foi longa e sombria esta história, pois os membros da Inquisição, quando eram acusados de terríveis delitos, acbavam sempre perdoados e por vezes nem os deslocavam daquele «campo de operações». Desta vez, houve uma diferença. Um dia, no final de horas de condenações e mortes na fogueira, apareceu um Cardeal, com pomposa comitiva, mostrando estranhar certas coisas e acabando por exigir a consulta de todos os documentos relativos aos processos. Perante uma tensão dos outros, ele puxou pela espada, colocou-a diante da face, e mostrou as insígnias que lhe conferiam aquela autoridade. Andava a mando do rei, como hoje andam alguns inspectores, pelas indústrias e comércios. Nunca se soube como, mas a verdade é que ele depressa descobriu o comportamento do bispo e as suas recentes luxúrias com uma criança de menos de dois anos. Houve uma reunião do «Senado» daquela divisão, onde se fez pública forma do acto enfim conhecido, e mais se propôs que a Igreja começasse a dar o exemplo: o juiz leu a decisão dos seus pares, condenando o bispo à morte pelo fogo, naquela mesma tarde.
O feitiço voltou-se contra o feiticeiro. Hoje nãoo acontecem tais cometimentos, até porque, desde o século XX, que todos os casos descobertos nas fileiras da Igreja andaram longos anos encobertos e a justiça demorava uma década para resolvar um simples caso de homicídio. Por vezes, alguns padres foram suspensos, convidados a sair, votados a penas de solidão, mais do que o Chefe religioso maior, Pai de todos, aquele que bondosamente costuma apresentar desculpas aos povos e sociedades lesadas por remotos crimes, entre famílias acabrunhadas, entre a fé e o horror. Há outras e muitas desculpas a apresentar, mesmo a título póstumo, está bem de ver, considerando civilizações arrasadas em nome de Cristo, as terríveis Cruzadas e de novo, de melhor forma, a própria Inquisição, ou os bloqueios grosseiros perante a ciência, de que Galileu é um exemplo da maior referência. Tudo isso, em boa verdade, serve de pouco. Mas os símbolos marcam muitos os actos desde bastante cedo. Convocar o espírito da Civilização e o próprio Deus para estes litúrgicos pedidos de desculpa talvez viesse iluminar um pouco a época, apesar dos segredos que vão sobrando nos subterrâneos da História.
***
O rebanho, nos nossos dias, não se basta com a fé do pastor e as
ovelhas são mais o símbolo da comunidade e da sobrevivência do
que gente empurrada para castigos sem explicão.

segunda-feira, março 08, 2010

ATRÁS DO FUMO, UM RETRATO SEM ESPELHO

começava assim:
Estou amarrado a uma cadeira, amarrado psiquicamente, fumando sem tirar o cigarro da boca. E a cinza cai sobre a roupa, desfaz-se em levíssimos flocos de nada, salpicando dessa forma a cor pardacenta das calças. A minha mão esquerda está pousada aí, por momentos incapaz de se mover: devagar e silenciosamente, coladas à pele, têm surgido, multiplicando-se, muitas margaridas da morte, essa espécie de sardas irregulares e por vezes assustadoramente grandes -- pétalas assim, de um sépia brando, para o dizer sem tanto alarme, um sinal da velhice que se aproxima de mim, figuras por vezes aguareladas na possível anunciação do colapso ou marcando o momento da vida em que somos mais sábios.
Há dois ou três anos, ao contrário da minha ausência nos espelhos, para onde olhava por vezes sem formar a percepção do meu rosto, começei a deter-me nos lugares onde esses misteriosos objectos me fitam, imobilizando a face e os olhos. Queria rodar os olhos e ter consciência visual disso, mas só dava por eles sempre parados, atrasada irremediavelmente a minha percepção de me apropriar, enfim, dessa imagem. Agora, como acontece com a pele das mãos, outros sinais e mudanças vieram alterar a identidade anterior deste rosto que eu espreitava num rápido reconhecimento. De frente para mim, o que vejo, surpreendido, é outra pessoa, é outra face, embora a experiência de dezenas de anos me diga que ninguém pode, neste instante, subtrair o retorno da minha imagem à consciência que consegue ainda reconhecer-me: cabelos escassos e oleosos, a testa cheia de rugas de medo ou de alegrias entretanto perdidas, os olhos infinitamente mais pequenos, rodeados de bolsas de pele e líquido, as pontas assimétricas das sobranelhas empeçadas. Manchas sanguíneas, por outro lado, vieram insinuar-se na face direita, já bochecha, onde cresce (desde a infância) um sinal enfim transformado em protuberância lisa, esférica e quase mole, rodeada de pelos que os instrumetos de rapar a barba mal tocam, deixando-os crescer como nas verrugas das bruxas. Os lábios ficaram finos, irradiando rugas a partir dos cantos, e se abro a boca mal descortino os dentes, recuados, pequenos, conservados com o apoio de coroas e próteses desse tipo.
Os desastres principais tanto nos arrasam por dentro e por fora, apagando grandes áreas da nossa memória, como toda a população deste continente, na faixa central, ao desaparecer, afogando cidades nos oceanos ou eixando velhos a morrer de fome, em Lares atulhados, porque os serviços sociais faliram e só os ricos ainda sobrevivem em jeito de velhos aristocratas fingindo fortunas com a venda das pratas e das jóias, cadeiras de estilo e móveis D. João V. No entanto, quando passeiam pelo jardim público, fidalgos a fingir, aparecem sempre impecavelmente vestidos, penteados, e com alguma corrente do século XIX pendurada entre o colete e a calças.
O meu irmão é um pouco como esta gente, e é velho exactamente, e finge a agilidade que já não tem. Foi para África há muitos anos, tantos que nem sei quantos, e entretanto, depois da população desse continente, na faixa central, ter desaparecido por completo, emigrando ou morrendo, fico a pensar nele, no irmão teimoso e apaixonado, de quem nunca mais recebi notícias, uma simplas carta, um recado trazido por alguém, como acontecia há muito tempo. Quando a tecnologia soçobrou, telefones, computadores, energia eléctrica, houve esta sensação entre membros da diáspora: uma ausência aterradora de sinais como no silêncio da morte.
Desprendo-me da cadeira, num esforço enorme. E deixo cair no cinzeiro a ponta queimada do cigarro, o filtro molhado de saliva, um cheiro levemente agressivo na ponta do nariz. Espreito para fora, para uma rua despovoada, que poderia perfeitamente acolher a poalha do meu cigarro.
E não vejo de facto ninguém, as pedras da calçada húmidas, o céu compacto e sombrio. Olho para a direita, para um lugar onde me abasteço de tabaco e outra bugigangas, jornais sonolentos ou continuamente intriguistas, simulando a verdade onde até os espelhos lhes mentiriam. A Matilda, dona da tabacaria, do poste de jornais, da venda de lotaria e revistas da TV, entre muitas outras coisasa irrepreensivelmente inúteis, parece estar recolhida, em os taipais fechados. Oxalá não esteja doente. Preciso dela e dos recados da filha, menina fútil mas que me trata como um avô, daqueles antigos que ajudavam a família e contavam histórias de maravilha.
Vou para dentro, encosto o vidro da janela e leio, impaciente, algumas linhas do que escrevi ontem:
Portanto a urgência de dizer. Dizer apesar dos limites, contra ou por dentro das convenções. Mesmo quando não se refazem, as convenções podem sobrepor-se ou misturar-se. Fernando Pessoa dizia imagens com palavras e usava as convenções, inteiras ou distorcidas, adequadas à forma expressiva de cada heterónimo, poetas diferentes que o habitavam, emergindo misteriosamente para a vida.
A globalidade e os desastres principais apenas nos lançam para um mundo cujo futuro que, parecendo tecnologicamente avançado, afinal se desenha cada vez mais nos termos de uma perspectiva redutora. Perplexo, rasgo alguns dos meus papéis. Acendo outro cigarro. Olho para a janela e penso: quefará a Matilda a esta hora?

