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segunda-feira, dezembro 23, 2013

NOJO AOS VELHOS OU O LIMITE DA MENSAGEM


As folhas secas, amareladas e mortas, lembram, em tão grande quantidade, um chão juncado de velhos mortos após um imenso genocídio. Mas não é nada de tão feio, como se pode ver e cheirar: ver sob a luz matinal, algumas caídas sobre um carrinho de transporte manual e talvez sugerindo que todas as outras vieram em transportes deste género para serem espalhadas em redor e ornamentar um pátio qualquer, tornando-o fofo aos passos perto do jardim -- em particular o dos velhos internados no Centro de Saúde atrás da própria imagem. Daqui a dias, seja como for, o ancião que costuma, com outros colegas e amigos, varrer as folhas pisadas, virá transportá-las num dos velhos carrinhos de mão, semelhantes aos outros todos, procedendo devagar ao esvaziamento das folhas, seres indefesos e meio mortos, caídos das árvores e já cheirando à sua breve morte, coisas enfim derramadas derramando-se no lixo da Natureza.


O nojo aos velhos é uma expressão abusiva, talvez ligada a certas analogias de outros domínios, mas corresponde de algum modo a diversas situações fracturantes das sociedades humanas sobretudo nas geografias da fome, das doenças avassaladoras, perante a marcha dos indiferentes não muito longe e das grandes congregações de países ricos e de territórios vastos.
Estes pacientes mais idosos chegam ao hospital muito tarde, em especial quando transitam para a unidade de estudo e diagnóstico. Mas hoje, enquanto lá fora as folhas tombam e os pássaros cantam sem melancolia, os médicos trabalham gente como vemos aqui, na espera inexplicável de tudo: analisam os dados da sua investigação, tanto aqueles que abordam questões neurológicas como os que se dedicam, eventualmente em consequência de tais exames, aos regimes comportamentais aprisionados. Não há aqui, nem lá fora, um sentido apologético que indique estarmos num mundo de apologia técnica, ou, ao contrário, de sedução panteísta.
O tratamento de patologias comportamentais não se compadece (penso) de recolhas ao ar livre, vendo pássaros, camponeses, árvores de diversas raças. Ou simplesmente a relva e o sol, os carros correndo ao longe. Também não se julga conveniente recorrer ao sequestro dos doentes, técnicas de reclusão durante horas intermináveis -- segundo alguns puristas excessivos coagindo o paciente ao desenho de uma ideia ou de um tecido, coisas gráficas, sem nenhuma outra relação de memória ou valor lúdico como noutras conquistas prévias a outras propostas de enquadramento urbano ou em ligação ligeira com imagens presumíveis de bosques, montanhas e rios.


O lixo dos humanos ou o lixo da própria Natureza, aqui e além, são por vezes paisagens diferentes e até fascinantes. Mas ou costumam ser remetidas para a reciclagem ou acabam por matar tudo em volta, não servindo para mais nada. Qualquer reformatação do ser-humano, para perto da sua coerência orgânica, não deve basear-se, em todo o caso, na mais secreta e muito isolada das aprendizagens nem nas totalidades do método libertador de Montessori,

O paciente disse: do outro lado, longe mas dentro de água, vi com toda a evidência o rosto de minha mãe. Não percebi se sorria, pois já começava a perder-se no lixo.



sexta-feira, dezembro 06, 2013

SÍSIFO LUSO SOB A PEDRA COM ARTE ABERTA

               Este pobre Sísifo,  que  tanto subiu e  desceu  a
               montanha,  carrega o  que até  há  pouco  ainda 
               não  se  descobrira:  o que  resta de um  menhir 
               visigodo estranhamente encravado numa  parte
               de certa rapsódia de obras de arte portuguesas, 
               abertas, pesadas como o  destino da nossa futu-
               ra indústria cultural nesse domínio.

