Páginas

terça-feira, setembro 18, 2007

AS CASAS QUE NINGUÉM MAIS QUER

fotos de Rocha de Sousa

Alguém me disse que era bom passear nos subúrbios das cidades pequenas, respirar o ar purificado pela vegetação, ler o jornal na margem de um riacho. Eu já fiz essa experiência, por razões de saúde e por mera nostalgia, saboreando o estranho prazer que esse sentimento envolve. Mas hoje vim para oeste, escolhendo os caminhos enviesados das antigas fábricas de cortiça, justamente a zona menos agradável para as pessoas em geral mas a que fala mais da história da cidade no século XX, a transformação utilitária da cortiça, as grandes oficinas onde operários especializados trabalhavam com facas de longo corte, ou os que produziam cubos de cortiça e se chamavam quadradores, além daqueles que manejavam as garlopas e outras máquinas, incluindo naturalmente os escolhedores que, entre várias categorias de pureza da matéria visível em cada rolha, rodavam nas duas mãos, entre o polegar e o indicador, a par, exemplares retirados em «bola» de uma alcofa, peças que, naquele rodar, eram escolhidas a olho e atiradas para seis alcofas, cada uma delas destinada a receber um produto diferente do seguinte, até aos seis recipientes. Era um acto ilusionista, mágico, que preparava os lotes para a finalização amanciante e de rotulagem a fogo.
As casas desta zona, onde moraram cerca de 4000 operários, deixaram-se abandonar com o tempo e a destruição política da indústria corticeira. Foi uma época sombria de incêndios das fábricas e de migração de centenas de famílias, para o Montijo ou Alhos Vedros. O maior produtor de peças resultantes da trasnformação industrial da cortiça, aliás o maior produtor dela em prancha -- estou a falar de Portugal, necessariamente -- tinha o exclusivo da transformação de uma matéria prima única no mundo a este nível de qualidade. O sobreiro é uma árvore que acerta bem com o país, porque tem longa idade e longa história, como o tal «jardim à beira mar plantado».
Até que um dia o governo quebrou a regra da exclusividade para poder «ensacar» dinheiro de um dia para o outro, vendendo aos estrangeiros cortiça em prancha, tirada da árvore, logo exportada. O desemprego explodiu, a miséria da época, entre bocas amordaçadas, escorreu pelas planícies do Alentejo e pelas serras do Algarve.
Fotografei hoje apenas retalhos de uma casa abandonada e destruída, onde outrora duas famílias de corticeiros viveram e sonharam belos futuros. Aqui estão as janelas fechadas, cegas, e lá dentro os fantasmas dos que derivaram pelo país salpicado de fabriquetas de resistência. Há paredes mudas por todo o lado.












A beleza das coisas não reside nelas nem nos seus adornos, mas sim na cultura do nosso olhar

Um comentário:

jawaa disse...

«A beleza das coisas não reside nelas nem nos seus adornos, mas sim na cultura do nosso olhar»;pois é verdade, conhecer, para melhor compreender.

A propósito de cortiça, não sei se já reparou que alguns vinhos já aparecem com rolhas... de um qualquer material plastificado??!!