texto e fotos de Rocha de Sousa, autor do blog


terça-feira, fevereiro 16, 2010

IMPOSITIVA IDENTIDADE DO FAZER PICTÓRICO

oração póstuma

Tomei agora conhecimento de uma série de cartas (textos de criação literária) que são actuais e de origem judaica. Imaginemos a edição de um livro cujos capítulos correspondem à urgência do homem se entender, de forma enfim consistente, com as divindades dos diversos polos religosos. Um dos capítulos integra uma carta dirigida por alguém sem identidade e que se dirige a Deus, com endereço em Jerusalém. Os outros capítulos são igalmente dirigidos a divindades de religiões activas e vastas na actualidade. Cada carta, dirigindo-se à divindade, abre-se a uma relação clara, explica-se com humildade e grandeza, mostrando-se depositária de importantes estruturas formais, supremas no seu valor literário. O texto, ou fala, ou prece, percorre o sentido da condição humana interligada ao perfil, poder e natureza da divindade. O humano que escreve mostra-se inquieto com o mundo em que vive, com a origem desse mundo e dele mesmo, ser falante, tendo por certos os propósitos superiores, inimagináveis, que terão sido encarados pela divindade como suportes da Sua obra, todo o Universo, as suas imagens e seres, os seus movimentos e massas animadas por milhares de forças, começando pelas gravitacionais, implicitamente aquelas que surgiram da enorme energia libertada no espaço, entre biliões de partículas, em choque e multiplicação, até às imensas concentrações de astros (explícitos) e outros corpos (invisíveis ou implícitos) cuja trajectória e formação de vida se encontram por toda uma infinidade de dimensões, sempre a fazer-se, a desdobrar-se, povoando-se de realidades biológicas, como a humana, nas quais a consciência se partilha com a razão, as emoções, a inteligência e a memória, sem limites palpáveis. Quem escreve vai colocando questões sobre a marcha da humanidade, dos seus ramos e crenças, em vastas manchas civilizacionais cuja história se afirma marcada por acontecimentos extraordinários, por obras eternizáveis, por tratados sobre a vida e a morte, entre guerras de difícil relato, ou genocídios, ou crimes e abatimentos os mais diversos. Quanto mais a carta se humaniza (objectiva) e trata do lugar dos homens e do seu apagamento depois da morte, cada texto torna-se comovente, como que feito de folhas meio secas que sobram pelo chão, imagem de qualidades iventadas pelo ser humano, talvez em partilha inominável com os poderes igualmente indizíveis de alguma consciência inserida no próprio universo. A utilidade disso inquieta as frases, a passagem e o vazio também, os cemitérios e grandes monumentos necrológicos relevando de todas as solidões no mundo, gente que migra, sobrevive, consolida família logo destinada à perda, ausências de sempre, presenças mitigadas e absurdas. Que farão os outros, amanhã, que destinos estão prometidos e são verdadeiros, para que servem, enfim, as partículas invisíveis em que se transformará, na morte local, o Sol, a Terra, o simples rosto desfocado de uma criança atravessada pela tempestade?

Quando passava na ponte sobre o rio, Senhor, toda a margem que os meus pés pisaram estava juncada de mortos, uma inteira paisagem de cadáveres, gente de todas as origens e raças, incluindo militares e sacerdotes, fragmentos de fragmentos, rios de sangue enchendo algumas clareiras ensombradas. Este braço que vem junto das minhas coisas parece ter pertencido a algum irmão do Norte de África, só é observável do ombro ao pulso, visto que a mão lhe foi decepada. Não sei se é devido e se o meu pensamento tem préstimo para quem me ouça, mas recomendei ao Senhor a minha prece de compaixão por este homem infinitamente sem nome nem corpo.

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

OS SINAIS DE DEUS NO DESERTO ALENTEJANO

2009
abandono
Aqui acolho,
pelas analogias
de escolha estética,
fotografias registadas
no Alentejo
por um jovem arquitecto,
TIAGO DAMASCENO,
cujo olhar me
parece peculiar
amadurecidamente.












natureza morta
Primeiro porque se tratam
de fotos de um jovem
arquitecto por estes temas se faz
acompanhar de um talento
indesmentível,
sabendo como representar
o que vê.













berço
A mensagem
é comunicar a linha
de escolhas criteriosas na base de
temas sobre a vida e a morte
de gente cujo património fica
assim reduzido a estranhos
sinais de perda, abandono,
sinais de um destino sem sentido.












lareira
Fiz, não há muito tempo,
um exercício semelhante a este,
numa aldeia em ruinas na serra do Algarve.
Desta vez, Tiago, que vive e trabalha na África do Sul,
meteu-se por veredas alentejanos, numa das suas partes
mais desérticas e abandonadas, tendo encontrado esta casa
arruinada. Tema de que logo se apropriou como se o mundo
tivesse acabado.












escombros
Como no livro «A CULPA DE DEUS»,
dir-se-ia que Tiago julga ser aqui, após a morte e os
e os testemunhos de uma vida, um lugar apropriado
para procurar os obscuros sinais de Deus.
Perguntei-lhe se rinha encontrado alguma manifestação assim.
E ele disse: eu não, mas estude as fotografias,
pode ser que não seja em vão.
E não foi, de facto, em vão.
Porque os sinais do homem
superam os esquecimentos habituais
nestes casos.

