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domingo, fevereiro 04, 2007

FFRAGMENTO DE «A CASA REVISITADA»


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Tento esvaziar a primeira gaveta do primeiro móvel à direita da porta, na sala que servira de escritório. Escritório depois destituído de funções, biblioteca sem ordem, arrecadação de caixas e selos, ossos antigos, candeias árabes ou sala de estar ou sala de trabalho -- retiro de desenhadores, leitores prov´vae e poetas de circunstância. Avanço dedos indecisos no arquivo nostálgico dessas idades que se perdem na desordem, fabuloso nexo, por outro lado, de múltiplos desarranjos criadores, e os maços de fotografias emergindo na superfície cheia como um lixo branco a crescer. Meninos nus, deitados sobre pedestais de seda, misturam-se com rapariguinhas de chapéu branco e laçarotes cinza, ou com fotografias de famílias inteiras expostas de frente, desbotadas pela lenta cremação das matérias modeladores do visível, agora quase flutuando numa espécie de queimadura feita pelo obturador demasiado aberto -- olhos negros suspensos em véus mal definidos, brancos de ausência, alto-contraste a negro dos fatos, as polainas dos homens tornando autónomos e caricatos os sapatos sem corpo, sem chão, reduzidos à perspectiva do escorço, ou laterais e solitários ao lado de bengalas presas a mãos invisíveis. Deixo cair montes destes fantasmas sobre o pó do tapete, procuro com alguma impaciência o fundo da gaveta, leio de raspão sonetos que passam, pateticamente líricos, e espreito caixas de cigarrilhas podres, acabando por esgaravatar, munido do corta-papéis, os papéis sedosos e dobrados que encobrem os últimos testemunhos, cartas soltas, postais, um barco enorme todo furado de vigias, carregado de formigas escuras, de acenos, de serpentinas, de cordas pesadas. Apesar da diferença festiva, este navio faz-me lembrar as partidas dos paquetes para África, nos ans sessenta, sem alegria nem serpentinas, muito mais cheios de silhuetas, três mil soldados de cada vez, todos para Angola e em força, as malas, os sacos, os gritos mutilados, intérpretes depois por muitos natais que a televisão transmitia de forma massificada, banalizante, «um adeus português, mensagens a preto-e-branco na distância impensável, a câmara a deslizar de rosto em rosto, «um abraço para vocês, bom Natal, adeus e até ao meu regresso».
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Excerto do livro A CASA REVISITADA, de Rocha de Sousa. Penso que posso passar a publicar aqui referências aos meus livros, da minha obra polifacetada, tais como A CULPA DE DEUS (para um ensaio sobre o livre arbítrio), publicado pela Tartaruga. O primeiro romance (discreta iniciação) chama-se OS PASSOS ENCOBERTOS e foi publicado pela Editora Figueirinhas, Porto. ANGOLA 61, crónica de guerra, teve dupla publicação, pela Contexto e Circulo de Leitores. Fora a ficção, fiz o meu trabalho de natureza científica, Belas Artes, Gulbenian, Universidade Aberta. Constam da distribuição aadémica. Na ficção, o último a sair foi A CULPA DE DEUS, pode er pedido à editora Tartaruga e em vários sítios deLis.boa, como a Sá da Costa e a Ler (C.Ourique)

Um comentário:

dionisios.zip.net disse...

viva a sua escrita.
é um prazer le-lo.