Chamei por ti, chamei durante horas, onde estás? Quem és tu? Meu filho não, mas isso não importa. Podes ser também meu filho, ajuda-me, que é feito daquela criança de blusa azul? Não sabes? Abre caminho por esse lado, mas tem cuidado, filho. Onde está ele? Onde estás tu? Não chego lá, meu Deus, que Deus faz uma coisa destas, sacrificar crianças. Claro que me falta a mão esquerda. Claro que foi a trave. Põe-se um trapo, tu, meu novo filho, ajuda-me a rasgar a camisa. Ainda não viste um menino de blusa azul? Não viste? Como é que tu queres que eu saiba onde tombou a minha mão? Esta é forte, estás comigo. Mas temos de correr, a mão fica para quem a quiser. Olha a lama, já me chega aos joelhos, agarra a mão que sobrou, agarra a saia pesada. Preciso de ti e dos meus pais e do meu filho. Vestia uma blusa azul. Não há nenhum azul assim. Olha em volta, sobre para as minhas costas, bem agarrado, espreita para a frente, para trás, para os lados. Ele estava mesmo ao meu lado, puxando pelo braço, foi fácil, desprendeu-se dos restos da mão. Vinha comigo, agarrado à roupa e eu a selar contra o peito o sangue que escorria do braço. Não, filho, não tenho dores, nunca tive dores, a única dor é não saber do menino, é perdê-lo para sempre. Talvez amanhã. Talvez com o trabalho dos resgates. Talvez ainda respire. Talvez ainda se perceba que veste uma camisola azul. Talvez Deus ainda tenha compaixão por todos nós, vivos e mortos
quinta-feira, setembro 25, 2008
quinta-feira, setembro 18, 2008
MEMÓRIA DAS FÁBRICAS CORTIÇEIRAS: FOGOS
Ceus de brandura e fogo,
crostas cortadas
no atraso das noites acordadas.
E o que sobrava em rios de lava
lavrando os mapas da insónia
abria sulcos de incerteza carbonizada,
faces furtivas, ainda vivas,
os pássaros fugindo avisadamente
na luz da hora intermitente.
Soavam gritos nasais ou roucos,
gritos sujos, loucos,
afinal previsíveis e terminais,
graves também,
cada vez menos audíveis
na distância de todas as fugas,
gente partindo ao contrário do medo.
Ficavam as janelas desdentadas.
Sobravam grandes nuvens de fumo
sem rumo,
puxadas pelas velas do vento.
Vidros partidos ou espelhos
na inconstância das folhas rasgadas
sobre alcatrão e pedras fracturadas,
os pássaros longe,
os barcos vazios, à espera,
paredes de lata,
velhos de pano sacudindo as feridas
das roupas desfibradas,
quase invisíveis, já perdidas.
Uma janela horizontal,
morta,
vitimada outrora
na fábrica ardida antes da hora.
Rocha de Sousa
terça-feira, setembro 16, 2008
AS APARÊNCIAS DO REAL OU DA PINTURA
O homem é dotado de um aparelho visual altamente sofisticado e capaz de aperfeiçoamentos operativos consideráveis. Mas já temos equacionado aqui as limitações que o cérebro tem de cobrir, transformando um paralelogramo e rectângulo ou uma oval num círculo, isto é: o que a retina transmite para o grupo de neurónios que elabora a visão corresponde a apropriações enviesadas do real, linhas convergentes quando são paralelas, espectáculo plástico, como na pintura abstracta, quando o referente não passa de ruínas de um prédio. A estrada que parece afunilar-se não é lida dessa maneira pelo cérebro: a elaboração dos dados remetidos pela retina faz com que deduzamos a configuração real das coisas. Estas palavras podem associar-se a uma observação pouco cuidada da imagem aqui publicada, aparência cuja escala desconhecemos e que nos pode calhar relacionarmos com uma obra do autor deste blog, o qual é de facto dedicado a dar a ver peças de ordem plástica, fotografias, referências a cinema, arte digital e literatura, áreas em de facto tenho trabalhado, profissional ou amadoritiscamente, e que ofereço ao conhecimento dos outros e ao próprio debate. Assim, ocorreu-me trabalhar esta imagem, cuja base é fotográfica, de um fotojornalista, e cujo resultado, semelhante a uma pintura, seria quase irreconhecível junto da fotografia de base, com muito mais material em torno deste fragmento.
segunda-feira, setembro 01, 2008
MUTAÇÃO: UMA FOTOGRAFIA E DUAS TINTAS
Muitas das obras de arte do nosso tempo, nomeadamente nas últimas décadas do século XX, emergiram das mais diversas experiências, sobretudo pelo desenvolvimento instrumental dos meios no justo recurso às ciências, artesanatos, pensamento plástico, liberdade de inventar, superando convenções e atavismos aprisionantes. Toda a liberdade, bem o sabemos pela História e pelas revoluções entretanto sustentadas entre guerras, é um campo armadilhado, susceptível de tornar perigosas muitas escolhas aventureiras e implacáveis competições de ordem estética e de ordem mercantil. Neste caso, desde há muito que se fala em indústrias de arte, uma cultura salsicheira que a classe intelectual se encarregou de encobrir ou enobrecer como superior produto do pensamento. Não muito tempo antes, Umberto Eco, entre outros, atacara os males intrínsecos da arte de massas (ou para as massas), sublinhando a ideia de que certos valores recorrentes não significavam nem a socialização, nem a democratização da arte. A despeito dos muitos escolhos que o acesso à cultura superior coloca às sociedades, a verdade é que, para tratar pelas formas artísticas o pensamento ontológico mais consistente, a obra de cunho estético é inevitavelmente elitista, não no sentido comum, mas no sentido de um saber de grande sustentação e de uma visão do mundo capaz de o suportar.
E dirão alguns visitantes: pois sim, mas que tem isso a ver com estes dois bonecos que aqui nos oferece? Eles equacionam essa transcendência? Em resposta, eu não diria tanto. Mas, na base, a raiz comum dos bonecos está na fotografia, a partir da qual foram ensaiadas técnicas informáticas básicas a fim de conferir dois rostos a uma única identidade. Isso não constitui, a bem dizer, nenhum feito extraordinário. Mas já é extraordinário o que se pode extrair de uma reflexão abrangente sobre o que parece um fenómeno ludicamente comum. Talvez Greenaway tenha pensado nisso quando imaginou uma entidade humana, de anatomia reconhecível, vestindo um só fato apesar de sustentar duas cabeças sobre os ombros, ambas saindo da mesma camisa e das mesmas abas do vestuário. Essa ideia, bizarra na forma, do outro que sempre nos habita, siamês ou não, sugere a complexa via pela qual talvez possamos ultrapassar certos limites, a tridimensionalidade, a unidade na diversidade, o envelhecimento parcelar, a interacção dos elementos sobre sensação, percepção, repretesentação. O que, bem vistas as coisas, não é tão pouco assim.
DO MAR AO AQUÁRIO CORREDOR DA MORTE
não há português de qualquer condição que não corra
às marisqueiras a fim de encherem a boca de mariscos,
os mais diversos, vício antigo que já teve estatuto de
classe, o dos ricos, mas que hoje é mitomania de todos,
haja crise ou vacas gordas.
Vemos, em Silves, no principal restaurante deste
culto, filas de gente à espera de lugar,
outros sentados no chão e em cadeiras,
horas a fio, alta noite, a fábrica de comer
cheia por dentro e por fora, numa alucinação
de cascas, cerveja, vinho branco, manteiga, pão,
restos inenarráveis pelas duas horas da
madrugada.
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