quarta-feira, dezembro 23, 2009

PINTURA ARRANCADA AOS LIXOS URBANOS

pinturas de rocha de Sousa (2009)
desenho digital, seguido de técnica mista


Voltemos transitoriamente à pintura, aquela que se faz com matrizes digitais e se transforma, por diferentes meios directos e indirectos, em obra plástica mista sobre papel. As configurações podem não ter relevo estético muito apelativo e obrigar a leituras decifrantes, intermitentes, sem verdadeiro feed back. É um risco de todos os processos de comunicação pela imagem, mas é também uma conquista no campo expressivo, pluralmente liderada, segundo uma infinidade de projectos, de despojamentos, de apagamentos e recomeços. No meu entendimento, todo o ruído do experimentalismo ao longo do século XX, deixou marcas, sequelas, suicídios consumados. Nenhuma batalha se faz sem feridos ou mortos. Por este caminho demoradamente em catarse, os gritos e os silêncios haveriam de deixar impressivos efeitos sobre a evolução dos modos de formar ou os segredos dos grandes mestres da Renascença, para não citar outros, de outros tempos, de civilizações mais recuadas. A arte foi submetida, pela vontade sensível e pelos fenómenos do registo mecânico, a uma reflexão sobre a sua verdadeira natureza, possível autonomia, se estava ou não largamente infectada pelas indumentárias, riquezas de habitat, projecção de ornamentos, efabulações do ver e do delírio. Pelas conclusões das análises intensas e radicais, depressa se argumentaram os caminhos da simplificação, despojamento, limpeza do acessório. O princípio parecia legítimo. Mas não absoluto. E, com efeito, mal se chegou ao minimalismo da linha solitária sobre a tela ou do corte desesperado, num só golpe, ao centro da própria tela, acto liminar de Fontana, logo a moda subverteu o modo. Mas o homem não é simples, nem por fora nem por dentro.
Ele cumulou em si mesmo milhares de finas orientações, desejos e sonhos, todo um corpo, hipoteticamente belo, que se deformou com o seu destino perecível, interrogado por pincéis perversos ou lúcidos como os de Bacon, Goya, Soutine, Munch, entre muitos outros e até aos exorcistas que se serviram das máscaras africanas.
Quando a última depuração esvaziou a tela, sugerindo um ponto final de difícil inversão de marcha, o milagre aconteceu, os homens reivindicaram a riqueza do seu elemento cultural: e, embora não recuperassem os panejamentos do barroco, as distorções do expressionismo, utilizaram de novo os pincéis e os pigmentos, sem perder de vista novas ferramentos, como a fotografia e a informática. O Hiperrealismo, disseram alguns, foi um episódio sem importância nem verdadeira profundidade ou questionação. Mas, como sempre se tem verificado, não é bem assim: os hiperrealistas colocaram-se à frente e atrás dos realismos de cunho expressionista, e o gosto pela pintura em si, de novo comprometida, foi reaparecendo um pouco por toda a parte, a retomar caminhos já trilhados: pintar exigia outra vez uma paixão avassaladora, cujos impulsos se carregavam do sentido do métier, em certos instantes convocando as escritas da inocência ou da infância. O acto de representar, mais ou menos artilhado com novas próteses, voltou a inundar os espaços onde a pintura se pensa, expõe e se manifesta. E a verdade, apesar de algumas excepções alucinantes, as técnicas, apoiadas ou não, mostram agora o prazer de todos os recomeços. E as formas ressuscitaram para esse domínio pujante com o seu carregamento de garatujas e olhares de Rembrant. As duas coisas passaram a poder coexistir no mesmo espaço. O nosso desejo de visitação de todas essas manifestações permite-nos vereficar a mutação das figuras, justamente porque, entre o dom reconquistado da escrita primitiva, cada vez mais as telas estão povoadas de muitas coisas vindas do real ou da infância, óbvias, enigmáticas, ou anunciadoras do futuro. Podemos assinalar, num caso, «esta figura corresponde ao número 3». Depois não sei: «talvez certos círculos me lembrem os bonecos do meu filho, quando era muito menino. E ali, à direita, reconheço um bicho rastejante, visto de cima, e certamente uma velha casa, de madeira, meio arruinada. Então poderei deduzir vários tipos de lixo, talvez voando, à esquerda, uns após os outros, como fotogramas de um filme amador em Nova Orleães.

terça-feira, dezembro 15, 2009

TRANSPARÊNCIAS DE UM AMOR SEM NOME

cartilagens transparentes na oficina desarrumada
Rocha de Sousa


As coisas aparecem assim, como nas casas dos espíritos, um pouco sem nexo, mas batendo certo no chão de cimento, conforme o alfabeto. Quer dizer o seu nome marcando primeiro letra a letra? Uma pancada sim, duas pancadas não. (Ouve-se uma pancada.) É sim. Vamos: A, B, C, D, E, F, pancada. Vamos confirmar para F. Uma pancada sim. (pausa. Ouve-se uma pancada.) A primeira letra do nome é um F. Alguém se lembra de um familiar ou amigo com um nome começado pela letra F? (Digo eu, então) Fui, durante muitos anos, amigo e cliente de uma pessoa cujo nome começava por F. (Pausa) Quer dizer o nome? Frederico. Pensamos que a pessoa que nos visita é o Frederico. Vou usar os meios: Se o seu nome é Frederico, use apenas uma pancada. Se for apenas uma pancada, estaremos na presença do senhor Frederico. Concentremo-nos. Uma pancada para confirmar a presença do senhor Frederico. Ouve-se uma pancada forte.

