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segunda-feira, setembro 17, 2007

IMAGENS PERDIDAS DE UM RASCUNHO FÍLMICO


rascunhos fílmicos da velha cidade
rocha de sousa


Em criança, perante um empreendimento com o qual se pretendia rasgar uma estrada nacional atravessando uma cidade inteira de ponta a ponta, eu ia para o outro lado da rua e encostava-me à janela da vizinha da frente, na oblíqua. O espectáculo, que agia sobre mim como o mais esplendoroso dos fenómenos, consistia na demolição de um quarteirão de casas, belíssimos exemplares do princípio do século, através de meios ainda pouco mecanizados, pedreiros suspensos nas empenas e demolindo outras, ou tabiques brancos, azulados, acinzentados, e até verdes, nos quais se distinguiam perfeitamente as sombras brancas dos quadros que haviam sido retirados com as mobílias, todo o recheio das habitações. Tombavam pedras, argamassa poeirenta, restos de madeiras, coisas assim, misturando-se num entulho onde ainda jaziam baldes, lavatórios de ferro, fotografias riscadas. À medida que as paredes perdiam altura, o trabalho acabava por destacar molduras de portas, arcos rectilíneos perpendiculares uns aos outros, bem depressa também desfeitos e a madeira levada para longe. Mais além, outras fachadas tombando, pedras e terra caindo devagar, como no cinema, e o meu coração a palpitar de emoção. Aquilo era verdade, eu podia ver a verdade, esperar pelo outro dia e passear lentamente pelo chão de pedras em montes, traves quebradas e falhas agudas, louças partidas. Aquilo deixava-me empolgado e, ao mesmo tempo, nostálgico, já saudoso das vizinhas, da dona do forno público, das carroças paradas na espera dos carregamentos.
Felizmente a estrada nacional que um mentecapto inventara num gabinete de Lisboa parou com a evolução dos conceitos e a modernidade em volta. Mas, desse tempo, ficou em mim um forte apelo pelas ruínas, pelo património urbano dobradado ou semi destruído. E assim, nas férias, apanhava tudo isso através dos velhos filmes de 8 ou super8 mm, aproximando-me cada vez mais da sensibilidade ao espaço e ao tempo, dos cineastas que mostraram as imensas destruições do pós guerra, lentos pesadelos igualmente belos.

Um comentário:

Miguel Baganha disse...

Tio02,
esta sinopse da sua infância caminha ao encontro de «Toto», o miúdo apaixonado por cinema que na Itália do pós-guerra vive um drama ao descobrir que o edifício que o levou a sonhar tantas vezes, havia sido demolido para se tornar num parque de estacionamento.Com um único porém: no seu caso, existe uma nostálgica dualidade criteriosa; a parte que desejava ver preservada o estilo arquitectónico da cidade e toda a história que lhe estava inerente, confrontada com aquela mais visionária, a que aclama e recebe de braços abertos a evolução tecnológica...e que até hoje, julgo ser a que mais o caracteriza.

Contudo, este RASCUNHO FÍLMICO DUMA VIDA - onde as IMAGENS são tudo, MENOS PERDIDAS -, partilhado por si, é revelador de que todos temos um «Toto» dentro de nós.

Ao som de Ennio Morricone,
despeço-me com um saudoso abraço e já nostálgico...até breve,

Miguelanalgésico

P.S.Beijos á Mami