Recomeçar como? Vendo no espelho, em vez do rosto, a nuca da personagem que tenho sido? Ana dir-me-á que essa questão é menor, mas ela própria dificilmente se reconhece em Cristina nas fotografias mais recentes, espelhos breves que passa entre os dedos e depressa rejeita. Pode não ser decisivo reivindicar a identificação da escrita, no verso de cada espelho que se quebra no caminho. Suponho que já não sustentarei essa atitude, pela minha parte, porque as palavras dos tios, das tias, de Cristina ou de Ana, dos avós suspensos em retratos graves, acabaram por se confundir com a identidade de quem sou, sem heterónimos, hoje pronto a reivindicar esse registo por inteiro, único, o meu nome embaciado pelos senhores da cultura e por muitos colegas da faculdade, entre outros. Claro que a grande cidade onde envelhecemos nos é cada vez mais estranha. Claro que somos nela, de ano para ano, mais cinzentos ou estrangeiros, o mundo a perder-se neste modo de ficar em casa, abarcando imagens rápidas, sem leitura, os destroços do Columbia ou as caravelas de chumbo que os Estados Unidas da América colocam no mar dos golfos, na curva marítima entre continentes. Que fiquem as marcas dos passos pela areia fresca das marés baixas, memórias de um destino sem distância, idas sem regresso, tragicamente as marés altas engolindo a maior parte dos vestígios.
Devaneios.
A ideia é recomeçar em todas as frentes possíveis,  sem alcunhas. No âmbito da pintura, será preciso procurar de outro modo o modo absoluto que não há e ter consciência dessa brevidade na sucessão das obras, com ou sem assinatura. Muitos oficiantes fazem-no pelas diagonais solitárias, na terrível preguiça das medianas, enleados nos mercados de circunstância, na fama de cada nome que, entre consumos, faz toda a diferença. Outros desfazem ideias, mudando de casaca, grandes passos de súbito espalhados pelo vazio, desfasados de toda a procura, entre descontinuidades por vezes ilusórias ou esplendorosas, luxos incongruentes nas tintas mal secas de modelos revivalistas. Ainda conheço razoavelmente muitos daqueles que passaram do extremo cuidado nas articulações geométricas ao domínio profano ou à penumbra do sagrado, alegorias com o anjo Gabriel sob luzes teatrais, céus bíblicos e a perfeição imitativa de um único quadro de cada vez, divino silêncio que procurava acompanhar o lado erudito da representação onde também florescia, enfática, errática, a candidatura ao mito museológico. Além do mais, vejo recomeços na continuidade dos mesmos riscos  de há trinta anos, talvez meio século, não sei bem, artistas que herdaram de Sísifo (mas com proveito) a repetição dos actos, as veredas na montanha do atelier, o estafeta da galeria à porta a fim de recolher as pedras de um rolar ocasional, vendáveis mediaticamente e às dúzias. 
Devaneios, Matilda, não deixes que a tua filha se perca.
Há um outro deus das artes que sobe arduamente a montanha, como Sísifo, parando, a espaços, num sopro duro e pintando dolorosamente os desastres principais, trajectórias de trajectórias, por vasta soma de intencionalidades  parecidas, na visão sempre retomada com mais fervor no caminho percorrido, perto da certeza de não haver o pico da montanha, a tela meio pintada e já a explicar-se simultaneamente, como presença e juizo, num destino que não é grego, nem romano, nem de qualquer outra nova renascença -- destino que não se sabe quando começou e  não se percebe como terminará. Em cada paragem, a evocar a alegoria do calvário, apura-se assim um testemunho, algo que foi repensado todos os dias, trabalho absurdo, inconclusivo, sobre-humano. Os caminhos na encosta são apenas semelhantes enquanto destino em desenho; nenhum deles repete, até ao milímetro, o anterior. Essa resistência, levada apesar de tudo à vontade de comunicação, com todos os sinais do seu arrastamento e das suas diferenças invisíveis, torna-se uma espécie de símbolo da própria natureza da arte (ou da vida, tanto faz) abrindo espaço, para muitos, à perplexidade e à revolta, apontando cada recomeço, sem mística, sem salvação, sem Deus, como a possível novidade de uma faixa de terreno nunca pisada de certa forma, na identidade (afinal) de qualquer coisa que não tem fim mas que vive dentro da própria morte e apesar do desencanto, com força, entre máscaras.
Já pensaste, Matilda? Não te lembras do teu nascimento nem sabes nada sobre  a tua morte. Imagino muitas vezes essa vida como um quadro de Picasso. Os quadros dele nunca começam de um modo previsível, à maneira de muitos outros começos conhecidos. Além disso e sobretudo, nunca acabam.
Filosoficamente, Sísifo é um artista: ele sabe relativas as diferenças entre viagens e faz dessa pequena fronteira, contra a estranheza para sempre, o fio  das suas sucessivas escolhas e num espaço do incontornável absurdo.

