fotografia de rocha de sousa
Rangendo, oxidado, o ferro parece cravado na carne ou preso dentro e fora dos dedos, grito sem noite rasgando madrugadas, um limite intangível. Intensamente cortante, o capitão Euclides precisava de melhor ferro ou lâmina, sabre, talvez o cutelo da cozinha. ferro como todos os ferros, daqui a pouco para aflorar a falange gangrenada do pescador Valverde. O mar espantoso, além, de cinza e espuma enviesando as mesas, tampos ocasionais, com ossos sangrentos de peixe, agora varridos por ventos de assombro, assombradamente.
Rangente, ferro oxidado e abandonado, mesas e cordas e mil coisas perdidas por segundos sob a massa de água e espuma como nuvem gigantesca atravessando o navio, a romper o espaço num fragor de limite.
A tempestade passava, Dantesca.
Braços fortíssimos espalmavam a mão contra a madeira molhada, salgada, uma espécie de malha acastanhada para amparar o que acontecesse, já sem ferro, anunciada que fora a sua falta de préstimo. O cutelo sim. «Vai buscar, anda depressa por causa do mar.» Nuvens de espuma escorriam na oblíqua enquanto as velas drapejam e o cutelo subirá do porão.
Apesar do rumor envolvente, houvera uma súbita pacificação do mundo.
Euclides lembra o capitão Aab:
«Vai ou não, Zé?»
«Vai, porra, vai agora.»
E o cutelo separou o dedo da mão, curtos salpicos de sangue em volta.
Contra a dor imensa, o homem berrava:
«Maldito mar, maldito peixe, maldito dedo, malvada mão!»
Salvara-se desse modo o pescador-soldado na Terra Nova, quando por lá se andava, a mão tratada, a dor ardendo como salpicos de água salgada no lugar sangrento onde existira o dedo amputado. O homem, Valverde de sua alcunha, ainda sentia, muitos dias depois, a presença do dedo na mão embrulhada. Embruxada, dizia, ela mesma fizera com que o dedo criasse raizes, movendo-se de novo e sem dor. Mas, apesar dessa ilusória benção, ele nunca mais comeu bacalhau.
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esta história, quase real, foi-me contada pelo professor Euclides Vaz,
escultor, que ganhara do pai histórias extraordinárias da antiga pesca
do bacalhau. O pai dele, já velho, fora comandante de um lugre e viveu longos anos
daquele difícil trabalho.