Páginas

quarta-feira, julho 25, 2007

SALVAÇÃO NAS TERRAS FRIAS

fotografia de rocha de sousa

Rangendo, oxidado, o ferro parece cravado na carne ou preso dentro e fora dos dedos, grito sem noite rasgando madrugadas, um limite intangível. Intensamente cortante, o capitão Euclides precisava de melhor ferro ou lâmina, sabre, talvez o cutelo da cozinha. ferro como todos os ferros, daqui a pouco para aflorar a falange gangrenada do pescador Valverde. O mar espantoso, além, de cinza e espuma enviesando as mesas, tampos ocasionais, com ossos sangrentos de peixe, agora varridos por ventos de assombro, assombradamente.
Rangente, ferro oxidado e abandonado, mesas e cordas e mil coisas perdidas por segundos sob a massa de água e espuma como nuvem gigantesca atravessando o navio, a romper o espaço num fragor de limite.
A tempestade passava, Dantesca.
Braços fortíssimos espalmavam a mão contra a madeira molhada, salgada, uma espécie de malha acastanhada para amparar o que acontecesse, já sem ferro, anunciada que fora a sua falta de préstimo. O cutelo sim. «Vai buscar, anda depressa por causa do mar.» Nuvens de espuma escorriam na oblíqua enquanto as velas drapejam e o cutelo subirá do porão.
Apesar do rumor envolvente, houvera uma súbita pacificação do mundo.
Euclides lembra o capitão Aab:
«Vai ou não, Zé?»
«Vai, porra, vai agora.»
E o cutelo separou o dedo da mão, curtos salpicos de sangue em volta.
Contra a dor imensa, o homem berrava:
«Maldito mar, maldito peixe, maldito dedo, malvada mão!»
Salvara-se desse modo o pescador-soldado na Terra Nova, quando por lá se andava, a mão tratada, a dor ardendo como salpicos de água salgada no lugar sangrento onde existira o dedo amputado. O homem, Valverde de sua alcunha, ainda sentia, muitos dias depois, a presença do dedo na mão embrulhada. Embruxada, dizia, ela mesma fizera com que o dedo criasse raizes, movendo-se de novo e sem dor. Mas, apesar dessa ilusória benção, ele nunca mais comeu bacalhau.
______________________________________________________________
esta história, quase real, foi-me contada pelo professor Euclides Vaz,
escultor, que ganhara do pai histórias extraordinárias da antiga pesca
do bacalhau. O pai dele, já velho, fora comandante de um lugre e viveu longos anos
daquele difícil trabalho.

Um comentário:

Miguel Baganha disse...

Esta história traduz na perfeição o trabalho árduo e arriscado desta nobre profissão, onde alguns perdem muito mais que um dedo, ou uma mão.
Sentindo o cheiro da maresia oceânica pela última vez, estes cavaleiros do mar vêem a sua vida ser sepultada pelo mar colossal que irónicamente sempre assegurou a sua subsistência.

Bravo, João!Fiquei fascinado pelos efeitos especias que simulam sangue na sua mão.Nem mesmo o Spielberg com toda a sua parafernália de sofisticada tecnologia conseguiria um efeito tão real.(Cheguei a temer plo pior, ehehe.)
«Maldito mar, maldito peixe, maldito dedo, malvada mão!»- este praguejar fez-me recordar o obcecado Cap.Ahab no espectacular épico " Moby Dick", onde após ter perdido a sua perna numa batalha com o grande cachalote branco, decide vingar-se encetando uma perseguição á besta responsável por sua humilhante amputação, arrastando consigo toda a sua tripulação para a morte.

Vi este thriller fantástico com a tenra idade de 11 anos, e desde aí ficou imortalizado na minha memória, com o grandioso Gregory Peck no papel de Ahab, numa representação notável ,só ao alcance dum grande actor.

Gostei da história e da recordação agradável, João...

Um abraço(sem efeitos especiais),

Migueldela