sábado, novembro 02, 2013

CAMUS, TERIA CEM ANOS, AINDA ESTRANGEIRO

Albert Camus teria hoje cem anos

No Expresso de hoje:
É recordado um dos mais importantes intelectuais do século XX. Hoje quase esquecido e pouco lido, lutou contra todas as formas de totalitarismo e contribuiu com os seus romances e peças de teatro para iluminar a condição humana num tempo de trevas mortais.
Quando recebeu o Prémio Nobel, Camus disse, em certa passagem do seu belo discurso:

«A arte não é para mim um prazer solitário. É uma maneira de comover o maior número possível de homens, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos sofrimentos e alegrias comuns» Discurso da Suécia.

«A pobreza e a velhice dos lugares irremediáveis, estações terminais de uma vida sem sentido nem escolha. Constitui aquilo que os intelectuais e o existencialismo empacotado gostam de chamar condição humana e que, no seu etéreo assento, desconhecem e temem.»
 Nos apontamentos autobiográficos dos Carnets, onde Camus demonstra o virtuosismo da escrita, lê-se o resumo da sua vida física e mental:

«Sempre pensei que aquele que espera alguma coisa da condição humana é um louco, mas o que desespera é um cobarde.»

Citado por Clara Ferreira Alves no Expresso de 2.11.1013

É hora de prestar de novo a nossa homenagem a esta personalidade de indizível grandeza, o escritor que nos deu a ler «O ESTRANGEIRO», obra que marcou para sempre uma consciência moderna da literatura e dos valores humanos.

«Não chegam vozes, nem anjos, nem milagres: a ausência da suprema ajuda é a revelação do embuste  em que nos fizeram conscientes, criadores quase insuperáveis, mas bem depressa condenados a se apagarem. Dizia uma tia minha, lavradora no sul, afagando o enorme saco cheio de milho: Deus? Nunca dei por nada. Por esta terra fora, só os homens e as mulheres estão iluminados até ao momento em que morrem. E deles, como de Deus, nunca mais haverá sinais. Este é um mundo sem razão.»

do livro «NARRATIVAS DA SUPREMA AUSÊNCIA»

segunda-feira, outubro 21, 2013

ESCULTURA CIDADE: OLHARES SEM FUTURO


obra de Anselm Kiefer

que futuro?

Anselm Kiefer, escultor aalemão instalou no HangarBicoca, espécie de imâ cultural que atrai muita gente de várias culturas e vocaçõverdadeiramentees, do design, cinema e outras artes. As imagens aqui reunidas fazem parte de um notável filme rodado durante a construção da obra e depois, com a simulação da sua absorção pelo bosque envolvente. Lembram também o bom resultado de uma estrutura que nasce condenada ao abandono, ou mesmo ao próprio desmantelamento depois de décadas de presença fantasmática, tal como acontece ao longo de séculos em relação a grandes e médias cidades de facto, lugares cuja eternidade é mera ilusão mítica.


 No interior do espaço actualmente muito visitado, entre memórias e ruínas simuladas, foram assim construídos «os sete palácios celestiais, as famosas torres de cimento e ferro, em blocos, em fingidas derrocadas, num longo passeio de enganos perceptivos ou vividos, futurismo, conceptualização dos grandes dilúvios e grandes ruínas após terramotos e fugas humanas indistintas. Esta montagem é, por assim dizer, o cartão de visitas, da área referida, multicultural, onde se respira um  ambiente de criatividade e de vanguarda. 