Era ele, num dia sombrio mas sem chuva. Chegara pelas oito horas e ficara, como sempre, a descansar um pouco, dormitando sobre o volante do carro, já estacionado muito perto da oficina. Por volta das nove horas, quando era mais provável entrarem os primeiros mecânicos, dois deles estranharam a oficina ainda não estar aberta. Trocaram impressões sobre o facto, e um dos rapazes achou que o Frederico estava atrasado, nada mais, por isso deviam abrir a oficina e retomar a rotina. Um hora mais tarde, o Frederico não aparcera. De casa, para onde telefonaram, a mulher confirmou que o marido saira como habitualmente, cerca de vinte minutos antes das oito. Os homens entreolharam-se, foram até à porta, e poucos instantes depois descobriram o carro, quase à esquina, reparando que o Frederico estava aconchegado ao volante, como fazia habitualmente, para descansar um pouco antes de fazer a abertura. Foram lá, bateram no vidro, para acordar o patrão, mas ele continuou na mesma posição. Abanaram o carro, uma, duas, mais vezes e já atormentados. Nessa última tentativa, o corpo do senhor Frederico escorregou para a esquerda e eles viram e sentiram claramente como a cabeça do patrão e amigo tombara para a esquerda, batendo no vidro. Não estava a dormir. Foram buscar a chave de reserva e abriram a viatura, procurando agarrar logo o corpo do amigo, corpo lasso, rosto pálido e frio, corpo logo nas mãos dos homens e um grito para telefonarem para o 112. Estava morto e os meios de apoio à vida limitaram-se a confirmar esse facto e a guardarem o corpo numa lona apropriada. O que mais espantou a rapaziada e os vizinhos foi a decisão dos serviços de auxílio abandonarem o corpo ali, dizendo que não devia ser removido por ninguém antes da chegada do delegado de saúde. Por ali se conversou, lembranças comovidas de um homem ainda novo, honesto, trabalhador, que geria a oficina como uma cooperativa bem fraternal. Grande conheceor das mecânicas de vários tipos de carro, os seus diagnósticos eram infalíveis.
Quando, dias depois, entrei na oficina, conheci a filha do Frederico, dinâmica, pronta, já a gerir o negócio tanto quanto possível segundo o critério do pai. Das imagens que trouxe para aqui, só uma é pintura de pequeno formado, feita a guacho no interior da oficina, apontamento sem força nem brilho, embora capaz de sugerir a atmosfera daquela cave. Andei por lá, fascinado como nunca, a tirar fotografias de certos pontos ou postos de trabalho, tudo numa tontura de coisas sobrepostas, ainda por arrumar, roldanas, elevadores, vidros foscos entre faixas para operações mais delicadas, um batimento ao fundo, imagens trémulas, uma fotografia sobre a anterior na primeira máquina que tivera, comprada em Angola, e cuja passagem manual do filme, parando com um estalido, permitia enganar as normais funções da cadeia de janelas, fotografando assim, coisas sobre coisas, sombras, luz artificial de mistura com a que vinha do portão e das janelas altas - e assim o voltei a fazer anos mais tarde, a sério, em nome da arte e do ausente/presente Frederico.
Frederico, lemras-te do meu primeiro carro, um austim 850? Deixaram-te abandonado na rua e ali estiveste à espera de uma palavra da nossa parte, capaz de explicar o que o tempo faz às coisas e às pessoas. O tempo não apaga as imagens, nem os afectos, nem os actos solidários. Só a morte apaga tudo isso, todas as nossas horas, a nossa arte, os nossos amores. Impunemente e sem a menor utilidade.

terça-feira, novembro 24, 2009

FEIRAS DE ARTE E BRINQUEDOS NÓMADOS

fotografias de Rocha de Sousa

Ontem fiz referência a um texto de Hugo Canoilas sobre a exposição «Atravessando Fronteiras», dedicada aos anos setenta e promovida pelo Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. Hoje, ainda perante um outro texto do mesmo autor («Vem aí a Feira») passo para este espaço, acompanhado de imagens de vários feirantes que registei num grande evento no Algarve. Vou assim citar amplamente Hugo Canoilas, a bem de uma importante causa que envolve a arte actual portuguesa e a submete de forma tosca a mimetismos de olhos desvairados vindos da Alemanha ou de Espanha, visitantes de consumadas feiras de arte, a primeira das quais sucedeu em 1970, Colónia, vítima de grande contestação por artistas como Wostell ou Joseph Beuys. Segundo o articulista aqui evocado, aqueles e outros autores sentiam que a «feira» era um caso de «constrangimento criativo e de práticas de exclusão injustas». Tal sentimento parecia, diziam eles, «trazido por esta moda», apesar dessa espécie de bolsa das artes revelar a abertura de maior número de galerias na Alemanha. Apesar dos «poços de ar» verificados noutras circunstâncias, esta febre afinal mercantilista fez alargar imenso o número de galerias entre os anos 60 e os meados dos anos 70: apenas 400 espaços, grande variedade de produtos como é próprio de qualquer feira que se preze. Haverá nesta realidade um factor socializante em termos de distribuição, o que, na altura, se ligava a algumas propostas mais conservadoras e, naturalmente, a um grande aumento dos valores de mercado. Hugo Canoilas acentua, a propósito da natureza de certas tipologias de algumas vertentes artísticas, o curioso facto de autores como Blinky Palermo e Gerhard Richter «serem absolutamente pró mercado em reacção às práticas conceptuais vigentes (quando a arte conceptual era no início não mercantilizável)». Vivia-se entretanto a ideia envolvente (que alguém espreitava da margem da história) de que estes eventos talvez permitissem manusear trabalhos, negociar com com artistas e marchands, tendo em conta igualmente a conhecida sensibilidade dos clientes e o seu modo de comprar. Agitando produtos e lugares, ainda se pensou que a feira poderia alcançar um importante significado para os homens do ofício (artistas e vendedores a retalho). Perante a actual Feira de Lisboa, Hugo pergunta-se com pertinência: Será que, em Portugal, ainda não se aperceberam que este modelo de feira é um «nado morto»? É, com efeito, problemático este alinhamento (pobre) por exemplos exteriores que já mudaram de figurino, apelando à inscrição da cultura e contra a menoridade dos objectos. Se as galerias investem muito dinheiro na apresentação da feira, o certo é que o nível da visibilidade alcançada não escapa ao ruído envolvente, aos equívocos de bem parecer, à cedência ao público arreigado e aos imperativos dos habituais ou duros coleccionadores. De resto, procurando estratégias «adequadas» para este tipo de acontecimento, ao certo quase nada interdisciplinar, os galeristas ensombram a desejada «celebração da arte contemporânea», o que deveria convocar ambientes festivos, o gosto pelo debate sobre o papel da arte no mundo de hoje, inclusivé envolvendo todos os agentes (artistas, galeristas, coleccionadores e público) numa frutuosa troca de ideias, entre saudáveis polémicas e possíveis consensos. Com leituras também, a relação do livro, da sua linguagem perante outras de suportes e factores integrantes diferentes. E como o verdadeiro cinema faz falta nestes casos, mesmo que para tanto as barracas tivessem que fechar os varandins, deixando ao relento os dados físicos de algum marketing..Hugo Canoilas diz ter verificado que a feira de Amsterdão, ao comemorar os seus 25 anos, solicitou a todas as galerias a apresentação de exposições individuais, facto que aconteceu e conferiu um novo interesse às acções correntes. «Foi de facto - diz ele - uma das melhores feiras que vi»; em experiências assim ganha a vontade de participar e os termos de legibilidade. Há outros exemplos de outras soluções, como em Viena e o convite a autores de Leste cuja produção, espectro de dados inovadores, grangeou um entusiástico interesse do público. Viena vai mais longe, convida curadores de prestígio, uma classe que parece seguir o antigo caminho da crítica - o de se substituir aos próprios artistas, gerindo mediatizações e deploráveis ostracismos. Um dia, estou certo disso, este poder institucional, protegido nas respectivas instâncias, terá de ser melhor enquadrado e trabalhar com outro espírito. A arte, esquiva a dogmas e decisões absolutistas, ela sim, ela é que faz a sua verdadeira história.


