Páginas

sábado, abril 19, 2008

UMA ESCOLA MAL-AMADA, CONVENTUAL


Helena, um belo prelúdio de amor e as fantasias desfazendo-se no umbral da porta, acenos distraídos, um cheiro a bolos daqui a pouco. Comia o meu bolo de arroz em passeios sem nexo no corredor que dava passagem para o atelier de modelo vivo. Bebia as minhas próprias légrimas virtuais, humilhado pela mediania do exílio e pela cada vez mais clara pobreza, desactualizada, daquele curso -- Aldemiro como penosa imagem de tudo isso, professor amável e inútil, refém da sua única corda vocal e das bibliotecas e museus que lhe favoreciam certas descobertas, a par do trágico comportamento do século. Tombavam tectos de novo, as abóbadas tinham fissuras inquietantes, os canos vertiam fios de água para dentro das grossas paredes, havia humidade um pouco por toda a parte, vozes longe, na envolvência da realidade e da memória. Bolor. Bolores nos arquivos de belos desenhos arquitectónicos e cópias de ânforas do Mediterrâneo. Caves cheias de «Diários do Governo» e de ratos, num fedor que emergia de outras caves mais fundas, esgotos, labirintos da morte. Como no cinema. Mas sem a fúria e a vertigem de travellings impossíveis. Quem descesse a essas novas cavernas da civilização contemporânea, numa deriva de que jamais sairia, usando em todo o caso lanternas e máscaras, formaria, a curto razo, passos arrastados, brevíssimos, imersos na lama escorregadia ou nos vales mais profundos onde uma água barrenta e esverdeada acabaria por imobilizar o aventureiro, borbulhando em torno do se pescoço.

*
curto excerto do livro a sair em breve, de Rocha de Sousa, «Belas Artes e Segredos Conventuais»

Um comentário:

jawaa disse...

Desvendar segredos - decerto incómodos para muitos - em pinceladas de arte, parece ser o objectivo.
Vou estar atenta.
Obrigada por ir levantando o véu.