 Anselm Kiefer foi entrevistado para o filme sobre a obra e sobre o seu pensamento acerca da Arte e do Homem. Kiefer falou sobre uma espécie de teoria da incerteza, sublinhando que a expectativa do envelhecimento da imitação das ruínas e da própria rusticidade do seu precário equilíbrio envolve o destino do Homem. Perguntado que esperança ou dúvida isso poderia traduzir, o escultor disse que a Arte não abre certezas mas caminhos de incerteza e descoberta do real na constante estranheza dele. Anotou que o Universo está longe de ser abarcado pela Ciência. A própria ideia do Big Bang obriga à pergunta sobre o que havia antes dele e o avanço de teorias sobre vários acontecimentos semelhantes, sobre a próxima contracção das galáxias -- nada evidente, nada seguro. Nós, humanos pocuramos uma certa espiritualidade que ninguém sabe verdadeiramente o que é. Humanos que há milénios constroem tecnologias para o bem e logo as apontam para o mal: o humano criando assim a desumanidade, guerras longas, a incerteza perante a vida e a morte. A Arte experimenta o trabalho do espaço e do tempo. A morte está em tudo, para sempre.


fogo nos últimos livros de pedra

sexta-feira, outubro 18, 2013

O ROSTO DOS ANOS DE BELEZA, COM ESPERANÇA


A propósito de um festival de cinema, este rosto é convocado e a sua beleza, aqui um pouco triste, parece lembrar-nos o caminho que tem sido imposto aos sonhos do futuro, agora ou amanhã, na desilusão dos eventos massificados e da crise que se estende por todo o ladoAbrem-se as mãos para receberem a verdade ou a ilusão, presença outrora simbólica, um tempo em que eu mesmo esboçava pela pintura, de forma diluída e talvez lírica, a memória das batalhas medievais, ou do próprio século XX, indagando uma certa beleza enevoada que mal encobre o sangue ou a morte. Hoje combatemos nas ruas, contra a cegueira dos poderes instituídos, as regras sombrias de um capitalismo mundial que se esbanja e logo é encurtado por fora dos muros das minorias assim escondidas, entre tesouros que banham a sua inominável e faraónica fortuna. E o que resta das sociedades reparte-se entre a ferocidade das ruas e os desertos dos grandes concertos na alienação.
Polanski chamou esta mulher e fez com ela um filme de psicoses e fantasmas. O rosto dela aparecia belíssimo, apesar de ter este aspecto de que perde a alma ou de quem espera que o amanhecer contenha espíritos salvadores, o apaziguamento do mundo em volta.

 

Esta minha pintura, branda nas cores mas escorrendo de uma altura  sombria, parece sobrar de vestes e ferros belíssimos, por fim encontrando, na dobrada  fragmentação, o delírio dos finais apocalípticos entre eventuais descansos brancos, os restos dos apetrechos, as mãos do combate e da prece, as vestes meio rasgadas, tudo enfim de outro modo, como que anunciando a queda ainda em vida, em câmara lenta, na esperança de que as feridas se apaguem e o sol arrefeça durante as horas das orações. Nunca mais a maldição dos  senhores.

sexta-feira, agosto 23, 2013

O DELFIM E OS SÁBIOS DA LÍNGUA PORTUGUESA

 José Cardoso Pires




 O DELFIM

Das bocas do mundo corre a ideia de que "O Delfim", obra sem dúvida maior de José Cardoso Pires, o é também «unanimemente», tanto mais que o autor é «considerado um dos maiores escritores portugueses do século XX, numa galeria onde podemos encontrar nomes como José Saramago ou António Lobo Antunes». Fala-se de uma «carreira literária marcada pela inquietação e pela deambulação.» Toma-se em conta que Cardoso Pires escreveu dezoito livros, publicados entre 1949 e 1997. Não sabemos se é tempo demais para tão poucos livros se são muitos livros para quase meio século (48 anos). Não se vê como coerente a inserção da sua obra no neo-realismo: parece um erro de perspectiva, pois o autor, embora também contrário ao regime autoritário português (Salazar), descolou para um combate mais avançado, frequentando os grupos surrealistas, desde o início da década de 40, e foi muito influenciado pela literatura americana (dizem), olhando para a estética de Hemingway, além da narrativa cinematográfica, em prosa e no domínio do cinema ele-mesmo. Daí resulta um português especialmente trabalhado, com discursos curtos e diálogos concisos.
Foi justamente sobre o livro O DELFIM que a televisão apresentou um documentário, no qual importantes figuras da nossa  literatura, crítica e edição saudaram as qualidades do livro e do escritor, obra em geral, linguagem medida, bem carpinteirada, onde os adjectivos se escondem e qualquer tonalidade barroca está sempre ausente na modelação austera das frases, das vozes, das palavras. Salientaram as personalidades que a língua portuguesa peca por um enleio barroco, entre «panejamentos» que disfarçam o legível e atrapalham o leitor. Assim, sim: com a régua e o esquadro, sem cair em minimalismos mas amando americanos e caminhos anglo-saxónicos. Por mim, li o Delfim sem atender a isso. Tem lá uns momentos de repetição narrativa que lembra o cinema, o atrasar do tempo, os pressentimentos de certos planos. O pior é que os actores (no filme de Fernando Lopes) debitam as falas muitas vezes como se se lembrassem em demasia do Teatro D. Maria e o próprio realizador tenta conter-se diante do mistério da lagoa e corta aqui e além como se perseguisse o escritor e a sua medida. No cinema, Dreyer espalhou muito disso, mas o romance aqui em causa precisava de mais cheiro e menos compostura, apesar de uma memória aristocrática que o Delfim propriamente dito passeia pelo Cais do Sodré e por uma delinquência demasiado fardada. Mas isso interessa pouco. O filme não é do melhor de Fernando Lopes mas encanta o espectador médio e os lances eróticos gastam poucos adjectivos visuais.