Cito de novo, ao correr das palavras, um trecho de Hugo Canoilas (e ele que me perdoe trazer para aqui vários inserts da minha visão deste assunto, melhor: deste tema por debater: «Existe também um divórcio entre as instituições portuguesas e a feira. O que torna tudo mais amador e de menor qualidade.» As galerias e aquelas entidades acolhem entre si as incertezas e a responsabilidade pela débil proliferação da arte portuguesa na sociedade. «Não se compram espaços nas revistas, patrocinando mas também divulgando actividades e transformações neste domínio. Não existe aliás qualquer tipo de estratégia para colocar definitivamente os termos Arte Conteporânea na própria língua portuguesa, como tem acontecido com o Design e a Moda. A arte praticamente não chega à televisão; ou, quando chega, aparece mediada. Chega sempre em segunda mão.» A verdade, digo eu, é que a lógica mercantil das televisões atingiu proporções verdadeiramente absurdas, acentuadas, aliás, pela manipulação do público através de formas de espectáculo indescritíveis, todos os canais vestidos de igual à mesma hora. De quando em quando, anos talvez, lá vem uma espécie de «curador» curar de um artista já assado e condimentado. Excepções só no erudito «Câmara Clara» (bem longo) e no «debate» futebolístico (bem mais longo). Há quem diga que é melhor assim, pois uma acção em terreno movediço sai fora dos padrões de audiêncicai e vai cair nos mesmos, sem risco nem contraditório. E no entanto era perfeitamente exeqível (competitivo, como dizem) um programa sobre várias artes, cada bloco de 50 minutos proposto por um agente cultural de interesse reconhecido por uma comissão prévia. Augusto França pode seguir-se a Leonel Moura, Paula Rego tratada por Rui Mário Gonçalves, Nuno Portas dissecando a obra em geral de Siza Vieira. Nada disto tinha de ser curado por curadores. Temos muita gente bem apetrechada para dirigir e orientar projectos assim. Vai sendo tempo de pensar a alma do país e a moodernidade que nele se gerou para além das chamadas «imagens convenientes». Os artistas que ganham o primeiro galão (mesmo só como alferes) tendem a ligar-se a diferentes tutores, tribos, lobbies, garantindo a sua colher de sucesso nacional e internacional. As encomendas que venham, eles não as procuram. Por isso abominam associar-se, criar organismos representativos deles: isso dá trabalho e obriga a compromissos rapidamente queimáveis pela inveja latente no burgo. Talvez por isso é que eu fui obrigado a ouvir o membro de um governo provisório, quando se instituía a Faculdade de Belas Artes da U.L., que a nossa pretensão era fútil e sem fundamento: «o país não precisa de artistas», disse o homem, um pé institucional sobre a onteria do 25 de Abril.

Na feira que visitei, colocando-a ao lado de de Lisboa, os brinquedos de madeira fecham uma sala. E não posso deixar de me lembrar que um artista português usou, nos anos 70, este brinquedo do pássaro com rodas e cabo em grande quantidade de uma amável e repousante instalação.

os velhos brinquedos de uma geração ainda não perdida

terça-feira, novembro 10, 2009

TRANSPARÊNCIA E UM RELÓGIO DE HORAS



Água verde mas límpida.
Translúcido espelho amarrado
ao muro de pedra já ferida.
Velho espelho em casa da avó,
tão velho como o relógio centenário
preso à parede, rachado e só,
sempre a bater as horas
sobre um obtuso relicário
no qual se eflectia
o arrastado ranger da corda,
essa espécie de coração
cujo rumor de concavidade
se faz sentir no quarto exíguo
pelo frio de pedra
ou pelo circular rigor do tempo

sábado, outubro 31, 2009

PRESENÇA E APARÊNCIA NA FORMA DO VISÍVEL


pintura | técnica híbrida | rocha de sousa

Achei aquela frase num simples livro de Educação Visual. Acharia outro, se tivesse vontade para procurar, entre as imagens quotidianas da metamorfose do mundo: gente e coisas, o lixo disfarçado no desvão dos cafés ou das vielas irreparáveis. O livro era pequeno, pouco ilustrado, falando de Kandinsky e Paul Klee, como não podia deixar de ser. Os exercícios de pintura de Paul Klee pareciam lições práticas, sustentadas no olhar, ensinavam entretanto a ver a ordem das formas e das cores no espaço, os valores, os ritmos, a textura de uma simples mancha aguada. Em certo sentido, era quase tudo o que havia para aprender, começando no ponto e na linha e na sua diversa multiplicação. Do visível até à pintura que dele em parte se apropria vai uma grande distância, mesmo quando não parece: quando, por exemplo, os olhos de um retrato realista destilam lágrimas ou alguma viscosidade emergente. Coloquei este pequeno trabalho aqui, sustentado por meios electrónicos, mais como uma espécie de electrocardiograma, folha de registo, linhas e fundos, formas e figuras, desenho do que me faz pulsar, qual o estado em que se encontra a minha capacidade de ordenar a desordem, de chamar imagem ao real transformado, a um espaço sobrecarregado, em suma, de sucata inominável. Vou e venho, vejo as marcas consistentes e embrulhadas nesta maneira de ver as coisas. E penso sempre: talvez fosse bom que uma anunciação deste tipo se fizesse a cru, breve e secamente, aberta em pontos, duas linhas, a mancha do mar ou a imitação esboçada de três pequenas nuvens. Mas eu gosto de adjectivar, não sei porquê. O problema pode estar na própria língua, atrás de semânticas austeras, em textos exemplares e sintéticos. Na pintura as coisas seguem também, por outro lado, o bater do coração, o deslizamento das tintas, riscos reais e virtuais, dores de quem não chega ao ponto exemplar com que sonhava, fechando-se como um bicho de conta, a espreitar milagrosamente a primeira figura do que deveria ser uma multidão, os crentes gemendo passos circulares em Meca, os peregrinos amontoados em Fátima, pés a sangrar, iguais aos de todas as batalhas, e a praça do Vaticano coalhada de cabeças, só cabeças e sobretudo escuras, pontos brancos aqui e além, o marulhar das ondas distorcido à escala tímbrica das rezas e das canções menos ásperas que se ouvem nos grandes espaços do espectáculo de massas. Não era disso que eu queria falar aqui. Queria apenas lembrar, pela suave sabedoria de Klee, que todas as vertentes da sua geometria plástica podem ganhar outra configuração, perdendo a transparência em nome da opacidade fracturada, fósseis aqui e além, ferros, peças sem contexto, armadilha de asas pela frente de uma atmosfera em azul forte, nenhum realismo na realidade alcançada, porventura legível aqui e além, presumível como resto, espaço onírico, reinventável através da análise ou do sonho, verdadeira porque sim, operática também, pânica igualmente, algo daquilo que sou em mim e nos outros, vazio às dez horas da noite. De madrugada a mesma coisa será diferente. E haverá no céu três pequenas nuvens.

