NGC.6334.Paul Nebule, em perda convulsiva
Hoje sonhei com um «buraco negro». É sem dúvida um dos fenómenos mais aterradores do Universo, capaz de engolir pequenos fragmentos de astros errantes, estrelas inteiras, porventura a própria galáxia onde se situa e ganha continuamente a maior e mais absurda das massas, como aconteceria, embora noutra escala, se comprimíssemos toda a literatura da história humana na mais recôndita pasta de um computador. Assim acontece, por mera aproximação imagística, com os milhões de sinais que enviamos para as caixas de reciclagem na Internet. O «buraco negro» do meu sonho aproximava-se mais das recentes fotografias desses fenómenos cósmicos acontecidos há milhares de anos luz do nosso ponto de observação (a Terra), mas, de acordo com o lado surreal da maior parte dos sonhos, visionando absorções aberrantes, ao mesmo tempo caricatas e trágicas. Na verdade, comecei por ver, num absoluto silêncio, a precipitação no «buraco negro» de planetas semelhantes à Terra, sistemas de estrelas, cometas, poeiras cósmicas com áreas incalculáveis, tudo a afunilar-se para um vórtice de ocultação. As imagens, na observação directa, pareciam paradas, dada a distância donde chegavam, mas eu sabia que as mais variadas coisas que povoam o espaço, e são sugadas por estes «orgãos» inexplicáveis, o fazem a velocidades incalculáveis, restos de luz, estrelas cadentes a fingir, matérias de natureza indecifrável, ou astros inteiros, plasmas, humanidades desconhecidas. Os sonhos começam por vezes assim, baseados nos dados da divulgação científica, expelindo depois, do fundo do inconsciente, sopros fantasmáticos que ultrapassam a lógica de muitas iniciações. Por isso, a certa altura, eu começei a reconhecer muitos objectos do nosso próprio parimónio a serem engolidos pelo monstro sem fim, palácios inteiros, barrocos, com gente a saltar das janelas. esbracejando por uma vida condenada, além de móveis, cacos de espelhos reflectindo o que nunca se projectou neles, multidões arrancadas às estradas e torres incendiadas, ramos de flores, jardins completos, com as suas árvores e os meninos ainda a pedalar as suas bicicletas. Os nossos próprios oceanos transformavam-se em rios inteiros, arrasando cidades colossais, Londres ou Nova Iorque, por exemplo, pelas cheias logo canalizadas, no espaço negro, para aquele «lugar» ou fundo de agulha em que tudo se miniaturizava e se perdia: casas e mobiliário, exércitos daqui e de além, os transatlânticos, os bombardeiros, os cemitérios, as catedrais, a Amazónia em chamas, fábricas e fumos, nuvens e glaciares, escriturários com óculos redondos, combóios de brincar e de atravessar continentes, enormes aviões de passageiros, pares de noivos, padres, armários como aquele que é manejado numa das mais aflitivas danças criadas por Pina Bausch, armários e cómodas e retratos dos avós, bíblias, o Vaticano todo, as caricaturas de Maomé, toda a beleza das obras de arte, os objectos que melhor caracterizavam a nossa civilização, desde a sanita de Duchamp à Guernica, de Picasso. Depois do homem dobrado sob o peso do armário, que se apagou como a chama de um fósforo soprado secamente, rolaram pedras, montanhas, Sísifo contrariado na sua condenação, arrastado (com a sua derradeira pedra) para o fundo do abismo, aliás entre livros, incluindo os livros proibidos e todos os index das religiões todas. E ainda consegui perceber a desconstrução de uma casa de madeira, um casal enrolado nos lençóis, as suas lembranças, filhos fotografados, filhos mortos no Vietnam e no Iraque, tudo em queda livre, o campo em volta, as ovelhas e os profetas, Senados em plena actividade, um pastor de nome Lucas, amigo de Caeiro, já sem bordão, nem adereços próprios da sua permanência nas altas pastagens de uma ilha. E a Lua, a própria lua, cinzenta e cravada de crateras, a lua dos mitos românticos, a lua dos poetas mal inspirados, um astro singelo e ordeiro que já vira eclipsar-se pelas leis gravitacionais e agora apagar-se, num estertor silencioso, para todo o sempre.
Quando acordei, sobressaltado, a boca seca, ocorreu-me olhar para as estantes repletas de livros que ocupavam uma parede inteira do quarto. Estava tudo nos seus lugares, excepto uma obra solta, caída no chão, e que logo corri a tomá-la nas mãos: era a conhecida obra de Huxley, «Admirável Mundo Novo».
Um comentário:
Que bela torrente de imagens escritas a fazer inveja às imagens reais da NG!
O Admirável Mundo Novo já não é ficção, daí a fuga para os desertos, as neves, as florestas tropicais onde ainda há uns bons selvagens. Será?
Postar um comentário