 



escrita barroca, em português

Deixemos o filme e passemos à indiscutivelmente bem medida escrita de José Cardoso Pires. A escrita não se pode comparar com a dos dois escritores citados à partida. Não porque seja pior. Nem melhor. É preciso é ter conta com o que se diz sobre a língua portuguesa: pode ser belíssima em modo barroco, sem esquecer que os efeitos dos adjectivos está estudado a vários niveis, até na convulsão redundante e em grandes autores de todos os tempos. Andar a esconder adjectivos não tem sentido. Poupar o seu uso para certos fins pode ser um belo caminho. Estas basbaquices modistas fazem mal em certas veredas e caminhos: já ouvi um editor considerar que a obra que tinha sob os seus olhos era belíssima mas não podia arriscar a publicá-la porque era demasiado rebuscada, «já ninguém escreve assim». Ora o que ouvi sobre Cardoso Pires com quem convivi e até trabalhei, não pode servir de referência séria para ninguém. Não são casos de barroquismo nem nada disso. Lobo Antunes o que será? E o Saramago, que prega tão bem os pregos das palavras, e nunca enjeitou o peso delas, os panejamentos, a espera, o tempo espesso, a mistura das palavras faladas com as suas próprias palavras escritas. É uma idiotice? Ou é a liberdade da invenção artística? O cinema influenciou a literatura e vice-versa. O livro «O HOMEM DA CABEÇA RAPADA» tem a sua correspondência genial num filme que o traduz para a imagem como talvez nunca se tenha feito. E agora vêm sábios e jornalistas numa espécie de dever de austeridade na escrita. Então Fellini, no cinema, é pior do que Antonioni? E veja-se como Antonioni fez, com vários inserts barrocos ou rápidos e de grande valor poético, o famoso BLOW-UP. Quem me dera ver «O Delfim» tratado com essa capacidade de viver e dar a ver. Como o próprio Fernando Lopes fez em «Uma Abelha na Chuva». Foi linear como o autor do livro homónimo? Foi e não foi. O cinema tem a sua própria pluralidade, trabalha com o tempo, tempo em si e tempo visual. E é claro que os tais escritores americanos, talvez influenciando a tertúlia do Areeiro, não eram nenhuns avarentos, inimigos de adjectivos, mesmo trabalhando com uma língua estruturalmente despojada. Lembro a força de «As Vinhas da Ira», «A Um Deus Desconhecido», o teatro de Tenessee Williams, o lado antropológico e sociológico de «Morte de Um Caixeiro Viajante» do Miller. E as longas frases de Faulkner, atravessando a paisagem do nosso próprio imaginário.
Vou viajar: até na poesia há coisas impublicáveis para certos editores: lembro-me do quase escondido Herbert Helder. Tudo nele tem medida, mas o sentido da sua poesia, feita de palavras, rompe o sentido da medida ou medida dos adjectivos censurados e da escrita sólida mas amordaçada.