terça-feira, outubro 27, 2009

A DEVASTAÇÃO DO IMOBILIÁRIO QUALIFICADO


Aqui ficam para memória futura os primeiros sinais de devastação de um prédio urbano das primeiras décadas do século XX, recoberto de azulejos, cerâmica de muito boa qualidade estética e funcional. Foram longos anos de ataque a esta fachada, zelo para hecatombes sociais, icrementado a partir da altura em que um velho chefe de família, rodeado pela mulher, duas filhas e um filho de maior idade, sucumbiu inesperadamente. Vieram outros anos, outros ventos, uma das filhas morreu ao arrepio do destino e a senhora viúva ponderava como gerir a cada vez mais dramática ausência de meios. Havia gente nas águas furtados, creio que um casal jovem e uma avó vigilante, recortada por vezes nas janelinhas alcandoradas, simultaneamente devolvida da sombra pelo seu reflexo num espelho ao fundo. No piso junto à rua, à direita, nunca percebi quem aí habitava: porque, embora as janelas estivessem tratadas e com cortinados de renda, ficavam sempre fechadas. Percebi uma vez que havia lá alguém, porque estava perto e o carteiro bateu para lá e esperou muito tempo. Depois, no vão da escada, foi um murmúrio surdo e uma tosse rápida. De resto, o lado esquerdo esteve quase sempre ocupado por uma loja de ferragens, à qual se seguiram lojas de artesanato e biscatos em papelão, colagens, animais afectuosos, de cartolina, para meninos da escola.
Em cima, a desertificação começou pelo uso que o filho mais velho da família destroçada foi dando aos quartos, sala e saletas, um quintal que nunca vi, com ramagens de aguarela. O ataque continuava, nenhuma classificação fora conseguida, ou critério de bem público (que o era) e muito menos quando a avó das águas furtadas morreu, dias no quarto, depois um funeral esquisito, acompanhado por gente jovem, mal vestida, duas moças magras, crianças recentes, de olhares já indiferentes e breves.
Tudo pronto: os homens dos papéis e da ganância lá conseguiram a licença de demolição. Nem uma meia dúzia de azulejos, para amostra, sobrou da insanidade vandalizante. Deitar abaixo é uma coisa. Arrasar a arte e a nobreza dos adereços é outra. Ninguém veio ao funeral da amável moradia que conheci durante quarenta anos. Vim eu, olhando da minha própria janela.
As duas imagens seguintes, muito belas à sua maneira, corresponem ao fundo da casa, já esburacado até às traseiras da garagem da outra rua. Oiço as miúdas de antigamente e lembro-me do senhor de cabelos brancos e olhos claros mas avermelhados. A menina mais nova, magríssima, a comer um gelado. E o gato. E aquela moça angular, de camisola sem mangas, que aparecia na janelinha direita, assente no telhado. Costumava passar discos dos Ping Floy e cuidava de um cato arrumado no canto do pequeno varandim.
Nunca mais recebi sinais dali, da menina e do rapaz, da mãe dele que acabara por casar com um engenheiro civil, longe daqui. Mas quem sabe da folha de serviços do engenheiro?



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Máquina trituradora, ficção na sua forma e no seu roncar. Racha tudo, parte, arrasta para a direita e para a esquerda, entulho a sobrar. Quando vem a noite, o braço de ferro tomba. O monstro acomoda-se, silencioso, sobre o entulho. Dorme.














Janelas partidas, vidros estilhaçados, uma geometria suspensa, abanando em melancolia e já no patamar do desaparecimento. Há muitas inexistências entre as novas velhas existências que fazem chão sobre o chão desaparecido.













A pata da máquina sobre os destroços. Nem o menor sinal da história humana aqui contada. Nem um simples resto de livros, cadernos, uma jarra partida. Madeiramentos soltos, já sem origem e de destino eventualmente incerto. Os homens não sabem como crescer, porventura como olhar cada paisagem devastada, coisas e espaços que podiam ser futuro de outra morte.

segunda-feira, outubro 12, 2009

ORFANDADES E SOLIDÕES, O DESERTO


Donde vieste? De longe, da Fragura, é da praça que a gente vive. Vives como, assim, e os teus pais? Já se foram, o pó de pedra deu cabo deles. Mas vives sozinha? Não, nada disso, cuido das minhas irmãs e trato da casa e arranjo a terra. Duas irmãs? Sim, a Esmeralda, que é bem mais, nova do que eu, e a Bendita, fez há pouco dez anos. Vão à escola, as tuas irmãs? E tu? Só a Bandita é que anda na primária, vai de manhã cedo e volta pela tardinha. Ainda nos ajuda um pouco, mas tem de fazer as contas e as letras, adivinhar coisas. E ela tem transporte para a escola? Ainda houve tempo que usámos o burro até meio caminho. Mas no Inverno ainda era pior e o burro, coitado, acabou por morrer. Ela vai assim, a pé, tem umas botas de borracha, roupa, o chapéu de chuva que era do meu avô. Já se habituou e gosta de professora. São muitos alunos? Já foram, já foram. Agora são onze e por isso não acabaram com a escola, como no Carrascal ou na Azinheira de Baixo. E tu, tu nunca estudaste? Aprendi a ler enquanto o meu avô foi vivo, ele tinha a quarta classe e gostava de ler jornais, mesmo atrasados, e havia um que era da freguesia, todo sobre as sementeiras, o estado das terras, os mortos. E a Esmeralda? Essa não tem nada, não pode, nasceu com pouco tino, com os olhos em bico. Mas é boa menina e sabe limpar, lavar, ajudar na cozinha. Então tu é que fazes o papel de mãe? Papel não, mãe tal e qual. As minhas irmãs precisam de mim. E têm que ser orientadas nas coisas, na rega, no cuidado com o transporte da água, na comida. A Esmeralda sabe os caminhos aqui em volta, os mais próximos, e vai buscar pão ao Forno do senhor Estorninho. Ele é nosso amigo. Por causa dele é que temos galinhas e sabemos de outros amanhos. Que é que tu estás roendo? Não sou rato, isto é oferecido pelo senhor Estorninho, parecem bolachas, pãezinhos, algum chouriço, é um grande amigo. Já levou a minha irmã Bendita ao médico, na Azinheira de Cima. E aonde arranjam dinheiro para o sustento? Pois então, como há-de ser, é das coisas que tiramos da terra e vendemos aqui, os ovos, alguns serviços que nos pedem, e de uma pensão que os senhores da Segurança Social nos mandam. É pouco, mas é o que resta da doença do pó que matou os nossos pais. E afinal tu, não me disseste o teu nome. Eu sou a Esperança.