O PIOR DE SE ESTAR MORTO

É QUE SE FICA À MERCÊ
  
DOS VIVOS





quarta-feira, julho 17, 2013

UM LIVRO QUE ABORDA UMA CRISE ACTUAL

tudo na Síria continua a arder

                                         
NARRATIVAS DA SUPREMA AUSÊNCIA
nem representação nem narrativa
Este livro não tem género, nem mesmo o que se declara na primeira palavra do título. Esse objectivo, aparentemente esboçado nas palavras seguintes, de Albert Camus, em O Estrangeiro, também não é alcançado na sua  propriedade inteira para explicar a natureza dos 28 capítulos desta obra de Rocha de Sousa, entre o limite do apocalipse ou um mundo sem razão. O que talvez tenha acontecido, em plena incandescência, através do real dia a dia, através de memórias semelhantes mas desfocadas e por vezes tristes, poderá estar ligado a uma fase perturbadora do mundo, a inquietantes anunciações de diferentes tragédias em geminação, à impossibilidade de ver o que o olhar colecciona percorrendo as correntes informativas dos jornais quase todos.  Ou mesmo da edição fracturada e rápida dos noticiários, ao que  parece  durante dois meses, com pausas de um fim de vida a dois, Leo e Vicência, sobreviventes dos seus restos de consciência, a cultura esfumada em solidão. Seja como for, para mim, ler este livro foi uma viagem aterradora e fascinante, vendo também, quase em directo, os horrores das guerras que parecem situar-se em meados de 2012 e talvez nos alertem para outros anos que estão a chegar ainda neste século XXI. Correndo o risco de não cumprir um trabalho de apresentação a que me havia prestado, chamo a atenção para a quantidade de jornais, recortes, notícias, artigos, que o autor deste livro terá consultado ou citado, dia a dia, durante os tais vertiginosos dois meses, entre trocas e erros, nomes com várias grafias e fontes demográficas ou étnicas confrontadas por fora das cronologias dentro de 2012 ou muito fora dele, na antiguidade, porventura no presente e no futuro, sobre os conflitos  classificados como  desastres principais.  Rocha de Sousa disse-me, em fim de catarse: lê como se viajasses numa coluna militar em plena Síria a arder, ou na Líbia, ou respirando a cantada imposta pelos talibãs sobre o Corão, as meninas cegas, tu protegido na retoma da marcha, com algum chefe de Estado, em voo retrospectivo, sobre os massacres do ano anterior e as imagens soltas de gente que sobrevive amando pela memória ou de facto e relendo ainda Camus. Depois, entregando-me um papel, o meu amigo preveniu-me: «talvez estas breves palavras, a publicar na contracapa do livro, contenham algumas, poucas, informações que agilizem o esboço dessa minha atormentada viagem, tudo numa edição errática e comprometida no sentido sobre o mundo destas horas.»

O papel dizia:

O mundo visto dia a dia e durante dois meses, em imagens e recortes de jornais ou episódios do real, entre sonhos de estranhos medos, véu de tudo sem nexo, como todos nós.

                                                                                                          Anónimo

quinta-feira, maio 30, 2013

QUAL A ORIGEM DO HOMEM E PARA ONDE VAI?


Como aconselhar alguém, quanto ao procedimento pós morte: Como? «Pelo fogo, pelo fogo, amigo!» Assim nos vemos, como as falsas bruxas que os falsos inquisidores faziam arder nas fogueiras do Terreiro do Paço. Só depois as enterravam.

foto Miguel Baganha


a ironia da história
Mas eu penso: vivi durante nove meses dentro de um líquido (amniótico) e nasci a berrar com a garganta queimada pelo oxigénio. Depois disso, quando já tinha seis anos, molhava-me na praia, andava na areia, andava na terra. Afinal sempre andei na terra e um pouco no ar, levado por aviões. Só a terra sabe quem sou, não o fogo, embora lhe reconheça, ao fogo, uma certa grandeza no impulso que deu aos assados, às luzes com óleo de bisontes, às tochas da Idade Média, às fogueiras de São João. Mesmo assim, ainda prefiro a água (fria) que lava e cria. É bonito ver as cerimónias, a bordo de grandes navios, quando mergulham um morto no oceano, preparado para descer às profundezas do Grande Enigma da Grande Escuridão das covas abissais. Mas nada como manter os olhos abertos e ver para compreender o mundo pela nossa própria cabeça.
Eu gosto da terra, mesmo para morrer e ficar dentro dela até me transformar em ossos. Mas o meu sonho maior, quase impossível, era ser lançado no espaço (estilo Laika) por forma a que saísse da órbita terrestre e ficasse «eternamente» a gravitar nos acasos da força dos astros. Esse é que seria o verdadeiro sarcófago para um homem. Para o único ser inteligente criador do nosso planeta — votado ao universo que nunca chegou a compreender.

Fogo, terra, Oceano. O espaço, o espaço cósmico, meu amigo. A Humanidade, viva ou morta devia começar já e emigrar para o espaço, antecipando o futuro.

terça-feira, maio 07, 2013

A BELEZA DO AMOR EMERGE DO SEU MISTÉRIO


O amor não é nada uma coisa simples e escorreita que se impõe e permanece por aí, na porta do corredor ou no jardim doméstico ou mesmo junto dos nossos fantasmas mais amigos e bondosos. Eu sou  uma pessoa de paixões e até de amores, apesar de não saber nada de filosofia, teoria dos comportamentos e outras «ciências» assim. Ter medo do amor ser misterioso (no mais profundo sentido da palavra) é mais ou menos branquear as suas tonalidades e diferenças caso a caso, uma vez que ele é plural, transforma-se de pessoa para pessoa, e cada pessoa é, só por si, uma entidade transcendente, inegavelmente misteriosa, nem sabe donde vem nem para onde vai. Não se pode levar o amor, que é uma mais valia da nossa personalidade, para o campo light ou par a falibilidade do simples e escorreito, como qualquer canção que logo fica no ouvido, insípida e inodora, binária no ritmo, pano branco sobre a relva da nossa improvável evidência.
O amor é um dos mais complexos sentimentos da vida humana na sua manifestação relacional e sob a circunstancialidade da sua própria dinâmica -- dinâmica vital cujo sentido é esquivo e cujo fim não se conhece. Essa vida exprime amor, exprime justamente o mistério de si mesma, não há nada de mais penoso ou sombrio nisso: ele é tão pulsante como o nosso coração e tão falível como um súbito nada que nos atira para a eterna perda da consciência.
Se ele não fosse assim, feito à nossa imagem e semelhança, era uma aparência menor e artesanal, simples, escorreito, ornamental e naturalmente sem mistério.
É bonito?
Claro que sim, quase sempre, como as pessoas que o vivem e se apoiam nele. Mas isso só me dá razão, mesmo se olharmos para a imensidade do planeta onde vivemos, para o universo que nos rodeia e onde tudo acontece sem sabermos porquê, para quê, até quando, misteriosamente belo, inexplicavelmente imenso, talvez infinito, a crescer a velocidades impensáveis.
O Universo é belo? 
Eu acho que sim, sobretudo porque é misterioso, poético, de imagens sem nome mas arrebatadoras. No Universo quase tudo é misterioso, dentro e fora do nosso conhecimento. O Homem é uma parte desse universo, caminha sobre as estrelas e ao contrário delas, evoluindo lentamente em busca (com o amor e outros sentimentos e saberes) do dia em que poderá excluir-se da sem razão que por vezes o rodeia em muito do que o ultrapassa.
O lado menos reico da arte é o seu lado transcendente, é o diálogo da forma com o conteúdo, do visível ou do invisível. A arte conhece a manifestação do mistério (não de um mistério infernal como o belo horrível): antes do mistério que é a suprema ideia de nós, a que vamos descobrindo ao retirar muitas das camadas que nos rodeiam e nos encobrem, pela ciência pela medicina, pela voz das ideias e das civilizações. O arqueólogo conhece o mistério dos restos que investiga: pode nunca resolver esse universo, mas vai abrindo caminho através dele, pela razão e pela utopia.
O lado misterioso do  mundo e de alguns sentimentos complexos não é necessariamente uma coisa má. Pode ter luz e cor, como muitas pessoas gostam. Gostar das cores integradas por uma velatura uniformizante também é um gosto defensável e a história da arte demonstra-o desde muito cedo.
Sintetizo e peço desculpa: o amor é uma entidade fora de nós, que esteja ali apenas, legível na maior banalidade das evidências, ainda que bonitas.