terça-feira, setembro 29, 2009

METAMORFOSES DE UM VELHO MURO LATERAL

foto montagem com colagem de rocha de sousa

Tu já viveste menino na calha de pedra onde subsiste este muro. Um branco sujo, cal outrora, encobria ruínas de edifícios obscuros, sem rosto nem fim. Esse branco, através do qual muitos ossos pareciam emergir fantasmas, enquanto a chuva descarnava areias, tornava visíveis veladas figuras de meninos e meninas, velhos encolhidos, ferros ou próteses oxidadas pela intemporal carga das argamassas. Armaduras de Ucello, pareciam e talvez fossem, guernicas depois, recortes de patas de cavalo e urros durante a morte, apesar da lâmpada suspensa do tecto do mundo, porventura o céu iluminado pelos últimos gritos, o olhar dos mortos. Tu vias essas coisas como? E fotografavas o quê, além das rugas e fracturas da superfície do muro? Eu sei: foi no tempo em que repintaram aquela longa empena de vermelho saguíneo, visão de todas as batalhas, borbulhas submersas nas novas toalhas deslavando-se, coisa de tanta areia imprópria, em breve feridas explodindo sem que ninguém reparasse na hora. Sim, claro que podes redizer: surgiam também órbitas como buracos escuros pelos quais se podia espreitar a suspeita presença, no fundo, de ossos, tíbias, mãos de alumínio, uma espécie de revelação do enterro de guerreiros biomecânicos, sem origem nem vitória visível, mesmo quando tudo não passasse, em sonho, de ortopedia superior, articulações ligadas a hipotéticos nervos e músculos de cetra gente, talvez vagos indícios de seres impossíveis ou míticos, esmagados no impiedoso emparedamento. Nada disso pode ser real, tu bem sabes, nem o próprio Universo, nem o fim nem o princípio dele. Alguém, em todo o caso, tinha medo de que se desnudasse o manto que encobria origens difusas e memórias insustentáveis: o muro voltou a receber baldes de tinta vermelha, menos definida, mas nenhuma sombra sobrou. Não se ouviu nenhum grito, nada de nada maculava a tinta ainda fresca. Todos os cavaleiros de Ucello haviam desaparecido sob aquela lisura afinal quente, não restavam sinais de ossos ou cabeças escondidas em elmos tapados de ferrugem. O muro imenso, cada vez mais tosco e anos depois abrindo outras fendas, é apenas visitado, nas tardes de verão, por pardais que ali fazem curtas escalas em direcção às árvores, ninho da noite. Hoje só podes fotografar esta última ambiguidade, brancos e argamassas enfim emergindo definitivamente por sua conta, cinzentos inexplicáveis, polpa orgânica fingida e meio apodrecida, natureza morta assim, inteira, sem vestígios além do que parece velho ou de configuração abstracta.
É outra escrita, mas igualmente uma escrita indecifrável.

quarta-feira, setembro 23, 2009

MEMÓRIA REVIVIDA DE UM TANGO PERDIDO


f0tos obtidas da internet

A esquina, o canto, o ângulo recto de um chão enviesado, o vermelho e o negro, como em Stendhal,
talvez a pena de ferro fino crispada sobre o papel poroso, todo o ruído num só fio rasurado - e a dança procurada dos dedos invisíveis, apenas o aparo em jeito de lança antiga, preto, branco e vermelho, memória revivida de um tango perdido, aqui encoberto pelos fragmentos minimalistas das suas cores emblemáticas, românticas, a prumo ou na horizontal, a escrita cursiva, itálica, bordando aluns limites escuros, lisos ou texturados, e ainda os panos dos teatrinhos de zarzuela, flamengo em Granada, as praças de Buenos Aires, desertas sob a bota militar, gente desaparecida, assassinada, corpos cinzentos atirados para as valas comuns que só há pouco as mães dilaceradas desobriram, impossibilitadas de encontrar nas fardas e nos ossos, o rosto forte dos seus filhos. Praças amplas como as de Chirico, atravessadas por sombras negras, oblíquas, ameaça visual que uma menina, inocente, não conhece, fazendo rolar o arco sob os contrastes da luz branca, solar, e a sombra côncava debaixo das arcadas, como acontece na Lua que já sabemos como é, nem plácida nem escura: os poetas cantavam-na, em tabernas e espaços nocturnos, ouvindo os sapatos das mulheres, vendo as blusas vermelhas, os seus folhos negros, uma coxa avançando, branca, e logo se escondendo, enquanto as botas dos homens, pretas e luzidias, traçavam o espaço e batiam no chão, num rodopio do sonho e do desejo, e em tudo isso afinal, uma geometria secreta como a que se expõe e se oculta nestes planos negros, nestas faixas vermelhas, no brilho branco das camisas, equilíbrio ternário que submete o nosso olhar à vertigem das curvas, à doce violência de um enlace pela dinâmica, corpos em contra-luz, negro partilhado com o vermelho, branco com o apagamento do gesto petrificado. Também nestas telas o mundo se petrifica e as diagonais sugerem a ordem pelo absoluto, são igualmente absurdas na inutilidade do seu espectáculo mínimo, só elas fingindo uma rasura textural em certas arestas, espaço do silêncio entretanto, a completa imobilidade, o completo esquecimento das grandes bandeiras totalitárias.
Se Chirico ressuscitasse e viessa visitar estes espaços, na dureza de quase nada, haveria de desenhar uma menina que ele criou e ali costumava passar, o aro de metal barulhando devagar no empedrado de outrora.
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texto de Rocha de Sousa, partilhado com duas pinturas de Miguel Baganha na exposição em Setembro, galeria Prova de Artista, e uma sessão de Tango, 2009

quinta-feira, setembro 10, 2009

UMA VIDA ESCASSA PARA TANTA MELANCOLIA



Já não tenho fotografias tuas na velha casa do sul, a não ser esta em que pareces muito novo. Era o teu rosto na altura em que casaste com a mãe. Sempre me disseram isso, desde os meus primeiros passos pela escola. Que fizeram das tuas fotografias, aquelas de corpo inteiro, com uma bengalinha a fingir e polainas de camurça nos sapatos envernizados? Não vi nada dessa época, ao vivo, só achei para meu consolo as fotografias de família, belíssimas, aquela rapariga ao mesmo tempo singela e notável, meias de lã, sapatos de fivela lateral, um vestido muito fino, de cintura descaída, em cores esplendorosamente diluídas. E tu, mais tarde, com ela já mudada para senhora, um inverno cinzento por cima das cabeças, um chapéu de fita em ti, uma gola de pele nos ombros dela. Havia, cobrindo as vossas silhuetas, uma ligeiríssima velatura sépia, jeito do fotógrafo assaz famoso ou sinal da passagem do tempo que tem essa propriedade mágica e branda de queimar os ingredientes da representação assim.
Muitos anos depois, lembras-te?, a tua fabriqueta de rolhas ficou a viver das sobras, entre farmácias leais que produziam alguns remédios e a protecção daquele homem silencioso, trabalhador sem mácula, que se chamava Juiz, José Juiz, e tinha de facto uma surpreendente noção dos valores da amizade, da partilha, da beleza dos caminhos campestres, embora não soubesse ler nem escrever. Foi uma época triste mas votada à esperança pela poética lírica dos teus versos. Era, na humilhação da perda, a possível sobrevivência do espírito, os passos pisando veredas junto ao rio, papéis escritos e guardados na albibeira do casaco, um chapéu mais moderno e mais feio na cabeça, com a tal fita no tom próprio apesar de indevidamente baça, cinzenta como os altos muros das velhas fábricas corticeiras, mortas pelo fogo que a crise financeira espalhava pelo país, sombra, aliás, da política e exportação da cortiça em prancha, portanto sem a manufactura portuguesa, ao acaso de quem herdara milhares de sobreiros, assim enriquecendo mais depressa, delfins prosaicos, caçadores arrogante a fingir nobreza genealógica.
Agora posso ver-te daqui, através da derradeira imagem, sentado nos muros baixos a montante da lagoa que o rio nos emprestava em certas épocas do ano para um repouso tardio, as lágrimas dos chorões quase tocando o espelho móvel da maré baixa. O sol batia no teu rosto, enchendo-o de luz, olhavas em frente, na direcção da foz ou daquele horizonte que recebia a queda do balão redondo e luminoso, alaranjado, ao ritmo da temperatura lenta do começo e do fim de cada Verão. Toda a paisagem vista nessa atitude contemplativa, descomplicada como a voz de um poeta guardador de rebanhos, Alberto Caeiro, ou como a de um outro artista de ninguém que dizia sentir a sua alma voando de mundo em mundo e o coração preso à terra, bem lá no fundo.
José Juiz tinha um cão que o acompanhava pela cidade. O homem levava as encomendas ao correio e o cão deslocava-se a seu lado, numa agitação das pernas em frente, para acompanhar a grandeza plácida do seu senhor, passos maiores. E num desses dias, já imprevistos, José Juiz, grave, aproximou-se de mim, tratou-me por menino, como sempre, e disse apenas: «menino, olhe bem para o seu pai».
Foi só desta maneira, nada antes, nem com os sonhos premonitórios da mãe. Não me fora apresentada uma sentença, parecia um aviso apropriado, e logo a cabeça do José a baixar, a mão acenando pendida, o corpo a enfiar-se na viela a que chamavam rua Nova. Então olhei para ti, pai. De manhã cedo, estavas a sair da casa de banho, com uma toalha em volta do pescoço, e disseste «olá, tão cedo» e eu percebi o teu sorriso, esbocei um «bom dia,pai», enquanto tu fixavas os olhos nos meus, boca entreaberta de haver falado, boca tão pouco enviesada mas enviesada no canto esquerdo, expressão de súbito tímida, de desconforto ou pudor -- «menino, olhe bem para o seu pai». Foi o dia em que soube que ias morrer.



eu sei, era com este objecto que tu espreitavas as rimas
dos teus versos, as facturas de pequenas encomendas e
a pureza das rolhas, quando a sua matéria se dizia sexta.

quarta-feira, agosto 26, 2009

HORA DE SOMBRAS OU MADRUGADA DE MORTE


fotografias de Rocha de Sousa

Foi no tempo do Melícias, estás ou não estás lembrado? Tu andavas aluado por causa da maluca da moça do Entradas, a Vergina, mas os homens vieram correndo, a apitar, pendurados das carrinhas, dos carros, das mulas, e gritavam para a gente se chegar de lado que vinha aí mais pessoal. Então já se ouvira dizer que os cães haviam ladrado, outros uivado, ficando em silêncio durante mais de uma hora. Não se ouvira nada de nada nessa hora comprida. Tu tens que estar lembrado, homem, eu bem sei o que digo. Antes de tudo acontecer os cães ladravam de hora em hora, mas no intervalo não havia grilos, nem ruídos de outros bichos, nem deslizes no restolho de pássaros atrevidos com o medo, nenhum deles saía das tocas. E havia aquela luz coada, uma coisa entre a noite e a madrugada, um peso no respirar. Foi por aí que se ouviu um terrível sopro, grandioso, vindo além do cerro, e a terra começou logo a bater pedras, mais pedras, rolou muita grés da parte seca, perto do mato, e daí a nada abriram-se fendas fundas, negras como a noite. Os telhados da Mariazinha cairam num instante, então sim, as galinhas quase voavam a cacarejar, e a moça também, a correr, a correr, os cabelos pretos como gavinhas abanando estouvadamente, cadelas e cães, até ratos. Toda a gente veio para a rua, ali na praça, e houve quem mijasse ao ver o alcatrão a quebrar, de longe as sirenes, de longe o roncar das camionetas, os bombeiros, a malta da cortiça, não havia ordem, a terra parecia ferver salpicando bolas das entranhas, umas pedrinhas meio quentes, e depois chegou a guarda para evitar a malandragem de se aproveitar de tudo, das portas abertas, dos vidos partidos, das galinhasa correr, Vergina a chamar por ti, perdera a vergonha, dizia palavrões, malvada, malandros, quem é que reza agora, senhora?, agora é só fugir, fugir para os descampados, porra, lá desgraçam os barros do meu pai, barros, sim, muitos barros já feitos e pintados e cozidos, prontos para a merda da feira. Era um circo do mal, um circo do inferno, cinco minutos de cagaço e horas e horas aí por esse mato fora, pelos casebres, a salvar gente, a levantar vigas, a escorar tectos e paredes, e tudo acabava por cair, esmigalhando as mesas, candeeiros, cadeiras, sacrários, gatos e cães. Vai lá enganar outros, com essa do não foi bem assim. Dessa maneira, nada de nada de como a gente vê e diz. Vai perguntar à Vergina.





Olha, olha, então eu não vi?

Nada de nada, nunca. Vai perguntar à Vergina. Até se mijavam, agarrados
uns aos
outros, mesmo junto ao café do Almerindo.

Quando amanheceu, devagar, ninguém arredava pé.
Espreitavam os que podiam e cortavam a garganta de tanto gritar.

Deus? Deus estava a dormir, nunca dá por nada. Nada de nada